quarta-feira, 22 de maio de 2013

Entrevistas: Maffesoli e a pós-modernidade

Juremir Machado da Silva*

Michel Maffesoli,o pensador do novo tribalismo

Autor, entre outros livros, de A Conquista do Presente , O Conhecimento Comum, O Tempo das Tribos e A Contemplação do Mundo, o sociólogo francês Michel Maffesoli, nascido em 1944, enfrentou os clichês da intelectualidade e ousou dizer que a pós-modernidade caracteriza-se pelo tribalismo e não pelo individualismo levado às últimas consequências. Pensador extraordinário, construiu um modo particular e generoso de olhar o mundo contemporâneo. Alheio às oposições simplistas do debate entre esquerda e direita, mostra o que as aparências ensinam enquanto os intelectuais convencionais procuram os mistérios de obscuras e abstratas profundidades. Em duas entrevistas formais, novembro de 1993, em Porto Alegre, e março de 1995, em Paris, Michel Maffesoli apresenta a sua maneira original de olhar a vida.

I parte
A política acabou ou aconteceu uma mudança na forma de exercê-la?
Michel Maffesoli - Trata-se do fim de um sentido da palavra política, aprendido no fim do século XVIII: uma concepção da vida voltada para o futuro. É essa noção que repousa sobre o projeto, mais preocupada com o amanhã do que com o hoje, que acredito estar superada. Parece-me que na atualidade o futuro não interessa mais à vida social, ao povo. Falemos do povo: as pessoas banais que vivem o cotidiano não se importam mais com o futuro. Não é a questão da história ou das teorias debatidas por intelectuais que tem importância. Nada a ver com Fukuyama e suas abstrações. O foco do interesse deslocou-se para o que se vive aqui e agora. 

Isso implicará o fim dos partidos políticos ?
Michel Maffesoli - Significa o fim do interesse da população pelos partidos políticos. Mas eu falo no que diz respeito à Europa, que conheço bem. Há um desengajamento profundo em relação à vida política, desde que não se dê o sentido original à palavra político : a vida da cidade.

Disso deriva uma sociedade mais conservadora ?
Michel Maffesoli - Não. Esse é um falso problema, uma maneira inútil e polêmica de colocar a questão. Não. Trata-se de um outro mundo, de uma outra perspectiva de olhar a realidade. Deixa-se a preocupação exclusiva com o futuro para se desenvolver um interesse acentuado pelo aqui e agora. Quando se retoma o sentido original da palavra política, a participação na vida da cidade, então a situação é diferente. Nesse caso, o político faz sentido. Mas a política no mundo contemporâneo deixou de lado a cidade para se dedicar a grandes ideias, utopias, projetos e narrativas. Pensar o fim do político é caminhar para a reflexão sobre o doméstico, os acontecimentos presentes.

O senhor continua a teorizar sobre a pós-modernidade. Qual a relação do fenômeno pós-moderno com o neoliberalismo ?
Michel Maffesoli - Nenhuma. A palavra pós-modernidade é técnica. Não se trata de um conceito. Ela descreve o que está sendo elaborado depois da modernidade. O que é a modernidade ? Era uma concepção da vida gestada desde o fim do século XVIII e assentada sobre uma concepção racional, futurista e progressista do mundo. Isso está acabando. Constato. O trabalho do intelectual consiste em refletir sobre o que está nascendo e remete ao cotidiano. É um falso processo ligar a pós-modernidade ao neoliberalismo. Este tem uma postura econômica precisa e implicações políticas específicas e não se preocupa com questões intelectuais ou de comunidades de base. Nada tenho a ver com o neoliberalismo.

O fim das utopias conduz à impossibilidade da construção de um mundo mais justo, democrático e solidário?
Michel Maffesoli - A morte das grandes utopias não significa a inexistência de pequenas utopias, vividas no cotidiano em doses homeopáticas. Não há mais o grande projeto marxista, voltado para a sociedade perfeita, mas há toda uma série de utopias minúsculas, intersticiais, que não são pensadas como utopias, mas vividas como tal. Na história, olhada com tranquilidade, existem momentos que privilegiam as utopias grandiosas e outros, como a Idade Média e a nossa época, debruçados sobre o cotidiano.

O senhor poderia dar exemplos de pequenas utopias ?
Michel Maffesoli - Cada um de nós pode localizá-las. Eu estudo muito os pequenos grupos de jovens, que chamo de tribos, e a maneira como desenvolvem a vida social. Examino os mecanismos que encontram para estabelecer novas formas de solidariedade, de vizinhança ou de resistência contra o desemprego. Interessam-me as construções simbólicas que reinventam a vida sexual e a família. Percebo o alastramento de uma espécie de família ampliada. São pequenas utopias. É preciso levar em consideração esses fenômenos para a boa compreensão deste final de século.

Por que o senhor considera o Brasil um laboratório da pós-modernidade ?
Michel Maffesoli - É uma posição pessoal derivada da minha simpatia pelo Brasil. Mas existem aspectos precisos. O Brasil é o país da diversidade e da pluralidade. Há um Brasil nordestino, outro paulista, um outro gaúcho… Para bem ou mal, o Brasil é multifacetado. Uma das características principais da pós-modernidade, para mim, é a pluralidade, o mosaico. O essencial, no entanto, é que há uma coerência nessa pluralidade. Apesar da abrangência das diferenças, o conjunto se reproduz e os fragmentos estão cimentados.

Qual é a diferença entre pós-modernidade e modernidade tardia?
Michel Maffesoli - O problema é teórico. A disputa semântica é supérflua. A pós-modernidade refere-se aos acontecimentos posteriores à modernidade. A ideia de modernidade tardia, defendida por Habermas, pretende salvar as utopias modernas, os ideais e os projetos. Trata-se, com a expressão modernidade tardia, de fazer crer que a modernidade continua a gerir seus sonhos e de que a sociedade perfeita será alcançada um dia. É como pedir apenas um pouco mais de paciência. A racionalidade das narrativas legitimadoras da modernidade continua a condicionar muitas análises. É compreensível. As incertezas atuais espalham melancolia e depressão. Busca-se, então, lenitivos. Mas, nas ruas, o povo vive outros sentidos e preocupações.

II parte

O fim do ideal democrático e o nascimento do ideal comunitário
O senhor é um dos grandes sociólogos contemporâneos empenhado na decifração do universo imaginal. A imagem é um poder ou o poder necessita de imagem?
Michel Maffesoli - A imagem interessa-me muito e eu me inscrevo na linha de alguém mais importante na análise desse fenômeno que é Gilbert Durand. A base teórica de minha reflexão permanece a obra de Durand. Na atualidade, a imagem é um poder. Durante a modernidade, entretanto, ela foi secundarizada. Poder antropológico que não cessa de voltar à boca do palco. Através das novas tecnologias, a imagem retoma o poder que tinha na antiguidade e nas sociedades tradicionais. Trato disso no meu livro “A Contemplação do Mundo”. Desde o momento em que a imagem reassume o seu poder antropológico tudo o que é da ordem do poder passa a ter necessidade dessa imagem. O poder sempre administra o que é importante. Nas sociedades tradicionais, o sacerdote e o guerreiro ou o sacerdote e o rei administravam os símbolos e as imagens correspondentes a eles. Hoje, para além da razão, o poder – político, econômico ou intelectual – precisava recorrer às imagens.

As imagens estão a serviço dos homens ou os homens tornaram-se escravos das imagens?
Michel Maffesoli - Em princípio, a imagem está a serviço do Homem. Trata-se de uma questão moderna que se apoia sobre a ideia de controle de algo. Acredito que somos mais dominados pela imagem do que a dominamos. Existem efeitos subliminares da imagem que escapam a todo controle. A penetração imaginal provocada por elementos que não pertencem ao nível da consciência indica que há uma ilusão a respeito da nossa capacidade de submeter a imagem. 

Na contramão dos diagnósticos sobre o individualismo contemporâneo, o senhor continua a falar em tribalismo, de crise da representação e novas formas de “socialidade”. Esses fatores conjugados podem colocar a democracia e todos os valores de solidariedade, liberdade e comunicação entre as culturas em perigo?
Michel Maffesoli - Estou convencido de que o tema do tribalismo, em oposição ao individualismo, vem sendo cada vez mais reconhecido como pertinente, mesmo se os intelectuais resistem. Discuto com os homens que fazem a vida, de empresários a funcionários comuns, e percebo que eles, conhecedores da realidade concreta, visualizam também o aspecto tribalista da atualidade. Das empresas à moda, passando pelos jovens, vê-se bem a existência de algo que ultrapassa o individualismo. Passados vários anos da publicação de meu livro “O Tempo das Tribos”, descubro que a realidade encontrou a ficção ou, em resumo, a realidade social é essencialmente tribal. A palavra tribalismo, recusada naquela época, tornou-se amplamente empregada em nossos dias, ainda que nem sempre se faça referência a mim. Sem problema. Aquilo que era criticado de maneira moralista passou a ser quase um nome comum. Cada época possui um termo que a sintetiza. O tribalismo não esgota toda a nossa realidade social, mas dá conta de uma realidade precisa.
O mundo intelectual, globalmente, mesmo onde a capacidade de análise é mais generosa, continua a ter dificuldade para integrar esse fenômeno. O racionalismo não está apto a captar a especificidade do tribalismo. Feita a constatação de que não é o indivíduo a prevalecer, temos de buscar outras categorias. Democracia, representação política e ideal democrático não funcionam mais. Mas isso não implica a inexistência de outra maneira de organização.
Vivemos o fim do ideal democrático e o nascimento do ideal comunitário. Há, enfim, outras formas de solidariedade social e de organização política a partir das comunidades de base: o primado da subjetividade de massa em contraposição à subjetividade individual própria à representação democrática (republicana). Afirmar que chegamos ao fim do ideal democrático nada tem a ver com uma atitude reacionária ou de retorno à barbárie. Assistimos à emergência do novo no terreno do político.

O seu livro “A Contemplação do Mundo” apresenta uma crítica consistente do reducionismo econômico e destaca a importância da contemplação, da observação, no cotidiano das sociedades ocidentais de hoje. A economia da imagem tomou o lugar hegemônico da produção?
Michel Maffesoli - Sim. Anunciar o fim de algo é sempre um pouco ingênuo, mas a concepção econômica do mundo foi o grande vetor da modernidade e, em contrapartida, pode-se perceber a existência de outros elementos em jogo na atualidade, embora não seja fácil delimitar a natureza dos novos fatores. Podemos falar em aspectos imateriais que alimentam a vida social. A Câmara do Comércio de Marselha, por exemplo, atenta a essas modificações, procurou-me para que eu participe de uma discussão sobre o assunto. Mesmos os empresários sabem que a visão econômica tradicional atingiu o seu limite e que para compreender o real é preciso integrar o não-econômico.
Qual será o grande vetor do futuro? Marx e outros desvelaram os contornos do econômico como linha mestra da modernidade. A economia enquanto administração da produção persistirá, mas progride a relativização da economia no sentido da definição da vida pela produção. A ecologia será talvez a diretriz do amanhã. Ecologia na acepção ampla dada a esse termo por Morin. Do respeito à natureza ao hedonismo, ao prazer corporal, ao lazer, ao turismo, etc. Nisso tudo há sempre uma dimensão econômica. Antes, a economia era tudo; hoje, uma parte.

Pode-se construir um mundo melhor quando se está imerso em uma cultura da contemplação?
Michel Maffesoli - Outro dia, durante uma conferência no Brasil, onde testo as minhas ideias, afirmei de maneira provocadora que antes se pensava no intelectual como alguém que “dizia” o mundo. Ora, o mundo “diz-se” através dos homens. Ao empregar a palavra contemplação talvez eu não tivesse consciência da sua pertinência. Agora, reflexão feita, persisto, assino e descubro o quanto o termo é correto. A contemplação dos monges na Idade Média não era necessariamente passiva e induzia determinados modos de comportamento, de generosidade, caritativos, destinados a atenuar a infelicidade do mundo. Creio que existe hoje uma forma de contemplação capaz de estimular a generosidade nas relações entre os seres, respeitando-se o outro pelo que é e não pelo que se gostaria que fosse. Mantenho-me atento à razão sensível, interna, e creio que a contemplação pode resultar em contribuição, ainda que não seja no sentido da felicidade distribuída por alguém em posse de todo saber e de todas as soluções. O pensamento sincrético oriental mostra que, sem ter uma concepção brutal de intervenção, a contemplação pode operar como uma forma de participação.
Realizei o sonho de conhecer o interior do mosteiro dos Beneditinos de Olinda. Eu sempre me interessei pelas regras de vida dessa ordem na França. Fiquei surpreso, diante desses religiosos, em torno de 15, pelo fato de que não integram a Teologia da Libertação. Presos à dinâmica da oração e do trabalho (lógica da contemplação), eles conseguem, em contrapartida, fazer jorrar o respeito pelo próximo e dar o melhor deles mesmos para a comunidade. Enquanto outros « sabem » o caminho a ensinar, esses beneditinos preferem a integração.

O Brasil fornece-lhe inspiração?
Michel Maffesoli - Sim. Mas privilegio o respeito pelos trabalhos dos pesquisadores brasileiros que, mesmo próximos de mim, examinam as relações entre as teorias europeias e a cultura brasileira. O senhor, por exemplo, defendeu tese comigo sem negar a influência de Morin, Baudrillard e Duvignaud. Assim é que deve ser. Outros, entretanto, e penso em Althusser, que teve repercussão no Brasil, agiam no não-respeito.

O senhor cita com frequência Heidegger, Nietzsche, Jünger, Pareto e muitos outros que tiveram laços diretos com a extrema-direita ou foram apropriados de alguma maneira, por exemplo, pelo nacional-socialismo. Qual a sua reação quando os adversários afirmam que o senhor é o continuador de uma filosofia reacionária centrada sobre temas caros à direita como a « comunidade »?
Michel Maffesoli - Não reajo. Com o avanço da idade, não tenho mais vontade de reagir, o que é reacionário. Não sou politicamente de direita. A minha sensibilidade é popular em função de minhas origens e de minha personalidade. As ideias que trabalho decorrem em grande parte dessa perspectiva que nada tem a ver com privilégios. Na esquerda, porém, há toda uma trajetória e uma atitude reacionárias feitas de ausência de generosidade e por pequenos ou grandes burgueses. Temos a « esquerda caviar ». Em 1981, quando Mitterrand foi eleito, escrevi um artigo sobre a necessidade de manter distância em relação aos novos donos do poder. O porta-voz de Mitterrand escreveu-me uma carta agora na qual reconhece que a « esquerda caviar » estava mais próxima da direita do que do socialismo.
A utilização de autores diabolizados não é para mim um insulto. Não sou heideggeriano, embora conheça bem a filosofia de Heidegger. Estou de fato próximo de Nietzsche. Interessei-me por Jung, também acusado de cumplicidade com o nacional-socialismo, a título pessoal e leio-o sistematicamente nos últimos anos. Estimo Jünger, tive uma correspondência com ele, mas não respaldo a sua adesão momentânea ao nacional-socialismo. Pode-se pegar ideias em autores que em certos momentos tiveram posturas políticas com as quais não concordamos. Na França, Heidegger foi levado ao pináculo. Depois, começou-se a descobrir o que todos sabiam, certas relações com os nazistas, e ele foi rejeitado em bloco. Adoração e rejeição sistemáticas são atitudes imbecis e próprios aos inseguros. O intelectual deve ser um aristocrata – livre de espírito – decidido a não se tornar escravo de nenhum pensador.

Seria possível afirmar que, por não nutrir nenhuma nostalgia de um passado mítico, não temer a tecnologia e não mergulhar no pessimismo, o senhor é o único verdadeiro pós-moderno. Como integrar Nietzsche, antimoderno, e Heidegger, que desconfiava da técnica, no pensamento caracterizador de uma época marcada pela aceleração e desenvolvimento tecnológico de ponta?
Michel Maffesoli - Escrevi um texto em 1970 sobre Heidegger e a técnica que não foi publicado. Talvez eu o retome. Heidegger tem uma relação ambígua com a técnica. Ao mesmo tempo, critica-a em nome do passado e reconhece a irreversibilidade do movimento. Certos autores têm intuições premonitórias ao menos em uma parte do que escrevem. Nietzsche e Heidegger fazem parte dessa categoria. Jünger também. Quais são essas intuições? A relativização, por exemplo, da hegemonia explicativa da economia. Nietzsche e Heidegger retomaram aspectos da existência humana que a modernidade havia relegado: a paixão, o onírico, o imaterial, etc. Eu uso e abuso dos autores sem me prender a eles. Eis a antropofagia do modernismo de Oswald de Andrade. O fato de que interpretações mal-intencionadas aproveitam isso para me estigmatizar e rotular à direita não me interessa, pois nascem dos mesmos que virão amanhã me convidar para dar conferências.

A sua crítica do racionalismo cego e a abertura ao não-racional são vistas por vezes como um elogio do irracional. O senhor é no fundo um místico?
Michel Maffesoli - A perspectiva mística interessa-me cada vez mais, assim como a contemplação, e permite-me uma melhor compreensão do que acontece na atualidade. A realidade torna-se cada vez mais mística e contemplativa. Temo o emprego da palavra irracional e ocupo-me antes do não-racional. A estigmatização através do rótulo « irracional » é ainda uma tática de quem tem medo, caso dos intelectuais e de tantos acadêmicos improdutivos.
As crianças na França conhecem uma canção interessante através da qual a acusação retorna ao acusador: « Se tu dizes é porque tu és ». Sabedoria infantil. O meu objetivo é mostrar que o grande racionalismo moderno não é mais o vetor da sociedade. Pode-se lamentar isso. A cultura do sentimento está em obra. Constato. De nada adiante tentar administrar o mundo desde a fortaleza universitária através da razão instrumental. A « comunidade » pode ter sido reacionária em outro tempo. Hoje, no que chamo de tribalismo, está o sentimento comunitário, a emoção vivida em comum, etc. Na comunidade existem categorias – o afetivo, a emoção, etc – que não são racionais. 

Com Jean Baudrillard e Edgar Morin, o senhor forma a tríade mais inconformista da sociologia francesa. Ser um intelectual que incomoda e sacode o pensamento institucionalizado implica em sofrimento pessoal?
Michel Maffesoli - Não. Agora não. É irritante ver por vezes os estudantes que formamos bloqueados aqui ou ali. Sou um caso particular. Morin também. Baudrillard sofreu mais. Fui nomeado professor titular da Sorbonne muito jovem. O mais novo na época. Esse estatuto, apesar de críticas e operações contra os meus estudantes, protegeu-me. Obtive reconhecimento internacional rápido, antes da maioria de meus colegas, e compensei o bloqueio francês com a reflexão no estrangeiro. O mais importante é realização do próprio trabalho. O verdadeiro sofrimento está no solidão necessária, no gabinete, para pensar. Continuo a passar longas horas de isolamento, leitura, sonho e reflexão. Os golpes dos outros já não me atingem. A minha divisa, aprendida em Santo Agostinho, diz que « o bem difunde-se sozinho ». Morin, ao escrever “Meus Demônios”, retoma a ideia socrática do « gênio » de cada um. É preciso ser fiel ao próprio « gênio ».

O senhor pensa, como Jean Baudrillard, que o mundo ultrapassou o conservadorismo e vive a era da metástase?
Michel Maffesoli - Baudrillard é meu amigo e tem uma trabalho relevante, mas discordo de certas análises dele. O mesmo vale para Morin. Baudrillard parece-me cercado por seu próprio sistema, encurralado pelo jogo de imagens que criou. Pela ideia do simulacro, que explora desde longo tempo, vê-se o limite da exploração de uma metáfora. Levada ao extremo, a imagem nada mais significa. A metástase é uma expressão dessa estratégia pela qual só há profusão e não existe mais o real. Não concordo. A crítica do mecanicismo e de um certo racionalismo da realidade não significa a inexistência de outras formas de estar-junto: a socialidade. Onde ele vê o simulacro e a metástase, enxergo uma análise idealista e moralista.
Em “A Contemplação do Mundo” apresento algumas páginas de crítica da perspectiva de Baudrillard.

Qual o lugar de Jung no seu pensamento?
Michel Maffesoli - Diziam-me que era influenciado por Jung quando eu não o tinha lido. Havia parado em 1975 na metade de Psicologia e Alquimia . Retomei-o há três meses. Sofri, em contrapartida, a influência de Gilbert Durand que se sensibilizara com as ideias de Jung. Recebi-o, portanto, de maneira indireta e talvez no que se refere aos arquétipos.
Hoje, preocupado com a imagem e o imaginário coletivo, procurei de fato o pensamento de Jung. Nas minhas próximas obras certamente se poderá notar ainda mais o papel de Jung. Há nele algo – uma concepção do global – que ajuda a entender o imaterial contemporâneo. O último livro de Morin surpreendeu-me por revelar o quanto ele conhece Jung apesar de quase não ter falado disso antes.

O Brasil representa ainda para o senhor um laboratório da pós-modernidade – candomblé mais tecnologia de ponta – assim, segundo a sua associação deliciosa, como para Lenin o socialismo significava a eletricidade mais os soviets?
Michel Maffesoli - Fórmulas! Continua a pensar o mesmo com outros termos e acredito na sinergia do arcaico e do desenvolvimento tecnológico. O Brasil vivo, não o dos intelectuais, é fascinante na medida em que não está bloqueado pelos escrúpulos do Primeiro Mundo e exprime uma forma de vitalismo. A pós-modernidade, na contramão do pessimismo, é a expressão desse vitalismo. O Brasil é uma terra de futuro por viver a intensidade do presente. Cada vez que vou ao Brasil fico espantado com a imensa distância existente entre o discurso miserabilista de certos intelectuais brasileiros e a realidade que é vitalista. Os tecnocratas de esquerda, na França, que nunca pegaram o metrô não compreendem as estratégias de sobrevivência dos desempregados. Pergunto-me se o mesmo não ocorre no Brasil.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Cronista. 
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/
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