Na pregação do Papa Francisco há um tema que aparece com uma frequência surpreendente: o diabo.
O mesmo tema se repete com uma frequência similar no Novo Testamento.
Mesmo tendo isso presente, a surpresa permanece. Talvez seja porque,
com suas contínuas referências ao diabo, o Papa Jorge Mario Bergoglio se afasta da pregação atual da Igreja, que: ou cala sobre o tema ou o reduz à metáfora.
Mais, a minimização do diabo está
tão difundida que esta projeta sua sombra sobre as próprias palavras do
Papa. Até agora, a opinião pública, tanto católica como laica, mostrou
despreocupação diante da sua insistência sobre o diabo ou, no máximo,
indulgente curiosidade.
Ora, uma coisa é certa. Para o Papa Bergoglio o diabo não é um mito: é uma pessoa real. Em uma de suas homilias matutinas
na capela da Domus Sanctae Marthae disse que não há apenas ódio no
mundo em relação a Jesus e à Igreja, mas que por trás deste espírito do
mundo está “o príncipe deste mundo”:
“Com sua morte e ressurreição Jesus nos resgatou do poder do mundo,
do poder do diabo, do poder do príncipe deste mundo. A origem do ódio é
esta: estamos salvos e esse príncipe do mundo, que não quer que sejamos
salvos, nos odeia e faz nascer a perseguição, que começou nos primeiros
tempos de Jesus e que continua até hoje”.
É preciso reagir diante desse diabo – disse o Papa – como fez Jesus,
que “respondeu com a palavra de Deus. Não podemos dialogar com o
príncipe deste mundo. O diálogo entre nós é necessário; é necessário
para a paz, é uma atitude que devemos ter entre nós para nos escutarmos,
para nos entendermos. E deve permanentemente ser mantido. O diálogo
nasce da caridade, do amor. Mas não podemos dialogar com este príncipe;
podemos somente responder com a palavra de Deus que nos defende”.
Francisco fala do diabo demonstrando que tem muito claro em sua mente seus fundamentos bíblicos e teológicos.
E precisamente para refrescar a mente sobre estes fundamentos interveio, no L’Osservatore Romano, de 04 de maio, o teólogo Inos Biffi,
com um artigo que recapitula a presença e o papel do diabo no Antigo e
no Novo Testamento, tanto no que foi revelado e manifesto, como no que
ainda pertence a um “panorama escondido” e, em definitiva, aos “caminhos
impenetráveis” de Deus.
Reproduzimos este artigo na sequência, que termina com uma crítica à
ideologia corrente que banaliza a pessoa do diabo. Ideologia contra a
qual Bergoglio quer fazer um apelo de todos à realidade.
Como as Escrituras falam do demônio, de Inos Biffi
Após o surgimento do homem, obra do sexto dia da criação, eis que se
manifesta a presença de um ser misterioso e inquietante, a serpente.
Assombra e desconcerta o que esta inicia com os progenitores, e o que
destes quer obter: insinuar neles a suspeita em relação a Deus, isto é,
persuadi-los de que as proibições por ele colocadas provêm de seu zelo,
de seu temor de que eles queiram equiparar-se a ele. A serpente encarna,
precisamente no princípio do mundo e de sua história, a presença de um
ser invejoso: “Pela inveja do diabo, entrou no mundo a morte” (Sb 2,
24).
No Novo Testamento esta serpente é mencionada com frequência. Jesus
declara que o diabo é “assassino desde o começo”; nele “não há verdade”;
“quando ele fala mentira, fala do que é dele, porque ele é mentiroso e
pai da mentira” (Jo 8, 44). E Jesus o define como “príncipe deste mundo”
(Jo 12, 31; 16, 11).
Paulo afirma que “a serpente, com sua astúcia,
seduziu Eva” (2 Cor 11, 3) e menciona a quem se perde “indo atrás de
Satanás” (1 Tm 5, 15). O mesmo apóstolo fala do viver mundano com o qual
se segue o “príncipe do poder do ar, o Espírito que agora age nos
homens desobedientes” (Ef 2, 2); menciona as “manobras do diabo” e nossa
batalha “contra os principados e as autoridades, contra os dominadores
deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal” (Ef 6, 12).
A primeira carta de Pedro nomeia o “inimigo”, “o
diabo” ou o “acusador”, que “ronda como leão que ruge, procurando a quem
devorar” (5, 8). E nas cartas de João se recorda o “anticristo” que
deve vir (1 Jo 2, 18); o “mentiroso” que nega que Jesus é o Cristo; o
“anticristo” que “nega o Pai e o Filho” (2, 22). No Apocalipse está
escrito: “Aconteceu então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos
guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou juntamente com os seus
Anjos, mas foi derrotado, e no céu não houve mais lugar para eles. Esse
grande Dragão é a antiga Serpente, é o chamado Diabo ou Satanás. É
aquele que seduz todos os habitantes da terra. O Dragão foi expulso para
a terra, e os Anjos do Dragão foram expulsos com ele” (12, 7-9).
* * *
Entre estes textos e a exegese de Jesus sobre o diabo, assassino e
mentiroso desde o começo, o acordo é perfeito: trata-se de um ser hostil
a Deus, que quer destruir sua Palavra e, ao mesmo tempo, hostil ao
homem, ao qual quer seduzir, induzindo-o a rebelar-se contra o projeto
divino. É o maligno. Em especial, o acordo exegético refere-se àquele a
quem o diabo reserva sua aversão, a saber: Jesus Cristo.
Situam-se assim, em antítese, duas realezas: a de Jesus e a do
príncipe deste mundo. O demônio não tolera Jesus Cristo e tenta
obstaculizar de todas as maneiras possíveis o eterno plano divino
concebido para ele. É isso que acontece no deserto.
Mas Jesus se proclama vencedor deste príncipe: “Já não tenho muito
tempo para falar com vocês, pois o príncipe deste mundo está chegando.
Ele não tem poder sobre mim” (Jo 14, 30); é precisamente quando chega a
hora de Jesus, a da sua elevação na cruz e à direita do Pai, quando esse
príncipe é derrotado: “Quem é o condenado? É o príncipe deste mundo,
que já foi condenado” (Jo 16, 11). Paulo ressalta,
sobretudo, o domínio do Ressuscitado: nele o Pai “nos arrancou do poder
das trevas” (Cl 1, 13) e “destituiu os principados e autoridades,
oferecendo-os em espetáculo público, após triunfar sobre eles por meio
de Cristo” (2, 15).
O cristão passou a ser partícipe do domínio de Jesus sobre o demônio:
“deu-nos a vida juntamente com Cristo, quando estávamos mortos por
causa de nossas faltas. (...) Na pessoa de Jesus Cristo, Deus nos
ressuscitou e nos fez sentar no céu” (Ef 2, 5-6).
Embora tenha sido definitivamente derrotado pelo Senhor, o demônio
segue insidiando o homem redimido, para fazê-lo cair. Por este motivo, é
preciso estar alerta. Pedro falava de seu rugido e de sua vontade ainda não aplacada de prejudicar; Paulo
nos exorta a tomar o escudo da fé com o qual podemos apagar as “flechas
inflamadas do Maligno” (Ef 6, 16). E o próprio Jesus havia ensinado a
rezar pedindo ao Pai que nos livrasse do maligno (Mt 5, 13).
* * *
As múltiplas exegeses sobre a serpente que aparecem nas origens nos levam a fazer algumas considerações.
A primeira é sobre a “história” consumada e decidida
antes da criação do homem, e que consiste no estouro de uma “grande
guerra no céu” (Ap 12, 7), ou seja, em uma aceitação ou em uma rebelião
no mundo dos anjos: uma aceitação ou uma rebelião não genéricas, mas
cujo objetivo é o concreto e eterno projeto divino personificado em
Jesus Cristo.
O objeto da orgulhosa intolerância dos anjos rebeldes é Jesus, aquele
que “prevalece sobre todas as coisas” e que, portanto, prevalece também
sobre eles. Entende-se, então, como a vida de Jesus esteve
obstaculizada pela presença e pelas maquinações do diabo; e que, por
outro lado, desde o anúncio de seu nascimento até a ascensão, esteve
acompanhada, servida e consolada pela presença dos anjos, que se alegram
com ele, e com ele são vencedores do grande dragão e de seus satélites,
expulsos do céu e precipitados, com afirmava o Apocalipse. O próprio
Jesus afirmava ter visto “Satanás cair do céu como um raio” (Lc 10, 8) e
falava do “fogo eterno preparado para o Diabo e seus anjos” (Mt 25,
41).
Falamos da história que precede a história visível do homem: o que
sabemos é que ela aflora como de um panorama escondido, que nos
ultrapassa e nos escapa, e que agora só podemos presumir e intuir.
* * *
A segunda consideração refere-se ao poder
impressionante de Satanás: tão forte e tenaz que só a força do Filho de
Deus pode dobrá-lo e desbaratá-lo; ou melhor dito, a força do Filho de
Deus derrotado na cruz e, portanto, em uma condição de extrema
debilidade humana converte-se, paradoxalmente e sem esforço, em potência
absoluta. O diabo consegue arrastar tudo e a todos, mas diante de Jesus
sucumbe totalmente. O Crucificado ressuscitado recria uma humanidade
vencedora, afastada da influência perversa do maligno. A força de
atração do domínio é substituída pela força de atração de Cristo, que
declara: “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo
12, 32). Só compartilhando a força do Jesus morto e glorioso é que
conseguimos nos opor às adulações da serpente das origens.
Contudo, poderia ficar uma pergunta: sem dúvida, a queda do anjo e do
homem dependem unicamente da livre vontade da criatura. Não apenas
isso: o perdão do homem estava incluído no amor misericordioso do Pai,
que predestinou o seu Filho Jesus ao papel de redentor. Então, por que a
ordem concreta escolhida por Deus inclui essa queda e, portanto, a
realidade do pecado? Não estamos em condições de responder a esta
questão: pertence ao “pensamento do Senhor”, aos seus “insondáveis
desígnios” e aos seus “inescrutáveis caminhos” (Rm 11, 32-34).
* * *
Uma terceira consideração é para manifestar surpresa
diante da ausência na pregação e na catequese da verdade relativa ao
demônio. Para não falar destes teólogos que, por um lado, aplaudem o
fato de que o Vaticano II tenha declarado que a Escritura é “alma da
Sagrada Teologia” (Dei Verbum, 24), mas que, por outro
lado, não hesitam tanto em decidir sua inexistência – como fazem com os
anjos – como em considerar marginal um dado muito claro e amplamente
dado por certo na própria Escritura como é aquele que faz referência ao
demônio, considerando-o a personificação de uma obscura e primitiva
ideia do mal, agora já desmistificada e inaceitável.
Uma concepção como esta é uma obra-prima de ideologia e equivale,
sobretudo, a banalizar a obra mesma de Cristo e seu papel de redentor.
É por isto que as referências ao demônio que observamos nos discursos do Papa Francisco não nos parecem secundárias.
-------------
A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio Chiesa.it, 13-05-2013. A tradução é do Cepat. Foto fonte: http://bit.ly/17kT4CO
Fonte: IHU on line, 18/05/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário