sexta-feira, 24 de maio de 2013

Deus difícil

Johan Konings*


O meu texto anterior (“Deus ou a transcendência”, Dom Total 15/05/2013), graças a Deus, suscitou perguntas. Alguém escreve: “Parece querer dizer que você se preocupa com as pessoas que não têm um amparo, que não têm Deus, pela perda do significado da palavra. Mas a última frase me parece condenatória: ‘Haja coragem para sermos honestos ao nos confrontarmos com... Deus’. Por quê? Deus vai querer um confronto comigo e vai me condenar porque não o signifiquei adequadamente? Em quê preciso ser honesto?”

Explico: não pensei no confronto com Deus no último juízo e menos ainda nas penas do inferno. Pensei na honestidade para com ‘deus’ (ou o transcendente, ou o mais profundo...) no sentido da autenticidade existencial. Confrontarmo-nos com o último sentido de nossa vida sem subterfúgios. O contrário da religião melosa, cheia de anjinhos, que edulcora a dura realidade da vida, que escanteia a difícil busca de um sentido inabalável e a corajosa esperança lá onde não parece haver esperança – a ‘esperança contra toda a esperança’ de Abraão.

A religião não é um lugar para se sentir à vontade, mas para se deixar incomodar por Deus. É a isso que eu chamo de ‘confronto com Deus’. Para nós, cristãos, esse lugar não é o espaço vazio entre as asas dos querubins que cobriam a arca da Aliança, no templo de Jerusalém. Aliás, admiro o simbolismo profundo dessa representação, mas, sem desprezar esse simbolismo, nós acreditamos que esse espaço no qual Deus se apresenta para nos incomodar é, antes de tudo, Jesus de Nazaré. Definitivamente.

O que digo pode soar estranho num momento em que ‘um rumor de anjos’, como disse Peter Berger, invade a sociedade pós-moderna. Não tenho nada contra um momento de descanso num espaço sagrado, desde que sirva para continuar a caminhada. Elias percebeu a voz de Deus na brisa depois da tempestade, e pôs-se a caminho (1 Reis 19,9-18). “Terrível é este lugar”, disse o patriarca Jacó, quando percebeu a presença de Deus perto de si. E pôs-se a caminho (Gênesis 28,17-18).

A paz na presença de Deus não é outra coisa senão a certeza de ter-se entregue a ele, em toda honestidade. Quem tenta driblar Deus, não encontra paz, mas se ilude, por mais que encha sua vida com símbolos religiosos.

O que parece ser um rumor de anjos bem pode ser a banalização do sagrado. Em vez do fogo da sarça ardente (Êxodo 3,1-6), uma lampadinha elétrica ou um LED piscando sem perigo.

Deus não é fácil. Conta o Mestre Eckart, místico medieval, que seu pai, valente nobre da Renânia, tinha o costume de desafiar seus igualmente valentes hóspedes. Durante a noite, simulava haver algum assaltante no bosque em torno do castelo e pedia ao hóspede que ajudasse a enfrentá-lo. Ele mesmo saía por um lado, o hóspede por outro, ambos com elmo e armadura, a viseira cobrindo o rosto. Ora, em vez de enfrentar o suposto assaltante, o pai de Eckart ia travar duelo com o próprio hóspede. Até que, um dia, o hóspede da vez quase o matou. Pois bem, conclui Eckart, “esse hóspede tornou-se o maior amigo do meu pai...”.

Assim é Deus.

Não se trata de pôr Deus à prova para ver se vai dar-nos o que nós queremos. Trata-se de se deixar provar por Deus. Expor-se, nas dificuldades inelutáveis da vida, diante daquele cujos caminhos superam os nosso como céu transcende a terra (Isaías 55,8-9), mas que é também o Deus da misericórdia e do amor leal (Êxodo 34,5-6).

Na dificuldade de compreender, de encontrar um sentido, é permitido questionar Deus. Se ele for Deus, ele vai aguentar. Jó questiona Deus durante trinta e oito dos quarenta e dois capítulos do livro que tem seu nome. Não receberemos uma resposta fácil, com um clique no computador. Mas, como Jó, de repente nos daremos conta de estarmos lidando ou lutando com Ele mesmo. E isso basta (Jó 42,1-6).

 *Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara. 
Foto: Reprodução
FONTE: http://www.domtotal.com.br/colunas/detalhes.php?artId=3609

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