Carlos Felipe Moisés*
Peço ao leitor a gentileza de passar os olhos por esta meia dúzia de
frases, colhidas ao acaso na internet: "Vende-se casa duplex, moderna,
estilo contemporâneo", "O estilo contemporâneo seduz muitos
decoradores", "O Hotel X é compacto e moderno, tem quartos de estilo
contemporâneo", "Fulano executa sua composição mais recente, erudita,
clássica, de estilo contemporâneo", "Música contemporânea é qualquer
música contemporânea de quem fala", "Literatura contemporânea: a
literatura após a 2ª Guerra Mundial".
A pergunta é: o que "contemporâneo" significa, nessas frases? Mesmo
tendo relido com mais atenção, você talvez ainda não saiba responder.
Não se preocupe. Há muito a palavra deixou de transmitir um significado.
Ela apenas desperta em nós uma sensação agradável, que nos induz a
pensar em algo novo, avançado, sofisticado, charmoso, chiquérrimo,
descolado... "Contemporâneo" não quer dizer nada disso, mas seu uso
indiscrimado criou em torno do vocábulo uma certa aura de fascínio
irresistível. Palavra da moda, a intenção de que signifique muito faz
com que não signifique nada.
A palavra é antiga, provém do latim, e seu uso remonta ao final do
século XVIII, quando os historiadores passaram a chamar de "Idade
Contemporânea" o período que se abre com a Revolução Francesa (1789) e
se estende até hoje. Na origem, significava: qualquer coisa que existe
ou existiu simultaneamente a outra. Sinônimos: coevo, coetâneo,
concomitante, algo marcado pelo calendário e que só faz sentido em
cláusulas relacionais.
A ideia de contemporaneidade é sempre relativa. "A é contemporâneo de
B" faz sentido. Já a cláusula absoluta "A é contemporâneo", ponto, não
quer dizer nada. "Contemporâneo" deve vir sempre acompanhado da
preposição "de" (a comparação com o inglês é esclarecedora:
"contemporary" ou "contemporaneous with").
Sabe-se ou conviria saber que algo só será "contemporâneo" por um
breve tempo, cada vez mais breve à medida que nos aproximamos da
atualidade. É só uma "classificação" provisória, à espera de que o tempo
passe, ou à espera de que surja um nome próprio para a coisa em causa,
que só será rotulada de "contemporânea" enquanto não soubermos
designá-la com propriedade.
O rótulo não diz nada quanto às características, o teor, a natureza, a
definição ou o conceito da coisa. Antes do uso abusivo do termo (que
desponta, ainda tímido, com a eclosão das vanguardas na virada do século
XIX para o XX), os estilos, por exemplo, tinham nome próprio:
neoclássico, romântico, realista, impressionista etc. Mas a partir daí
não mais: a desconcertante multiplicidade de tendências que se digladiam
nesse período foi logo simplificada sob o rótulo "moderno", igualmente
vazio.
O curioso da história é que classificar ou dar nome próprio não é
imprescindível. Se você não souber que esta pintura está ainda presa ao
gótico pós-renascentista, e aquela outra, a certo maneirismo que logo se
converterá em rococó (estamos falando de pintura barroca, século XVII,
mas é só um exemplo; poderíamos falar de música, literatura, moda,
decoração etc., de qualquer época), isso não impedirá que você aprecie a
exuberante beleza da arte em causa. A classificação pode ficar para
depois. Mas se despejarem sobre você, diariamente, a falsa classificação
"contemporâneo", como se fosse preciso fixar de antemão o nome pomposo e
vazio, para só em seguida você se inteirar do que se trata, sua
capacidade de percepção ficará comprometida. E você correrá o risco de
se entusiasmar só de ouvir a palavra mágica, antes de prestar atenção a
seja o que for.
É exatamente essa a estratégia da contemporaneidade triunfante: "a
informação 24 horas por dia e o grau zero do pensamento" (Gilles
Lipovetsky, "O Império do Efêmero", Companhia das Letras - leitura que
vivamente recomendo, caso você esteja interessado em conhecer um
diagnóstico severo da sociedade... contemporânea).
Há muito "contemporâneo" deixou de ser mero índice temporal (como o
dicionário e a História ensinam) e se transformou em juízo de valor,
arbitrário. É que vivemos numa "sociedade em que a opinião espontânea
das pessoas é a de que, por natureza, o novo é superior ao antigo";
estamos submetidos ao "império do capricho, sustentado pela paixão da
novidade" (Gilles Lipovetsky).
A pergunta mais incômoda é: qual o prazo de validade do
"contemporâneo"? Mais de um século atrás, a revista "La Vie
Contemporaine" (a vida contemporânea), publicada em Paris, dedicada às
artes, à moda, à decoração, ao bom gosto, às boas maneiras, ao bem
viver, em suma, brilhou em todas as capitais europeias, de 1893 a 1897.
Acabou por envelhecer e desapareceu. Hoje há revistas que navegam nas
mesmas águas, nos mais váriados ramos de atividade e interesse, todas
obcecadas com o propósito de "inovar", a cada número. Mas todas sabem
que, ao sair da gráfica, a edição já estará obsoleta.
O ritmo acelerado com que as novidades surgem, ainda que às vezes
sejam velharias requentadas, obriga quem se pretenda cem por cento
"contemporâneo" a mudar de aparência, de gosto, de estilo, pelo menos
uma vez por semana. Ou a "mudar de filosofia como quem muda de camisa",
na definição de Fernando Pessoa. Deve ser por isso que Drummond um dia
desabafou: "E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno".
Hoje nada permanece, nada dura mais que dois ou três dias. O
transitório (como é o caso de tudo o que é dito "contemporâneo") deixou
de ser mera passagem entre o que já foi e o que ainda não é, para se
tornar condição permanente. É a transitoriedade como valor em si,
independentemente do significado que a paixão novidadeira possa ter. Daí
a valorização do "retrô" (não confundir com "retrógrado"). O
conservador quer de fato voltar atrás; já o "moderno" toma a liberdade
de, vez ou outra, pinçar lá de trás algo que o capricho da hora decida
repor em circulação, tornando-o tão "contemporâneo" quanto qualquer
novidade.
A cena é comum. Se você não protagonizou, ainda vai protagonizar uma
parecida. Depois de ouvir a ensaiada explanação sobre um quadro, uma
gravura, uma peça de decoração, em que "contemporâneo" bimbalhou várias
vezes, você pergunta ao expositor: o senhor por favor me explicaria o
que é "contemporâneo"? Ele lançará na sua direção aquele olhar que
fulmina de alto a baixo, expressão de desdém nos cantos dos lábios, e
exclamará: "Ora, contemporâneo é contemporâneo", enquanto gira nos
calcanhares e segue no rumo da sala mais próxima. Você entenderá a
resposta: "Que pergunta mais idiota! Como é possível alguém não saber o
que é contemporâneo?!".
Talvez sirva de consolo reparar que, dentre as frases de que
partimos, a que parecia mais enrolada ("Música contemporânea é qualquer
música contemporânea de quem fala") é a única que faz sentido. É só isso
mesmo, mais nada. "Contemporâneo" é o que você quiser, ou tiver coragem
de afirmar que é.
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* Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite Nula", 2008), crítico
literário ("Tradição & Ruptura") e ex-professor da USP e da
Universidade da Califórnia, Berkeley.
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