Paulo Ghiraldelli Jr.*
"Viveríamos no
Céu como os anjos. É difícil querer ser anjo. Ser anjo por um ato como a
morte? Que golpe heim?
Que traição!"
“Ela me ama!”. “Eu também a amo! Sim, eu
a amo!” Após essa descoberta, diz Freud, a enorme felicidade cede à
angústia, porque surgem duas outras frases: “Ela me ama, mas até
quando?”; “Eu a amo, mas certamente isso terá um fim, pois um dia
morrerei, ou um dia ela morrerá”. Assim, a perda se põe em cena e faz da
vida do amante uma peça trágica: “seja o que for que ocorra no jogo do
acaso, eu viverei de sobressaltos e, ao final, serei derrotado”.
A angústia vem da constatação de se
estar amando verdadeiramente uma pessoa e saber que quem ama e é amado
está sob o tacão do amor, imperdoável. O amor pode acabar diante de
outro amor ou mesmo definhar sozinho. Além disso, o final trágico para
os que conseguirem conviver com os sobressaltos e manter o amor durante
toda a vida é inevitável, pois haverá um rompimento, claro, com a morte.
Assim, o amor traz uma felicidade muito momentânea. Depois, ele provoca
a busca incessante, impõe-se ser vivido. Mas isso não retira do jogo a
terrível angústia de saber que ele é contingente. Ora, tudo é
contingente. Podemos admitir isso para nós mesmos se formos corajosos.
Mas, mesmo admitindo, não conseguimos pensar nisso e aceitar uma
conclusão desse tipo quando estamos apaixonados. Quando estamos em
profundo amor, a companhia do outro não pode ser imaginada como
recebendo um bilhete de demissão. Esse pensamento se torna insuportável.
Lutamos desesperados para que a vida não
passe sem que surja um grande amor, uma arrebatadora paixão articulada a
um bom amor e, no entanto, quando isso ocorre, tudo que obtemos é a
perda da paz de espírito?
A filosofia dá um consolo, a respeito
disso, ao menos a certos intelectuais. Há o platonismo para que possamos
nos indispor contra todo tipo de filosofia da contingência. Mas uma boa
parte das pessoas não tem a filosofia para tal e, então, recorrem à
religião. Só que a religião nem sempre garante o que queremos que seja
garantido quando amamos. A religião pode nos dar o encontro com Deus ou
com os deuses, mas nem sempre nos premia com uma ideia, que aparece em
algumas religiões (mas não em todas), de que podemos preservar
eternamente o amor, para além de azares e para além da morte. A tal
“vida eterna” do cristianismo, quando estamos amando, só nos é
interessante se ela vier com um brinde especial, isto é, a garantia de
que poderemos encontrar nosso parceiro no outro mundo, e com as chances
iguais ou melhores que as atuais da nossa relação atual. De que valeria a
vida eterna se eu olhasse para o meu amor, nesse outro mundo, e lá o
visse ou como um estranho ou como um simples amigo? Que mundo horrível
seria o tal Céu Cristão se lá, nele, pudéssemos encontrar filhos e pais
como os que temos aqui, mas que não pudéssemos estar com o nosso grande
amor de modo a continuar com a relação feliz que tínhamos na vida
terrena. O Céu seria como aquela chata situação que vivemos aqui quando
encontramos um ex-amor, sem sentir mais nada por ele, o que nos faz
apenas engolir um vazio imenso. A não ser que nossa forma de amar, no
Céu, nunca mais lembre nada de eros, e seja única e exclusivamente ágape.
Mas aí, o Céu teria nos tirado do amor para nos dar outro tipo de amor.
Viveríamos no Céu como quem vive reduzido, não ampliada. Viveríamos no
Céu como os anjos. É difícil querer ser anjo. Ser anjo por um ato como a
morte? Que golpe heim? Que traição!
Quando as pessoas pensam isso, e
realmente estão amando e vivendo o amor na sua plenitude dos
compartilhamentos, inclusive e principalmente o sexual, só uma coisa
satisfaz: viver isso que se está vivendo no amor. Que nenhum
estraga-prazer me venha com o Céu ou mesmo a vida eterna se isso que
vivo agora, o amor com uma mulher ou um homem, tiver de acabar – todos
nós dizemos isso quando amamos e estamos sendo correspondidos!
Uma boa parte das pessoas, quando está
amando, entende que o melhor que pode fazer é amar mais ainda. O amante
envolve-se de um modo especial na loucura do amor-paixão (e é claro que
amor, aqui, é amor-paixão – o que verdadeiramente chamamos de amor).
Assim faz sob o pensamento de que, quando o amor acabar, pelo desamor ou
pela morte, não vai poder dizer que ficou devendo para consigo mesmo.
Ninguém quer descobrir tardiamente que podia ter sido o mais feliz na
Terra e que, por covardia ou por outra coisa até menos dramática, deixou
tal oportunidade passar ou não aproveitou o acontecimento como deveria
ter sido aproveitado.
Entender essa “chamada do amor”, na hora certa,
leva algumas pessoas a um hedonismo inteligentemente positivo. Admitem:
o correto é o conhecimento de quanto vale o amor em termos de prazer e,
então, maximizar tal prazer dentro de possibilidades reais, ou fazendo a
possibilidade aparentemente irreal ganhar realidade. Fora disso,
pode-se pensar, nada teria tanta importância. Esse resultado é tão
luminoso para quem ama que muitos acham que o amor só está acontecendo,
mesmo, quando essa loucura do amor, esse hedonismo maximizado, é vivido.
Fora disso haveria antes afeição que amor.
Mas, ao mesmo tempo, todos nós sabemos
que se o amor é o amor nessas circunstâncias, então ele é uma
experiência de transbordamento e de loucura. Os religiosos sabem que um
louco desse tipo acabará cuidando mais do seu parceiro ou parceira, do
seu amor, deixando em segundo lugar – e último – a devoção para com
Deus, ou seja, o bem absoluto universal. O bem particular ocupará o
lugar do universal. O parceiro será um deus ou o Deus. Isso é um perigo,
dizem os religiosos, especialmente, entre nós no Ocidente, os cristãos.
A religião se preocupa demais com o
amor-paixão exatamente por causa dessa capacidade de arrebatamento do
amor. A religião cristã, ao menos, é assim. Ela sabe bem que Deus é
ciumento, uma vez que é herdeiro de Jeová, então, ocupa-se em dizer para
os cristãos que o amor-paixão nem é amor verdadeiro. Assim, o amor é
amor, mas o amor-paixão seria apenas uma ilusão.
Nessa linha, também os que nunca deram
muito crédito a Deus – Freud e Stendhal à frente – pintaram o amor
romântico como ilusão e, pior, produtor de ilusões. O amor romântico
seria exatamente aquilo que, para outros filósofos, em especial Marx,
poderia ser chamado de ideologia. Trata-se de algo apreendido por uma
consciência, que nessa hora atua como falsa consciência. Ora, há mais de
religião judaico-cristã nas entrelinhas das doutrinas religiosas que
imaginamos!
Não podendo viver o amor romântico,
porque posto na berlinda como sendo ideologia barata (para o não crente
em Deus) ou pecado (para o crente), esse tipo de amor poderia ser
abandonado, não é verdade? Mas, ele é muito forte e fundamental para que
o abandonemos. Eis porque precisamos tanto dos escritores de romance
folhetinesco, o que no século XIX era algo obrigatório nos bons jornais e
que nos nossos dias aparece em forma de telenovela. Em algum lugar os
dramas banais e espalhafatosos do amor romântico, mexicanizado ou
italianizado, precisam se fazer valer. Podemos não vivê-lo, mas não
temos coragem de extirpá-lo do mundo. Que ele seja sublimado e, então,
“vivido” na literatura de alcance popular. De alguma maneira, o
amor-paixão, o amor entre casais, o amor que, pela lógica atual dos
laicos, deveria valer a pena se casar, pode ser negado por todos, mas
nossa pré-adolescência nunca irá acabar de vez e, de alguma forma, não
tiraremos o amor-paixão do nosso horizonte. Ele estará nos livros ou
ressurgirá, para alguns, nos momentos em que há uma recuperação da
ousadia, da coragem, da inteligência mesmo – aquelas boas coisas que as
boas pessoas nunca perdem.
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* Filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/o-amor-verdadeiro/
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