José Tolentino Mendonça*
«Olha, há só um remédio para ti,
só vejo um caminho: em cada dia
deixa-te
tocar por alguém ou por alguma coisa.»
Um elemento que caracteriza a alegria é o facto dela
não nos pertencer. É pessoalíssima, é completamente nossa,
identifica-se conosco, mas não nos pertence. A alegria não nos
pertence. A alegria atravessa-nos. A alegria é sempre um dom. A alegria
nasce do acolhimento. A alegria nasce quando eu aceito construir a
minha vida numa cultura de hospitalidade. Se insonorizo o meu espaço
vital, se impermeabilizo a minha atenção, a alegria não me visita. A
alegria é um dom da amizade acolhida.
A alegria não é programada. Não posso, por exemplo,
dizer: daqui a um minuto vou-me rir. Não sei quando é que me vou rir. A
alegria é um dom que me visita na surpresa, no não anunciado. E nesse
sentido tenho de viver em hospitalidade. O meu coração é uma soleira,
uma porta entreaberta. A minha vida vive do acolhimento amigável. Temos
de adquirir uma porosidade, deixarmo-nos tocar, deixarmo-nos ligar
pelo fluxo reparador da vida.
Há um filme de Ingmar Bergman em que uma personagem é
uma rapariga anoréxica - e sabemos como a anorexia é uma forma de
desistir da própria vida, de desinvestir afetivamente. A rapariga vai
falar com um médico e ele diz-lhe isto, que também vale para nós todos:
«Olha, há só um remédio para ti, só vejo um caminho: em cada dia
deixa-te tocar por alguém ou por alguma coisa.» A alegria é esta
hospitalidade.
Os dias sem alegria são completamente sem memória.
Chegamos ao fim não lembramos um único gesto, uma única fase, um único
encontro, uma única ação, não temos nada para contar. Tive de ver e de
escutar muitas coisas, e de estar entre muita gente, mas não quis nada
daquilo nem daqueles; não permiti que existisse um trânsito, um
retorno; não abri o meu coração ... Há que transformar a nossa vida no
sentido da hospitalidade. A amizade ensina-nos isso.
Não há alegria sem inocência. Mas inocência naquele
sentido que apontava a escritora Cristina Campo: «Nós não nascemos
inocentes, mas podemos morrer inocentes.» A inocência da infância
espiritual é aquela inocência com a qual e pela qual podemos morrer: a
inocência de um coração simples; da gratuidade; da confiança.
Se não tenho um coração de criança não sou herdeiro do
Reino de Deus. Isto é, não sou herdeiro do reino da vida, não vejo
cintilar, não vislumbro. E aqui, as crianças são exemplares porque elas
entretêm-se com os pequenos nadas, que no fundo são as coisas mais
sérias, as coisas donde colhem a luz. E nós precisamos disso.
Precisamos dessa infância. De descobrir infâncias dentro de nós. Não é
por acaso que todos os amigos são amigos da infância, mesmo aqueles que
fazemos pela vida fora. A principal infância a testemunhar é essa
futura.
Em vez de crescermos na severidade, na intransigência,
na indiferença, no sarcasmo, na maledicência, no lamento., caminhemos
suavemente no sentido contrário. Cresçamos na simplicidade, na
gratidão, no despojamento e na confiança. A alegria tem a ver com uma
essencialidade que só na pobreza espiritual se pode acolher.
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* Presbítero. Escritor. Poeta.
In Nenhum caminho será longo, ed. Paulinas
Fonte: http://www.snpcultura.org/cultivar_alegria_de_cada_dia.html 23.05.13
In Nenhum caminho será longo, ed. Paulinas
Fonte: http://www.snpcultura.org/cultivar_alegria_de_cada_dia.html 23.05.13
Que bem me soube estas palavras. Parece que foram escolhidas para o dia de hoje (cheio de tristeza e dor). Obrigada pela partilha.
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