Debora Diniz*
Todd Heisler/NYT
Atriz revelou que fez uma cirurgia de retirada de mamas para diminuir o risco de câncer
O resultado positivo para alta probabilidade de câncer de mama transformou Angelina Jolie em cliente da mercadoria risco
Não há sobrevivência humana sem a experiência do
adoecimento. E não se trata de uma resignação passiva diante do corpo
que insiste em falhar, pois essa é nossa condição. O encanto da medicina
está no poder de nos oferecer tratamento para as aflições e as dores. O
câncer é uma delas – "uma palavra que impõe medo nos corações das
pessoas", disse Angelina Jolie. Talvez tenha sido o medo que a fez se
submeter a uma cirurgia de mastectomia radical: retirou os dois seios
como medida preventiva para desautorizar o destino anunciado em seus
genes. Angelina não estava doente – o câncer era uma probabilidade. A
estatística genética a sentenciou à morte e o mesmo bisturi que a
mutilou reconstruiu seu corpo.
Angelina contou sua história em um jornal de circulação mundial. A
narradora do texto – em um misto de confidência e apelo às outras
mulheres – seduz pela autoridade de atriz e pacifista da Organização das
Nações Unidas. A mãe de Angelina morreu aos 56 anos de um câncer de
mama. Um teste genético identificou a herança materna do gene
defeituoso. "Assim que soube do risco, decidi ser proativa e
minimizá-lo", justificou-se. Risco não é somente um fenômeno
estatístico, mas uma categoria moral e uma mercadoria. Minimizar o risco
do adoecimento genético ofereceu a Angelina um sentimento de controle
sobre o futuro e acerto de contas com o passado: os filhos não
vivenciariam sua história de orfandade. Ou, ao menos, assim o mercado
dos testes genéticos a faz crer.
O teste sanguíneo para a identificação do gene defeituoso de Angelina
custa US$ 4 mil nos EUA. É produzido por uma única empresa, a mesma que
busca patentear o sequenciamento genético na Suprema Corte americana.
No Brasil, não está disponível na rede pública de saúde por duas razões.
A primeira é que a genética clínica ainda não foi seriamente
implementada como política pública do SUS. A segunda, e mais importante,
é o custo exorbitante do exame, dado o controle econômico da patente e
do sequenciamento do gene por uma única empresa. É a ciência que
cartografa nossos genes a que vende o teste para classificar alguns
deles como "defeituosos". O de Angelina tem nome, BRCA1. Mas a história
da mastectomia radical para tratamento do câncer de mama conheceu
matriarcas distantes da atriz de Hollywood: em 1894, William Stewart
Halsted, médico do Hospital Johns Hopkins, propôs o revolucionário
tratamento de mutilação dos seios para o câncer. A diferença é que a
mastectomia do século 19 era feita após o câncer dar sinais de presença
no corpo.
Os médicos de uma mulher com risco genético alto para o câncer de
mama podem indicar a mastectomia preventiva. Diferente do passado, não
há uma doença instalada no corpo, apenas seu espectro de probabilidade. O
admirável mundo novo da genética não apenas provocou a ficção
científica dos embriões em tubos de ensaio de Aldous Huxley, mas atiçou
um extenso mercado de medos e novas necessidades. O teste genético
passou a ser uma necessidade de saúde para Angelina. O resultado
positivo para a alta probabilidade a transformou em cliente do mercado
do medo. Os números eram fortes: com os seios, seu risco de desenvolver o
câncer eram de 87%; mutilada, de 5%. A mutação genética está em seu
corpo e o mercado que a identificou oferece promessa de solução.
Se Angelina se salvou da ficção como a garota interrompida, é agora
uma mulher sobrevivente de um câncer que nunca teve. Mas é também uma
celebridade genética. Angelina lançou-se como ativista de mais uma
causa: a do teste preditivo para o câncer de mama e da mastectomia
preventiva. Suas boas intenções humanitárias favoreceram o crescente
mercado genético. Em poucos dias, as ações comerciais da Myriad
Genetics, a única que controla o teste preditivo para o BRCA1, cresceram
nas bolsas de valores. A missão agora é convencer outras mulheres a
despir-se do apego ao corpo e lançar-se à hipótese da antecipação da
doença. Para isso, apresentou-se como rosto e voz da necessidade da
mutilação e descreveu suas próteses como bonitas. Porém, não há escolha
simples. A de Angelina foi favorecida pelo poder de consumo médico,
animada pela orfandade da mãe e pelo cuidado dos filhos.
Mas probabilidade não é predestinação. Nem na genética nem em nenhum
outro campo da medicina. A diferença é que a medicina genética se move
por um poder de sedução que revolucionou as políticas populacionais – a
métrica estatística. Angelina é não somente uma mulher com gene
defeituoso, mas também uma mulher laudada pela genética como de alto
risco para desenvolver a doença e morrer precocemente. Ser uma mulher
com genes defeituosos foi insuportável para ela, como é para tantas
outras. Esse novo estatuto faz circular uma ampla rede de produtos,
profissões e consumos. Por isso, nosso estranhamento não deve ser à
história de Angelina Jolie, sua mutilação e reconstrução corporal, mas
ao discurso médico e de consumo que nos oferece destinos. Mesmo que a
escolha pela mutilação venha a ser considerada a mais razoável, ela é
apenas uma tentativa de controlar o acaso da vida humana e seu eterno
jogo com o adoecimento.
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* DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E
PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO
Fonte: Estadão on line, 18/05/2013
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