"Há autores para os quais nenhuma forma existe: são espertos demais
para romances, céticos demais para poesia, verborrágicos demais para
aforismos, tudo o que resta para eles é o ensaio."
A bem-humorada frase de Don Paterson serve de epígrafe a um dos
livros de Geoff Dyer, escritor britânico que vem ao Brasil em julho para
participar da Flip (Festa Literária de Paraty). Dono de uma obra tão
original que frequentemente escapa dos sistemas de catalogação, Dyer se
reunirá ao americano John Jeremiah Sullivan para falar sobre ensaio - um
gênero revigorado nos Estados Unidos e na Europa, ainda pouco popular
no Brasil e, de modo geral, difícil de definir.
"É o 'centauro dos gêneros'", diz Sullivan, citando o escritor
mexicano Alfonso Reys. Já Dyer procura defini-lo como "um texto curto
explorando um tema ou obra de arte que me deixe curioso". "'Ioga Para
Quem Não Está Nem Aí' [Companhia das Letras] foi descrito como ensaios
de viagem", lembra Dyer. "Mas, para mim, isso soa um pouco redundante.
Afinal, os melhores ensaios são sempre um tipo de viagem, mesmo que ela
não seja física - mas uma viagem epistemológica, da ignorância ou da
curiosidade rumo a algum tipo de descoberta."
É esse caminho que Dyer busca percorrer, por exemplo, ao
escrever sobre músicos como Thelonious Monk e Chet Baker no livro "Todo
Aquele Jazz", que será lançado no Brasil no mês que vem. A analogia
também vale para os ensaios de Sullivan em "Pulphead", que chega ao país
em julho - ambos pela Companhia das Letras. Em seus textos, Sullivan
sai em busca de um novo olhar sobre Michael Jackson, sobre bandas de
rock cristão e, bem... sobre Axl Rose e suas várias vozes, uma das quais
recebe a curiosa alcunha de voz "Mulher Diabo" (para quem ficou
curioso: trata-se da voz que aparece bem no fim de "Sweet Child o'Mine",
indica Sullivan).
Gostos musicais à parte, cada um exibe, em seus respectivos livros,
formas bem diferentes de promover uma boa viagem literária. Escrito no
fim da década de 80, quando Dyer tinha 30 e poucos anos, "Todo Aquele
Jazz" foi o terceiro livro do autor e o primeiro em que ele se arriscou
em direção ao que chama de "crítica imaginativa". "Embarquei nele com
uma sensação de sobressalto e saí me sentindo bem confiante, com a
percepção de possibilidades se abrindo", afirma Dyer, que ganhou o
Somerset Maugham Prize pela obra.
"Todo Aquele Jazz" é um de seus trabalhos que fogem à catalogação.
Ali estão episódios que podem ter ou não origem em fatos reais - aviso
presente no início do livro. O papel das cenas, sejam elas imaginárias
ou verdadeiras, é funcionar como um comentário sobre músicas e artistas.
Trata-se de uma liberdade, diz Dyer, que ele não teria se estivesse
escrevendo sobre pessoas vivas. Para o livro que queria fazer, porém, o
caminho lhe parecia o único viável.
"Eu não tinha nenhum conhecimento técnico em relação a música, nenhum
recurso para aquele tipo de linguagem. A mistura de ficção e não ficção
foi a única opção disponível para mim - e uma opção que se mostrou
feliz, dada a incrível riqueza e drama das vidas dessas pessoas sobre as
quais eu estava escrevendo e os mistérios da música que criaram", diz o
autor.
"Qualquer tentativa de falar sobre gêneros
literários de maneira hierárquica será menos complexa do que a
realidade",
afirma Sullivan
A partir de um show de Kirk Lightsey no Village Vanguard, em Nova
York, por exemplo, ele criou uma cena sobre o pianista Bud Powell (morto
aos 41 anos, em 1966), em Paris, na qual descreve como o refletor
lançava na parede do palco uma sombra que parecia zombar do músico. "No
jazz existe um elo muito claro, inquebrável - e audível - entre o
presente e o passado", diz Dyer, que também buscou adotar durante a
escrita uma das características desse estilo musical: o improviso.
A parte mais importante? "Aprendi um monte sobre jazz!", comenta o
autor. "Esse é o lance por trás de escrever livros - trata-se
absolutamente do melhor caminho para aprender sobre qualquer coisa que
seja."
Essa ideia ganha novos contornos com o comentário de Sullivan sobre o
próprio processo de escrita: "Parte do trabalho de escrever um livro é
se tornar a pessoa capaz de escrever aquele livro". No caso dele, isso
significa fazer um esforço disciplinado "para dar boas-vindas à
intimidação" sempre que resolve encarar em um assunto novo - como os
agudos de Axl Rose.
Assim como os outros 14 ensaios que compõem "Pulphead", o texto sobre
o líder dos Guns N' Roses foi escrito por Sullivan para revistas como a
"Paris Review" e a "GQ". Os temas variam. Em um deles, Sullivan conta
como seu irmão mais velho, Ellsworth, quase morreu eletrocutado com um
microfone. Mais adiante, apresenta a tensão emocional que acompanha uma
tragédia como a causada pelo furacão Katrina - e o leitor se sente preso
com ele dentro do carro quando outro motorista, com barba por fazer e
uma blusa imunda, vem acusá-lo furiosamente de tentar furar uma longa
fila no posto de gasolina.
No texto seguinte, a leitura transporta para uma balada com
participantes de um "reality show" ("The Real World", da MTV),
intercalada com reflexões sobre o que é ou não realidade.
Ao selecioná-los, Sullivan tinha em mente uma sala cheia de espelhos.
"Eu queria que fosse algo inteiro, não só uma coleção. Qualquer leitor
motivado ou entediado o suficiente para prestar atenção à 'estrutura'
perceberá todos os tipos de duplos e 'loops'", diz ele.
Também ajudam a transmitir uma sensação de unidade o estilo de
Sullivan e seu domínio da arte de contar histórias. Tanto é assim que o
crítico literário James Wood até brinca com o leitor no texto que serve
de introdução a "Pulphead", uma crítica originalmente publicada na "New
Yorker". Mostrando trechos de três textos de Sullivan, lança o desafio:
"As frases que se seguem iniciam ensaios ou contos?".
As ferramentas da ficção estão ali, mas os textos são de não ficção.
"Eu não mexo com os fatos. Eu os massageio, talvez, mas não os fabrico
ou distorço", afirma Sullivan. "E acho isso não por que acredite que
existe algo como uma pureza factual na não ficção. Só que você deve
buscar seus efeitos no leitor por meio de sua habilidade, e não de uma
fraude."
Mas que o rótulo de não ficção não sirva - como nenhum rótulo, na
verdade - de desculpa para uma leitura ingênua. Até o olhar do próprio
Sullivan sobre alguns de seus textos mudou ao longo do tempo. É o caso,
por exemplo, dos ensaios "Sobre Este Rock" e "Quero Minha América de
Volta". O primeiro, um de seus ensaios mais famosos, abre "Pulphead".
Nele, Sullivan relata sua experiência em um festival de rock cristão e
os amigos que fez por lá, pessoas que "ao longo de suas vidas, tinham
testemunhado uma violência espantosa". O segundo é sobre o movimento
republicano Tea Party e foi publicado na "GQ" americana em janeiro de
2010.
"Tenho mais distância dessas experiências agora", diz Sullivan.
"Nessa última década, algumas coisas aconteceram. Uma delas é que minha
geração, nos Estados Unidos, viu de perto quanto dano a direita
evangélica poderia fazer, politicamente. Eles eram usados por
republicanos que depois iriam desprezá-los como sendo reacionários
demais para o bem do próprio partido. Alguns daqueles membros do Tea
Party que vi eram versões posteriores daquelas pessoas com as quais
interagi no festival de rock cristão", compara o escritor. "Enfim, não
levei aquele espetáculo tão a sério quanto deveria ter levado."
Além disso, seus próprios sentimentos sobre religião mudaram depois
de conhecer o trabalho do pesquisador Jonathan Israel sobre a história
do ateísmo no século XVIII, conta Sullivan. Isso não significa que
renegue seus dois ensaios. "Eu me sinto feliz por ter captado aquele
cara mais sensível, que não julgava tanto, enquanto ele ainda existia.
Ele sabia algumas coisas que eu não sei mais, e que talvez não fossem
totalmente erradas."
Suas referências, questionamentos e senso de humor podem levar alguns
leitores a se lembrar de duas coletâneas lançadas no ano passado no
Brasil. Uma delas é "Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de
Tudo", que reúne majoritariamente ensaios de David Foster Wallace
(morto em 2008), como o relato sobre uma feira rural que ele escreveu
para a "Harper's". A outra é "Como Ficar Sozinho", de Jonathan Franzen,
que, aliás, participou da última edição da Flip - muitos dos textos do
livro de Franzen foram escritos para a "New Yorker".
O ensaio americano em revistas está florescendo, afirma o crítico
James Wood em seu texto sobre "Pulphead". Ele aponta duas hipóteses para
isso. A primeira é que as revistas estariam assumindo parte da função
cultural e literária que cabia aos jornais e que eles ("em sua
evaporação aparentemente irreversível") perderam.
Já a segunda tem a ver diretamente com literatura. O que confere
energia ao ensaio contemporâneo, segundo o crítico, é sua fuga - ou
rivalidade - de um suposto conservadorismo presente em boa parte da
ficção convencional. Assim, o ensaísta pode abrir mão do velho enredo
com começo, meio e fim, por exemplo, para levar o leitor a um passeio a
esmo. Ou deixar de lado o narrador tradicional e ter a opção de surgir
ou sumir no texto.
E quem James Wood cita como crítico da decadência do romance, em prol
da liberdade do ensaio? Geoff Dyer. Mais especificamente, um trecho de
"Out of Sheer Rage" (sem tradução no Brasil), em que Dyer reclama: "É
tão cansativo ver as sensações e os pensamentos dos autores serem
novelizados, fixados no concreto da ficção, que talvez seja melhor
evitar o romance como meio de expressão".
Vale a pena lembrar que Dyer é autor de quatro romances - nos quais,
aliás, mostra que é possível subverter e oxigenar o gênero. O mais
recente deles, "Jeff em Veneza, Morte em Varanasi" (Intrínseca), por
exemplo, é composto por duas partes que apresentam pontos de conexão,
mas deixam ao leitor a tarefa de construir (ou não) uma noção de todo.
Ao Valor, Dyer afirma que não vê a relação entre
romances e ensaios de maneira tão antagônica assim. "Para mim, é tudo
apenas escrita", diz, "e algumas das coisas sobre as quais eu quero
escrever acabam se direcionando para um certo tipo de ficção - você
sabe, aquele tipo de coisa 'ele disse/ela disse' com personagens andando
por aí e fazendo coisas." Outras, prossegue, requerem uma abordagem
mais analítica ou discursiva. E, às vezes, Dyer acha melhor simplesmente
misturar tudo numa coisa só, ao mesmo tempo ficção e não ficção.
"A questão é sempre encontrar um jeito de escrever que seja
apropriado. Não gostaria de ser forçado em direção a um certo
maniqueísmo entre um e outro", diz Dyer.
Para Sullivan, esse tipo de ringue faz parte do ambiente em que a
literatura é produzida. "Para Vladimir Nabokov, era necessário odiar
William Faulkner e Henry James. Para Leon Tolstói, era necessário odiar
William Shakespeare. Um escritor frequentemente tem que limpar um espaço
psicótico no qual opera", comenta Sullivan, quando a entrevista se
encaminha para o controverso "Reality Hunger: A Manifesto", do também
americano David Shields. Ali, uma das ideias é que o romance não dá mais
conta de lidar com a realidade, enquanto o ensaio, por sua fluidez,
seria um gênero mais adequado para essa tarefa.
"Respeito David Shields, e a razão pela qual sou capaz de apreciar
suas teorias sobre gêneros é que eu perdoo nele um fato central: ele
formula essas regras para si mesmo como escritor", diz Sullivan. "Para
Shields, é preciso empurrar o romance para baixo e puxar para cima
várias formas de não ficção. Mas qualquer tentativa de falar sobre
gêneros literários de maneira hierárquica será, instantaneamente, menos
complexa do que a realidade. Os gêneros modernos brotam uns dos outros
e, ocasionalmente, para dentro uns dos outros. Há muito mais
superposições do que gostamos de admitir. E quanto mais perto você se
aproxima da origem das coisas, maior o caos."
A discussão deve continuar em Paraty, onde Dyer planeja conversar com
Sullivan sobre o status do ensaio hoje, assim como suas possibilidades e
limitações. "Além disso, sempre fico curioso para saber como [Sullivan]
conseguiu desenvolver o estilo tão único que ele tem", diz Dyer.
O encontro será mediado por Paulo Roberto Pires, editor da "Serrote",
revista do Instituto Moreira Salles dedicada a ensaios, literatura,
fotografia e arte publicada a cada quatro meses. Também será realizada
durante a Flip uma oficina de três dias sobre ensaio, com coordenação de
Pires e participação de Dyer e do escritor Francisco Bosco, autor da
coletânea de ensaios "Alta Ajuda" (Foz Editora).
A Flip começa no dia 3 de julho, com uma palestra de Milton Hatoum
sobre Graciliano Ramos, o homenageado deste ano. Entre os autores
convidados estão a contista americana Lydia Davis, o bósnio Aleksandar
Hemon e o poeta egípcio Tamim Al-Barghouti. Nomes que ajudarão a
aproximar a plateia desse fervilhante universo que, como diz Sullivan, é
mesmo um belo caos.
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