quarta-feira, 22 de maio de 2013

A difícil construção da fraternidade.

 Entrevista com André Wenin

Fratricídio, ciúmes... As relações "fraternais" que a Bíblia retrata muitas vezes são bem problemáticas. Elas dão a ver que a fraternidade não é evidente e é preciso
 descobri-la e construi-la. 


Eis a entrevista.

O senhor começou um enorme trabalho de releitura dos primeiros textos da Bíblia e, em particular, publicou um livro interessante, intitulado José ou a invenção da fraternidade (Ed. Loyola, 2010). Falemos um pouco disso. O senhor parte de outra história de irmãos, a de Caim e Abel. É um episódio sobre o qual não se fala muito. Porém, um fratricídio não é pouca coisa. Por que esse silêncio?
Sem dúvida, porque se trata de textos que acreditamos conhecer, mesmo antes de tê-los lido. Quando os observamos de perto, nos damos conta de que Caim nunca chamou Abel de "irmão". Caim recusa a fraternidade. O texto é escrito de forma magnífica, a fim de que o leitor adote o ponto de vista de Caim. Ele sente o seu ciúmes e pensa: "Isso não é justo". E quando Caim mata Abel o leitor é envolvido, porque implicitamente deu razão a Caim.

O texto diz que Caim dá livre curso à "fera acuada nele", "e é ela que o leva a matar e a realizar a sua própria desgraça" (Gn 4, 7). O leitor toma consciência de que ele também tem uma fera acuada nele. Mas para compreender bem é preciso olhar para o passado de Caim. Ele nasceu de um casal mal estruturado, em que o homem "domina sobre a mulher", a possui como uma coisa sua. Consequentemente, a mulher transpõe a sua frustração sobre o filho. Ela diz: "Eu adquiri um homem com Deus". Ela exclui o pai, e o filho se torna tudo para ela.

Por causa desse amor mal posto, Caim acredita que pode ter tudo. É por isso que ele se abandona ao ciúmes quando vê que Abel tem algo que ele não tem. Ele não é capaz de se alegrar com o bem que chega ao seu irmão. É um pouco a nossa história, não? A fraternidade não está dada, é algo difícil.

Isso é o que a história de José também conta. Mas, desta vez, por sorte, não há um homicídio. Os irmãos ciumentos se livram do irmão José. Ele se salva e, depois de várias desventuras, torna-se o poderoso ministro do faraó do Egito. E lá ele se reencontra com os irmãos.
Aqui também temos que olhar para o passado. O pai, Jacó, está desfalecendo. José é o preferido porque é o filho da esposa preferida, Raquel, que deu dois filhos a Jacó e que morreu ao dar à luz o segundo, Benjamim. Jacó transferiu sobre o seu filho José o amor que sentia pela sua mãe. José é muito amado e mal amado.

Se tentarmos resumir um texto muito rico, em que o senhor mostra que todos os detalhes são importantes, podemos dizer que os outros filhos são ciumentos. O ódio nasce nos seus corações. Querem se livrar de José. Mas depois José não é morto e encontra-se nas mãos de mercadores de escravos. Mas os irmãos inventam uma história para contar a Jacó para explicar o seu desaparecimento. Por ocasião de uma fome, os irmãos vão ao Egito para comprar grãos, e lá, José, tendo-se tornado poderoso, os reconhece. E então começa o conto do caminho rumo à fraternidade.
José vai renunciar ao mal e à vingança, e por diversos subterfúgios, vai colocar os seus irmãos diante da verdade do seu passado. Há um trabalho da palavra que vai lançar luz e permitir que se percorra um caminho de fraternidade. Primeiro, os irmãos não têm medo, não reconhecem José e o veem somente como um senhor egípcio. Depois, por causa do questionamento insistente que José faz pesar sobre eles, eles são obrigados a se lembrar do seu irmão desaparecido.

Eles se voltam para o passado e para si mesmos. A palavra que eles dizem em resposta a José trabalha dentro deles, esclarece as coisas. Se eu intitulei o livro como A invenção da fraternidade é porque, acima de tudo, a fraternidade deve ser descoberta e então precisamos encontrar maneiras concretas de vivê-la. A fraternidade não se dá por si mesma. Foi Paul Ricoeur que disse que a fraternidade é menos um dom da natureza do que um projeto ético. Na história de José, a fraternidade instaurada entre os irmãos, graças ao trabalho de José e também de Judá, vai de alguma forma reparar também a paternidade de Jacó.

O senhor diz que a fraternidade é uma prova?
Sim, ela é uma prova porque ela é um dom. E o dom põe à prova aquele que o recebe. Não podemos nos contentar em pôr as mãos sobre o objeto doado. Também é preciso reconhecer o dom como dom. No dom, há a coisa dada e o sinal. Por exemplo, a criança que recebe um presente aprende que deve reconhecer o doador, antes de tomar a coisa dada. O dom cria uma vínculo, uma aliança entre aquele que dá e aquele que recebe. Como dito antes, Caim se recusa a receber a fraternidade de Abel. Na história de José, os irmãos vão se reconhecer como irmãos uns aos outros. Assim, eles "inventam" a fraternidade doando-a mutuamente e recebendo-a.

Os cristãos reconheceram em José uma prefiguração de Cristo...
Com efeito, em Jesus, algo de José se cumpre. O José do Gênesis e Jesus manifestam – um em uma história que é uma espécie de romance, o outro na realidade histórica – que a fraternidade que é tão difícil de se instaurar é possível como projeto ético. São Paulo diz bem que Jesus é "o primeiro de uma multidão de irmãos". Ele realiza a fraternidade. De sua parte, o autor da história de José nos conta que, se a fraternidade é possível, ela é o fruto de uma luta paciente. A fraternidade não se dá por si mesma.

O senhor diz que esses textos antigos, e muito ignorados, são tesouros de sabedoria e de espiritualidade. Lendo-os e lendo o seu livro, o leitor se convence disso. Mas pode ficar surpreso: por que os cristãos falam tão pouco do "trabalho" da fraternidade?
Parece-me que é justamente porque temos a ilusão de que ela é simples e evidente. Mas a fraternidade não é simples. Muitas vezes, nos contentamos, no melhor dos casos, com uma espécie de coexistência mais ou menos pacífica. Podemos até nos permitir ignorar o irmão ou a irmã. Mas, assim, amputamos a nossa própria vida. Esses textos antigos, se os lermos atentamente, nos mostram onde estão as armadilhas, eles nos ajudam a sermos melhores em humanidade. Nós temos tesouros que ignoramos. Basta começarmos a lê-los para nos tornarmos ricos.
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A entrevista com André Wenin é de Christine Pedotti, publicada na revista Témoignage Chrétien, n. 3537, 25-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
André Wenin é teólogo e biblista belga, professor da faculdade de teologia da Universidade Católica de Louvain, da qual foi decano de 2008 a 2012. Ele esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU em março deste ano, quando ministrou o curso Aprender a ser humano. Um estudo do Gênesis 1-4.
Fonte: IHU on lin, 22/05/2013

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