José Frazão Correia, professor da Faculdade de
Teologia da Universidade Católica Portuguesa, é um dos intervenientes
na 9.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, dedicada ao tema
"Culturas Juvenis Emergentes", que decorre a 21 de junho em Fátima.
O sacerdote colabora no Centro Académico de Braga
(CAB), organismo da Pastoral Universitária dos Jesuítas, e é
responsável pela formação do filosofado da Companhia de Jesus na mesma
cidade.
É da sua autoria o novo livro "A fé vive de afeto -
Variações sobre um tema vital", publicado em maio pela Paulinas Editora,
de que adiantamos um excerto.
Entre os intervenientes na Jornada estará o sociólogo
José Machado Pais, investigador coordenador do Instituto de Ciências
Sociais de Universidade de Lisboa e professor convidado do ISCTE, além
de responsável de vários artigos e obras, a última das quais
"Sexualidade e Afetos Juvenis" (ICS), publicada em 2012.
O cantor e compositor Manuel Fúria, a atriz Inês
Nogueira, o ator Miguel Loureiro e o presidente da Comissão Episcopal
da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, D. Pio Alves, um dos
bispos auxiliares do Porto, também participam na Jornada que inclui
conferências, mesas redondas e momentos artísticos.
As inscrições na Jornada, que decorrem preferencialmente através do site da Pastoral da Cultura, abrem durante este mês.
A fé vive de afeto
«Milagre é o encontro. Tão necessário como a água. Tão
precioso como os poços no deserto. Nós que nos multiplicamos em
infinitos contactos, não é fácil nem frequente que nos encontremos,
tantas são as indiferenças e os cálculos, os desacertos e os desenganos
com que desenhamos as nossas relações. Mesmo as mais próximas. Fazemos
quase tudo e damos tanto para nos atrairmos mutuamente. Mas, logo que
nos aproximamos, já não nos suportamos. Sobretudo, não suportamos
o-espaço-aberto-entre-nós, esse lugar que precede e que excede, a ti e a
mim, sem ser propriedade tua nem minha, para implicar a ambos em algo
maior e, ainda, inédito.
Como um outro ventre ma terno que nos dá à luz, é o
espaço da indigência e da fecundidade, o motivo para uma peregrinação
imprevisível e sem termo. Sempre dom, sempre graça. Sempre tarefa,
sempre custo. Atravessá-lo é um risco. Por isso, tendemos a evitá-lo ou
a combatê-lo. E, assim, permanecemos, desajustadamente, aquém ou além
de nós mesmos e do que entre nós pode ser reconhecido e gerado. Ou
demasiado tímidos ou demasiado arrogantes. Sempre que os meus
interesses não suportam a tua diferença, forço-te a que te dissolvas em
mim. Ou, então, sempre que a intensidade da tua diferença apaga a minha
autonomia, rendo-me a ti e confundo-me em ti. Tão facilmente te
conquisto como me apago. Tão rapidamente te prometo amor quan to te
declaro guerra.
Na realidade, por entre medos e ameaças, receamos tanto
a perda como o ganho. A perda do lugar do próprio saber e das
seguranças já conquistadas, porque o que os outros me prometem ainda é
terra desconhecida. E esta não se atravessa com mapa detalhado e não é
claro que se encontre sempre ouro. Mas, estranhamente, tememos, também,
o ganho. O ganho da diferença. Isto é, do reconhecimento de que não
posso ser sem me expor ao que tu e todos os outros são. É a regra
difícil desse estranho jogo no qual quem quiser ganhar há de perder.
Ou, melhor, há de perder-se. Sim, no encontro de afeto que é laço de
vida.
Porém, entre-o-tanto-e-o-tão-pouco-que-somos, o milagre
acontece. E acontece sempre que nos reconhecemos reconhecidos. Quero
dizer, sempre que reconheço que o que existe de mais verdadeiro em mim
me é restituído pelo espaço de humanidade que se abre entre nós. E não
tenho que me anular diante de ti. É na disponibilidade que manifestas
em dar-me tempo, o tempo de que preciso para percorrer as minhas
distâncias, que me reconheço reconhecido. E na palavra que me dás para
que eu possa dizer-me, sim, porque não poderia ter consciência de mim e
do dom que a vida é se não narrasse o meu próprio caminho e as
direções que tomei, ainda que, tantas, tenham sido erradas. E, também,
no lugar que me cedes para que eu assuma, de novo, o meu próprio lugar,
à medida e ao ritmo das minhas possibilidades.
Quando me reconheces no que sou – e não me exiges que
finja ser o que não sou –, sou eu que reconheço com gratidão o quanto
já me foi dado e, sobretudo, o que ainda poderei ser. Assim mesmo,
sempre que entre-nós-me-reconheço-reconhecido, já bebo da vida que é
eterna – toco a sua origem sagrada, recoloco-a nos lugares do meu
quotidiano, confirmo a bondade do desejo de a ver resgatada à usura do
tempo. No teu reconhecimento, vivo. Entre-tanto, aprendo a reconhecer que, assim, Deus se me vai revelando.
É este o milagre que vejo acontecer no encontro de
Jesus com a samaritana, à beira do poço (Jo 4,1-41). Nas insinuações e
nos mal-entendidos, nos suspiros e nos pedidos, é pelo reconhecimento
recíproco que a água vai jorrando. Jorra a Vida pela vida de um e de
outro: a vida ambígua da mulher que Jesus sabe fazer contar; a vida de
que Jesus vive, da qual a samaritana quererá beber. É Deus que se
insinua no espaço de hospitalidade que se desenha entre a sede de um e a
água do outro. E o que há entre eles senão o poço do reconhecimento?
No reconhecimento da verdade do que esta mulher é, Jesus chega a ser
reconhecido como dom de Deus.
Não estranhemos, pois, que Jesus diga tanto de si nos
encontros que vive entre nós. Uns, inesperados, como que por acaso.
Outros, improváveis, mas desejados e desenhados ardentemente. Jesus, o
reparador dos encontros em falta, o desenhador de encontros a haver. O
Filho revela-se, assim, um homem entre homens e mulheres: judeus e
samaritanos, dos nossos e dos que não são como nós. As circunstâncias e
as ocasiões – um poço ao meio-dia, uma refeição ao entardecer –
circunscrevem o lugar no qual se reconhece Aquele em quem e por quem
Jesus vive. Entre nós, com tanto afeto e realizando tantos laços, revela-se-a-Vida-a-agir, fonte da qual brotam as águas, saciedade à qual suspiram as sedes.
Poderá a fé no Filho de Deus encarnado ser menos que
esta graça imensa de nos reconhecermos biograficamente reconhecidos no
dom da vida que corre entre nós?
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Fonte: http://www.snpcultura.org/21/05/2013
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