José Tolentino Mendonça*
Simone Weil lamentava que se considerasse a estética
como um estudo especial, uma recôndita disciplina universitária, pois
«a estética é aquilo que nos torna o espaço e o tempo sensíveis».
Sophia de Mello Breyner escreve: «Dizer que a obra de arte, que o poema
faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. O
poema, a obra de arte faz parte do real». De facto, a beleza não é um
atributo, um campo à parte, uma moeda de troca, um consolo, uma
técnica, um código simbólico, um artifício, uma especialidade, um
suplemento, como se o Ser e a Beleza se pudessem, de alguma maneira,
separar. Aquilo que o poema ensina é que a beleza é uma metafísica
concreta, um ponto de união entre o invisível e o visível, encarnação
do espírito, forma sensível daquilo que é suprassensível. Contra o
mundo domesticado dos discursos, o poema restaura a inevitabilidade da
experiência.
Procurar uma sílaba: poder-se-ia descrever assim a sua
demanda. Enfrentar o máximo no mínimo, no insignificante, no inútil,
no ínfimo, no reduzido, no simples fragmento, na pequena dobra, no
pormenor. Enfrentar o absoluto no débil e relativo, a imensidão no
côvado minúsculo do que diariamente, do que obscuramente divisamos.
Isso que nos esforçamos por esquecer, porque a nossa vida estremeceria
se em vez dos discursos que nos saem tão fluidos ou temos à mão para
explicar tudo, para nos justificar a nós próprios, tivéssemos que passar
pelo embaraço de procurar as sílabas, de habitar o silêncio, a
infatigável atenção, a longa e áspera noite do não-saber com seus
corredores desertos e alagados, como quem espera a salvação.
Se a filologia ensina alguma coisa sobre os processos
humanos, podemos então concluir que o poema é, antes de tudo, uma forma
de ação. A existência é feita de ações: lavar o rosto, preparar os
alimentos, declarar um amor, cumprir um rito de tristeza, levantar a
mão num aceno quase impercetível. De todas as ações que compõem a vida,
umas são exteriores, outras interiores. Umas são passadas, outras
ainda chegarão. Mas nenhuma destas divisões é muito rígida. Porque,
simplesmente, há coisas que não passam. E há acontecimentos exteriores
que se gravam em nós, nunca saberemos bem de que maneira, como o nosso
segredo mais íntimo. O poema é uma ação humana, entre outras. Só isso.
Que sabedoria a daqueles poetas chineses para quem a arte dos versos
não se sobrepunha à arte de varrer o pátio da sua casa.
O poema só pode ser um exercício de dissidência, uma
profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do
apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro
que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na
solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra
verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O
poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua
piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não
alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente
aquela impureza que o mundo repudia.
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* Poeta. Escritor. Teólogo português.
In Diário de Notícias (Madeira)
Fonte:http://www.snpcultura.org/o_poema.html 20.03.11
Fonte:http://www.snpcultura.org/o_poema.html 20.03.11
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