Jessé de Souza*
Filipe Araújo/Estadão
Filósofa Marilena Chauí propõe reflexão sobre a classe média
Singularmente perversa e infantilizada, nossa classe média é o
suporte de uma visão de mundo que transforma
exploração em generosidade
A professora Marilena Chauí propõe uma discussão
interessante e oportuna acerca da classe média brasileira. Seu
julgamento indignado é certeiro, ainda que abstrato e indiferenciado.
Mais interessante que o burburinho causado é perceber a "justificação"
do privilégio dessa classe para que possamos compreendê-la. Antes de
tudo, o que é "privilégio"? E como ele se reproduz? Em todas as
sociedades modernas, como a brasileira, os privilégios que asseguram
acesso diferencial aos bens ou recursos que todos desejamos, sejam
materiais, como carro e casa, sejam imateriais, como o prestígio e o
charme que asseguram a conquista de um parceiro erótico, por exemplo,
são explicados a partir da apropriação diferencial de certos "capitais" -
que vão pré-decidir toda a competição social por todos os bens
escassos, materiais e imateriais, que todos desejamos as 24 horas do
dia. Esses "capitais impessoais", antes de tudo o capital econômico e o
capital cultural, são, portanto, o fundamento opaco e nunca assumido de
toda a dominação social injusta.
A regra básica da cegueira na qual todos vivemos é que percebemos o
"capital econômico", mas nunca percebemos o "capital cultural". É que o
capital cultural não são apenas os títulos escolares de prestígio que
garantem à classe média seus empregos bem pagos e reconhecidos. Capital
cultural é também e principalmente toda a herança imaterial e invisível,
tanto emocional quanto cognitiva e moral, que recebemos desde tenra
idade, sem esforço, no convívio familiar, como a habilidade para o
pensamento abstrato, o estímulo à concentração - que falta às classes
populares e a condenam ao fracasso escolar -, a capacidade de perceber o
futuro como mais importante que o presente, etc. Isso tudo somado
constrói o indivíduo das classes alta e média como "vencedor" na escola e
depois no mercado de trabalho, não por seu "mérito individual", como os
indivíduos dessas classes gostam de pensar, mas por uma "vantagem de
sangue", familiar e de classe, como em qualquer outra sociedade
tradicional do passado.
Como a herança do capital cultural, enquanto pressuposto emocional,
cognitivo e moral de todo privilégio, é invisível e opaca à consciência
cotidiana, a falácia do "milagre" do mérito individual pode campear á
vontade. Esse falso milagre é o fundamento que legitima todo tipo de
apropriação injusta de privilégios permanentes, condenando os indivíduos
que tiveram o azar de nascer na família e na classe errada à miséria e à
humilhação, como se alguém pudesse "escolher" ser pobre e desprezado. A
dominação social moderna é produzida por um engodo, uma fraude, uma
mentira compartilhada por todos os privilegiados. Mas isso acontece
exatamente do mesmo modo nas sociedades que admiramos e imitamos como
França, Alemanha ou Estados Unidos.
Mas o que há de especificamente perverso nas classes dominantes
brasileiras que não existe nessas outras sociedades? É que no Brasil as
classes média e alta não apenas repetem a distorção da realidade que
permite perceber o privilégio herdado como se tivesse nascido do próprio
esforço, mas também "tiram onda" de que são generosas e críticas. Essa é
uma fraude que um republicano americano típico jamais faria. Como isso
se tornou possível? Ainda que poucos percebam, o mundo social não é
apenas dinheiro e o que o dinheiro compra. O mundo social é também
construído por ideias que lhe dão compreensibilidade e orientam o
comportamento prático das pessoas. O Brasil moderno tem como seu "mito
fundador" - mito esse que coloniza todos os partidos políticos
indistintamente - uma reformulação peculiar operada por Sérgio Buarque
no "mito nacional" sintetizado por Gilberto Freyre. São de Sérgio
Buarque as bases ideais do Brasil que se compreende como oposição entre
um Estado ineficiente e corrupto e um mercado virtuoso, santo e
eficiente.
Essa ideia absurda - afinal não existe corrupção no Estado que não
seja estimulada por interesses do mercado - é hoje uma espécie de
segunda pele dos brasileiros, muito especialmente nas classes médias.
Por quê? Porque ela confere algo indispensável ao privilegiado que é a
necessária "boa consciência" que essas classes precisam ao localizar em
um "outro", que ninguém define, uma "elite abstrata" que pode ser todos e
ninguém, a fonte de todo mal nacional e se eximir de toda a
responsabilidade. Afinal, se todo o mal está no Estado corrupto então se
pode continuar, com boa consciência e se achando uma pessoa muito
legal, a explorar cotidianamente o trabalho mal pago das classes baixas,
que poupa o tempo da classe média para que essa possa se dedicar a
incorporar ainda mais capital cultural para reproduzir, em escala
ampliada, seus próprios privilégios de classe. O fundamento do
privilégio da classe média é, antes de tudo, o "conhecimento" valorizado
- que exige tempo para ser apropriado - indispensável à reprodução de
mercado e Estado. Essa "luta de classes", invisível e cotidiana,
tipicamente brasileira, ninguém vê porque nesse mundo absurdo da
irresponsabilidade social também a desigualdade é culpa da corrupção e
do patrimonialismo do Estado.
A ideologia do patrimonialismo - leitura, aliás, superficial e
distorcida de Max Weber compartilhada por Buarque e pela maioria dos
intelectuais brasileiros de hoje - domina, com sua institucionalização
partidária, escolar e midiática, toda a vida política do Brasil moderno,
abrangendo, por exemplo, em igual medida, tanto o PSDB quanto o PT.
Essa é a ideologia da "irresponsabilidade social praticada com boa
consciência", que permite encobrir todos os conflitos verdadeiros ao
criar falsas oposições e, assim, silenciar as dores e sofrimentos
cotidianos de uma das sociedades mais injustas e desiguais do planeta. A
nossa classe média é singularmente perversa e infantilizada, apenas por
ser o suporte social mais típico de uma visão de mundo narcísica que
transforma exploração em generosidade impedindo todo aprendizado
possível e toda crítica. Mas a cegueira e o atraso da consciência moral
comprometem a sociedade como um todo.
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* JESSÉ DE SOUZA, DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNIVERSIDADE HEIDELBERG,
NA ALEMANHA, É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA E AUTOR
DE OS BATALHADORES BRASILEIROS - NOVA CLASSE MÉDIA OU NOVA CLASSE
TRABALHADORA? (EDITORA UFMG)
Fonte: Estadão on line, 18/05/2013
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