Entrevista com André Wenin
Fratricídio, ciúmes... As relações "fraternais" que a Bíblia retrata muitas vezes são bem problemáticas. Elas dão a ver que a fraternidade não é evidente e é preciso
descobri-la e construi-la.
Eis a entrevista.
O senhor começou um enorme trabalho de releitura dos
primeiros textos da Bíblia e, em particular, publicou um livro
interessante, intitulado José ou a invenção da fraternidade
(Ed. Loyola, 2010). Falemos um pouco disso. O senhor parte de outra
história de irmãos, a de Caim e Abel. É um episódio sobre o qual não se
fala muito. Porém, um fratricídio não é pouca coisa. Por que esse
silêncio?
Sem dúvida, porque se trata de textos que acreditamos conhecer, mesmo
antes de tê-los lido. Quando os observamos de perto, nos damos conta de
que Caim nunca chamou Abel de
"irmão". Caim recusa a fraternidade. O texto é escrito de forma
magnífica, a fim de que o leitor adote o ponto de vista de Caim. Ele
sente o seu ciúmes e pensa: "Isso não é justo". E quando Caim mata Abel o
leitor é envolvido, porque implicitamente deu razão a Caim.
O texto diz que Caim dá livre curso à "fera acuada
nele", "e é ela que o leva a matar e a realizar a sua própria desgraça"
(Gn 4, 7). O leitor toma consciência de que ele também tem uma fera
acuada nele. Mas para compreender bem é preciso olhar para o passado de
Caim. Ele nasceu de um casal mal estruturado, em que o homem "domina
sobre a mulher", a possui como uma coisa sua. Consequentemente, a mulher
transpõe a sua frustração sobre o filho. Ela diz: "Eu adquiri um homem
com Deus". Ela exclui o pai, e o filho se torna tudo para ela.
Por causa desse amor mal posto, Caim acredita que
pode ter tudo. É por isso que ele se abandona ao ciúmes quando vê que
Abel tem algo que ele não tem. Ele não é capaz de se alegrar com o bem
que chega ao seu irmão. É um pouco a nossa história, não? A fraternidade
não está dada, é algo difícil.
Isso é o que a história de José também conta. Mas, desta vez,
por sorte, não há um homicídio. Os irmãos ciumentos se livram do irmão
José. Ele se salva e, depois de várias desventuras, torna-se o poderoso
ministro do faraó do Egito. E lá ele se reencontra com os irmãos.
Aqui também temos que olhar para o passado. O pai, Jacó, está desfalecendo. José é o preferido porque é o filho da esposa preferida, Raquel, que deu dois filhos a Jacó e que morreu ao dar à luz o segundo, Benjamim. Jacó transferiu sobre o seu filho José o amor que sentia pela sua mãe. José é muito amado e mal amado.
Se tentarmos resumir um texto muito rico, em que o senhor
mostra que todos os detalhes são importantes, podemos dizer que os
outros filhos são ciumentos. O ódio nasce nos seus corações. Querem se
livrar de José. Mas depois José não é morto e encontra-se nas mãos de
mercadores de escravos. Mas os irmãos inventam uma história para contar a
Jacó para explicar o seu desaparecimento. Por ocasião de uma fome, os
irmãos vão ao Egito para comprar grãos, e lá, José, tendo-se tornado
poderoso, os reconhece. E então começa o conto do caminho rumo à
fraternidade.
José vai renunciar ao mal e à vingança, e por
diversos subterfúgios, vai colocar os seus irmãos diante da verdade do
seu passado. Há um trabalho da palavra que vai lançar luz e permitir que
se percorra um caminho de fraternidade. Primeiro, os irmãos não têm
medo, não reconhecem José e o veem somente como um senhor egípcio.
Depois, por causa do questionamento insistente que José faz pesar sobre
eles, eles são obrigados a se lembrar do seu irmão desaparecido.
Eles se voltam para o passado e para si mesmos. A palavra que eles dizem em resposta a José trabalha dentro deles, esclarece as coisas. Se eu intitulei o livro como A invenção da fraternidade
é porque, acima de tudo, a fraternidade deve ser descoberta e então
precisamos encontrar maneiras concretas de vivê-la. A fraternidade não
se dá por si mesma. Foi Paul Ricoeur que disse que a
fraternidade é menos um dom da natureza do que um projeto ético. Na
história de José, a fraternidade instaurada entre os irmãos, graças ao
trabalho de José e também de Judá, vai de alguma forma reparar também a paternidade de Jacó.
O senhor diz que a fraternidade é uma prova?
Sim, ela é uma prova porque ela é um dom. E o dom põe à prova aquele
que o recebe. Não podemos nos contentar em pôr as mãos sobre o objeto
doado. Também é preciso reconhecer o dom como dom. No dom, há a coisa
dada e o sinal. Por exemplo, a criança que recebe um presente aprende
que deve reconhecer o doador, antes de tomar a coisa dada. O dom cria
uma vínculo, uma aliança entre aquele que dá e aquele que recebe. Como
dito antes, Caim se recusa a receber a fraternidade de Abel. Na história de José,
os irmãos vão se reconhecer como irmãos uns aos outros. Assim, eles
"inventam" a fraternidade doando-a mutuamente e recebendo-a.
Os cristãos reconheceram em José uma prefiguração de Cristo...
Com efeito, em Jesus, algo de José se cumpre. O José do Gênesis
e Jesus manifestam – um em uma história que é uma espécie de romance, o
outro na realidade histórica – que a fraternidade que é tão difícil de
se instaurar é possível como projeto ético. São Paulo
diz bem que Jesus é "o primeiro de uma multidão de irmãos". Ele realiza a
fraternidade. De sua parte, o autor da história de José nos conta que,
se a fraternidade é possível, ela é o fruto de uma luta paciente. A
fraternidade não se dá por si mesma.
O senhor diz que esses textos antigos, e muito ignorados, são
tesouros de sabedoria e de espiritualidade. Lendo-os e lendo o seu
livro, o leitor se convence disso. Mas pode ficar surpreso: por que os
cristãos falam tão pouco do "trabalho" da fraternidade?
Parece-me que é justamente porque temos a ilusão de que ela é simples
e evidente. Mas a fraternidade não é simples. Muitas vezes, nos
contentamos, no melhor dos casos, com uma espécie de coexistência mais
ou menos pacífica. Podemos até nos permitir ignorar o irmão ou a irmã.
Mas, assim, amputamos a nossa própria vida. Esses textos antigos, se os
lermos atentamente, nos mostram onde estão as armadilhas, eles nos
ajudam a sermos melhores em humanidade. Nós temos tesouros que
ignoramos. Basta começarmos a lê-los para nos tornarmos ricos.
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A entrevista com André Wenin é de Christine Pedotti, publicada na revista Témoignage Chrétien, n. 3537, 25-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
André Wenin é teólogo e biblista belga, professor da faculdade de teologia da Universidade Católica de Louvain, da qual foi decano de 2008 a 2012. Ele esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU em março deste ano, quando ministrou o curso Aprender a ser humano. Um estudo do Gênesis 1-4.
Fonte: IHU on lin, 22/05/2013
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