sábado, 25 de maio de 2013

Félix, homossexual na era do pós-conceito

 Paulo Ghiraldelli Jr*
Mateus Solano
É bom escutar do pai: “ah meu filho, 
lá na escola ridicularizaram você é, eles não sabem nada, 
você tem valor no que eles não dão valor”. 
Muitos de nós pode voltar para a escola, 
no dia seguinte, por ter ouvido isso em casa. 
Felix trouxe à tona no horário nobre da TV brasileira o drama da alma gay: “sou diferente, mas não quero ser diferente”. Ora, por que não querer ser diferente? Porque ser diferente pode não trazer o amor do pai, a aprovação e o aplauso que todo animal na face da Terra busca e precisa. Uma pessoa diferente pode ser simplesmente diferente, mas quando se é diferente de um modo que pode parecer ridículo a quem se quer mostrar tudo, menos uma faceta ridícula, nada há de mais mortal que não conseguir ser igual. Félix é exatamente esse gay: ele pode a qualquer momento deixar trejeitos emergirem e se trair. Ele está no fio da navalha.

Félix é o vilão da novela Amor à vida, da Rede Globo, encenado brilhantemente por Mateus Solano.
Felix não a chamada “bicha homofóbica”. Não, ele não tem vergonha do que é. Ele não guarda ódio de si mesmo. Ele é suficientemente narcisista para se achar bonito e inteligente. Além do mais, ele é suficientemente ambíguo como todos nós. A vida familiar, como homem, o agrada. Ele não quer se espancar por ser gay e ele não quer fazer o mundo sofrer por conta de seu sofrimento. Ele apenas quer que o mundo se dobre, uma vez que ele próprio se dobrou. Sua tenacidade para sufocar seus instintos não é um trunfo que ele não comemore como algo que lhe dá bom resultado. Um mundo de pessoas como a sua irmã, de bom coração, é um modo de fracotes, de pessoas que nunca tiveram de experimentar aquilo que ele experimenta: ele está preso a um irmão gêmeo que ninguém poderia imaginar que existisse: ele próprio, seu lado gay. Pessoas fracas como a sua irmã precisam ser simplesmente destruídas. Não há razão para deixar essas pessoas, que não têm que lutar com nada dentro de si mesmas, dominar o mundo. O mundo é para merecedores, e só é merecedor quem paga um preço no mundo, um preço pela própria existência. O preço de Felix é pago diariamente, na sua autocontenção. Quanto mais ele paga esse preço mais ele se acredita merecedor de glórias. A principal delas: o amor do pai. O reconhecimento do pai.

Nenhum inseto fica marrom se com esta cor, ao invés de enganar o predador e merecer o mundo, vier a ficar desprotegido e ouvir de Deus o som das passadas daquele que irá destruí-lo. Feedbacks positivos são tudo que precisamos para viver e sobreviver. A Bíblia contou para nós o episódio de Caim e Abel para que deixássemos de lado essa ideia de que alguém é merecedor de alguma coisa na ordem cósmica. Mas, na verdade, a Bíblia assim fez para que saíssemos da condição animal. Na condição animal, ao contrário, acreditamos que somos merecedores de poder viver mais um dia – sempre. Escapar dessa condição é adquirir a inteligência superior de que a ordem cósmica, se se quiser, Deus, não lida com merecimentos.

Felix precisa ser reconhecido. Quem não precisa? Ele quer ser reconhecido pelo pai, exatamente porque o pai nunca o reconheceu. Ser re-conhecido é ganhar identidade e só ganhamos identidade se os mais velhos, principalmente os que admiramos, dizem algo de nós. Já imaginou esperar o batismo e, então, ao invés de um bom nome, nessa hora, vir a receber o apelido de “ridículo”? No caso: “bicha ridícula”.

Quando começamos nossa vida escolar e recebemos os primeiros arranhões da vida social, voltamos para casa e buscamos proteção. Somos ainda não reconhecidos pela sociedade, mas nossos país mostram nos reconhecer: somos filhos. Há um depósito de confiança sobre nós. É bom escutar do pai: “ah meu filho, lá na escola ridicularizaram você é, eles não sabem nada, você tem valor no que eles não dão valor”. Muitos de nós pode voltar para a escola, no dia seguinte, por ter ouvido isso em casa. Mas já imaginaram alguém como Félix ter de contar para o pai que foi ridicularizado pelos colegas por conta de ser um… mariquinhas?

Alguns dirão: Felix não é mau, ele é doente. Mas não. Felix é mau. Ele tem plena consciência do que ocorre com ele. Ele verbaliza muito bem sua necessidade de reconhecimento pelo pai. Ele sabe muito bem como deve agir para tentar sobreviver. Ele poderia ser duro de coração e, no entanto, não ser um canalha. Mas seria pedir demais para Félix. Isso ele parece não conseguir. Para ser duro de coração consigo mesmo ele tem de ser duro de coração com alguns elementos do mundo. Sua irmã lhe parece uma pedra no sapato, uma vez que ela é naturalmente reconhecida pelo pai. Então, o que poderia ser um ódio homofóbico contra si mesmo e projetado em outros gays, ganha uma válvula de escape na figura de Paloma.

Paloma é a salvação de Félix. Ela é o seu objeto de ódio. Com isso, Félix não precisa de nenhuma homofobia, de nenhum nojo de si mesmo ou ódio de si mesmo que venha a ser transformado em homofobia. Nenhum nojo ou ódio de si mesmo que venha a enfraquecê-lo a ponto de se tornar mais um coitado a rastejar diante de pastores, esses abutres que poderiam quer “curá-lo”. Paloma é o sucesso que põe Félix funcionando de modo a não sucumbir a esses outros caminhos, tão comuns no mundo gay. Talvez até isso, Felix saiba. Sua consciência de si é enorme.

Mateus Solano apresenta Félix de um modo que nós faz acreditar que estamos começando a viver, no Brasil, uma era filosófica do pós-conceito. Em uma condição assim, não é necessário mais tratar uma bicha com qualquer cuidado, pois não há mais perigo de alimentar preconceitos. Isso pelo fato que Félix não é uma bicha que segue algum conceito. Ele é apenas o vilão que Solano montou para a novela.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ

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