CELSO LAFER *
A análise dos atuais desafios relacionados à presença do
Brasil na América do Sul, e mais amplamente na América Latina,
beneficia-se de considerações históricas que esclarecem o pano de fundo
da singularidade brasileira na região. Nosso processo de independência
fez do Brasil um Império em meio a Repúblicas, o diferente na região em
matéria de regimes políticos.
O diferente era também o de um Estado com grande massa territorial e
uma população de língua portuguesa que permaneceu unida num só Estado.
Em contraste, o mundo hispânico, de fala castelhana, fragmentou-se em
vários países nos processos da independência.
A manutenção da unidade nacional foi o grande e bem-sucedido objetivo
do Brasil Império e o seu legado para o País. A construção desse legado
fez, no século 19, da política interna e da política externa as duas
faces de uma mesma moeda: a da consolidação do Estado brasileiro numa
região instável e centrífuga.
A República preservou a herança do Império e, graças à obra de Rio
Branco, foram dirimidos, pelo Direito e pela diplomacia, os temas
pendentes de fronteiras. Equacionou-se assim o primeiro item da agenda
da política externa de um Estado independente, o da clareza quanto ao
que é "interno" ao País e o que a ele é "externo". O Brasil é raro caso
de país com abrangente vizinhança sem contenciosos territoriais.
Desses elementos defluem desdobramentos que podem ser considerados
"forças profundas" da visão brasileira sobre sua presença na região e no
mundo. Primeiro, um nacionalismo voltado para dentro, não para fora,
preocupado e dedicado ao desenvolvimento do grande espaço nacional.
Segundo, um interesse específico em contribuir para a paz e o progresso
na América Latina, com ênfase na América do Sul. Terceiro, a aspiração,
com o lastro de um país consolidado e de escala continental, de ter
presença na definição das regras de funcionamento do sistema
internacional.
Essa leitura, com ajustes e mudanças em função das transformações
internas e externas, explica a importância atribuída pelo Brasil ao
entendimento com os vizinhos e à cooperação latino-americana, que teve
novo impulso com os processos de redemocratização no Cone Sul no
contexto do fim da guerra fria. Isso trouxe significativa aproximação
entre Argentina e Brasil, levou ao Mercosul, induziu a uma tentativa de
integração energética de gás com a Bolívia e chegou, por iniciativa do
presidente Fernando Henrique Cardoso, à inédita reunião em 2000 de todos
os países da América do Sul, que propiciou o IRSA, conjunto de projetos
de integração logística, energética e de infraestrutura para fazer a
melhor economia da nossa geografia comum.
Isso tudo mudou nestes últimos dez anos - os dez anos do governo do
PT -, de maneira que os caminhos anteriores não dão resposta aos
problemas do presente. De certo modo, creio que se configura, em novos
moldes, a singularidade do Brasil na região e no mundo.
O Brasil é hoje, mais do que antes, um ator global, com um patamar no
mundo distinto de outros países da nossa região. O eixo regional
tornou-se mais assimétrico. São maiores as expectativas dos vizinhos
quanto ao papel do País na sustentabilidade de cooperação. Também são
maiores os desafios relacionados às ambições do Brasil num mundo
multipolar fragmentado, com tendências centrífugas e muitas tensões de
hegemonia.
A fragmentação alcança nossa região, que se tornou mais heterogênea
nas suas visões da economia e da política. Nas instâncias de concertação
política e nos processos de integração não ocorrem apenas os naturais
conflitos de interesses, mas múltiplos conflitos de concepção, até sobre
o valor da democracia e dos direitos humanos. Esses conflitos de
concepção explicam a perda do impulso original do Mercosul, que se
"aladifica", ou seja, torna-se um mecanismo de cooperação que deixou de
ter o foco de uma dimensão transformadora, voltada para lidar com um
mundo globalizado. A visão dos países com tendências economicamente
liberalizantes que integram a Aliança do Pacífico (Chile, Peru,
Colômbia, México) contrasta com a dos bolivarianos, de discutíveis
credenciais democráticas e orientação estatizante nacionalista
(Venezuela, Equador, Bolívia). Ora, o Brasil não se enquadra em nenhuma
dessas concepções: não é liberalizante à moda da Aliança do Pacífico nem
é bolivariano; e a Argentina, com seus problemas internos, imobiliza,
no Mercosul, a nossa ação externa comercial.
Essa singularidade não nos está favorecendo. Os acordos comerciais
inter e extrazona estão minando nossas preferências comerciais na região
e comprometendo nossas exportações de manufaturados, que enfrentam a
concorrência da China. O IRSA está em compasso de espera diante da
dificuldade de elaboração de um marco regulatório comum. O papel do País
na formulação das regras de funcionamento do comércio internacional
reduz-se, seja pela longa paralisia das negociações da Rodada Doha, seja
porque novas normas se elaboram em dois mega-acordos comerciais, a
Parceria Trans-Pacífico e a Parceria de Comércio e Investimento
Transatlântica, de que não participamos. Corremos o risco de ser, como
notou Vera Thorstensen nesta página em 6/5, rule takers, seguidores da
irradiação de normas impostas por outros, não rule makers, papel que, na
nossa singularidade, buscamos tradicionalmente exercer.
Um grafite recente num país latino-americano dizia: "Cuando teníamos
las respuestas nos cambiaran las preguntas". Mudaram as perguntas
relacionadas ao como melhor conduzir de forma cooperativa nossa inserção
na América do Sul. Falta ao governo brasileiro não só uma nova e
necessária visão estratégica apta a lidar com a nossa singularidade,
agravada por um processo decisório fragmentário que, à deriva, reitera
respostas inadequadas e tópicas para uma realidade que mudou.
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* PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (GOVERNO FHC).
Fonte: http://www.estadao.com.br/19/05/2013
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