José Tolentino Mendonça*
Na imperfeição
é sempre possível começar e recomeçar.
A imperfeição permite-nos
compreender
a singularidade, a diversidade, o real impacto
da passagem
do tempo, o traço dos seus vestígios.
A imperfeição humaniza-nos.
Ouvi aí umas duzentas vezes o poeta Tonino Guerra citar
o verso de um monge medieval: «É preciso ir além da banal perfeição». É
isso mesmo: a perfeição pode ainda ser um caminho que trilhamos pela
superfície ou constituir uma ilusão que nos impede de aceder ao
verdadeiro e paradoxal estado da vida. Levamos tanto tempo até perder a
mania das coisas perfeitas, até nos curarmos do impulso que nos exila
no aparente conforto das idealizações, ou finalmente vencermos o vício
de sobrepor à realidade um cortejo de falsas imagens! «É preciso ir
além da banal perfeição».
Lembro-me de um filme de Nanni Moretti, acho que é “O
quarto do filho”, em que uma personagem, estando a viver um duro luto,
se coloca a arrumar no armário as chávenas de chá. Percebe então que
uma tem um lado partido. Tenta disfarçar o facto, colocando visível
apenas o lado intacto. Mas ela sabe que àquela chávena falta alguma
coisa. Aquela chávena é o símbolo da sua vida, da nossa vida, que ela e
nós temos de aceitar e redescobrir continuamente. Acolher isso é uma
condição necessária no amor e na amizade, no viver comum e na maturação
pessoal que nos cabe fazer.
Há aquele mote de Samuel Beckett que, se o soubermos
ouvir, derrama sobre os nossos embaraços grande luz. Diz assim: «Errar,
errar de novo, errar melhor». O que é errar melhor? É saber que, no
fundo, erramos sempre. Isto é: a perfeição encontrámo-la nos catálogos,
mas não nos nossos gestos ou em nós próprios. O mais sensato é mesmo
adotar a humilde sabedoria de quem procura conscientemente o melhor,
mas sabe que o seu melhor ficará ainda aquém. O que podemos aprender é,
pois, a semear, num trabalho de confiança, de desprendimento e
simplicidade cada vez maiores. Jung escrevia: «o importante não é ser
perfeito, mas sim inteiro». E para nós, o que é realmente importante?
Durante anos tive em casa um cartaz de uma peça de
teatro infantil, de um grande autor italiano. Para saber falar às
crianças como ele o faz, a gente percebe que se tem de apetrechar não
apenas uma enorme habilidade, mas uma afetuosa esperança. Os miúdos
sabem distinguir bem quem lhes fala para entreter ou quem realmente
lhes quer comunicar uma verdade de coração. Este autor, chamado Gianni
Rodari, é assim. Durante anos tive um cartaz seu com esta frase:
«errando também se inventa». Olhar para aquela frase transmitia-me o
ânimo e a leveza de que precisava.
A perfeição coloca-nos perante a realidade como se de
um facto consumado se tratasse: se formos mexer, intervir, retocar ou
alterar, sentimos isso como uma perturbação. Essa perfeição é estática.
Existe só para ser admirada… à distância. A imperfeição, porém (e
penso também naquelas que identificamos na nossa vida interior), é uma
história ainda em aberto, que conta ativamente conosco.
Na imperfeição
é sempre possível começar e recomeçar. A imperfeição permite-nos
compreender a singularidade, a diversidade, o real impacto da passagem
do tempo, o traço dos seus vestígios. A imperfeição humaniza-nos.
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* Presbítero. Escritor. Poeta. Conferencista.
In Diário de Notícias (Madeira)
Fonte:http://www.snpcultura.org/amar_a_imperfeicao.html 21.05.11
Fonte:http://www.snpcultura.org/amar_a_imperfeicao.html 21.05.11
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