Luli Radfahrer*
Para muita gente é ali que os tais hackers pedófilos neonazistas traficam drogas e órgãos de bebês chineses
Sou usuário da "deep web". E não vejo problema algum nisso. Faço muitas
pesquisas em bases de dados e bibliotecas específicas, daquele tipo em
que o Google Acadêmico só agora começa a entrar. Na USP, muitos dos
trabalhos de alunos não estão prontos para irem a público, por isso
protejo seu conteúdo do acesso por mecanismos de busca.
Hoje fala-se muito nessa internet "escondida", inacessível pelos
browsers comuns. Como acontece com todo ambiente novo, ela ganhou uma
mitologia própria, tornando-se o habitat do que há de mais perverso na
mente humana. Para muita gente é ali que os tais hackers pedófilos
neonazistas traficam drogas e órgãos de bebês chineses, invisíveis aos
olhos da lei.
Como tudo no mundo, nada é tão simples. A "deep web" nada mais é do que a
parte da internet que não foi indexada pelo Google e seus concorrentes,
cerca de 99% da rede.
Todo mundo já acessou documentos dela, mesmo que nunca tenha baixado um
filme, aplicativo ou música ilegal. Boa parte do tráfego de informações
financeiras, comerciais, estratégicas, científicas e administrativas se
dá escondido do público. Não são conspirações nem lavagem de dinheiro,
mas transações como extratos bancários e exames laboratoriais que,
apesar de usarem a internet, não são públicos.
Também há repositórios privados, redes militares, fóruns estratégicos,
intranets e laboratórios de pesquisa cujos dados, estratégicos, valem
uma nota e precisam ser restritos a assinantes.
Se imaginarmos a web como espaço público cheio de bibliotecas, bancos,
museus e shoppings, a "deep web" é composta por seus bastidores, em que
estranhos não são bem-vindos.
Quem vai atrás deles corre o mesmo risco de quem entra na favela para
comprar maconha, temendo igualmente a polícia e o ladrão. Um rapaz
arrumado em um prédio na Cracolândia é mais suspeito do que seus
moradores, muitos deles inocentes.
No mundo digital as aparências não são tão claras. Por isso browsers
específicos, como o Tor, garantem o anonimato de seus usuários por meio
de conexões distribuídas. O acesso é mais lento, recomendado apenas para
quem pretende driblar firewalls, consciente do risco que isso
representa. Repórteres o utilizam para escapar das restrições de censura
em regimes fechados. Usando o mesmo canal, várias operações ilegais são
conduzidas em anonimato, pagas em bitcoins.
Dentro desse mercado negro existem fóruns e wikis, cheios de links para
orientar os turistas. Boa parte são golpes descarados ou arapucas.
Imagine sua reação a uma plaquinha dizendo "vendem-se metralhadoras" em
um barraco de favela e fica fácil entender que, como no mundo físico,
quem pretende entrar na legalidade o faz por indicação, não por cliques
em links.
Infelizmente muitos jovens não são tão espertos. Imbuídos de espírito de
aventura e transgressão, animados com os resultados de seus
experimentos com sexo, drogas e rock, muitos não têm uma percepção da
realidade ampla o suficiente para distanciá-la da ficção. Como quem joga
um novo game, se entusiasmam com o que encontram, se divertindo em
chocar os colegas com novas perversidades. É tudo muito fascinante, até
que alguém se machuque. Aí só resta torcer para que não seja sério.
Não acredito que grupos neonazistas os recrutem porque essas
associações, como qualquer outra, precisam de dinheiro. É possível que
alguns percam a noção do limite e do aceitável, mas o mais provável é
que tudo isso seja esquecido. Minha geração cresceu exposta a "Faces da
Morte" e não criou mais psicopatas do que estaria destinada. O grande
perigo é ter seus computadores --e os de seus familiares-- invadidos,
gerando um prejuízo bastante palpável.
A internet, profunda ou na superfície, não é a Disneylândia. Como toda
associação humana, tem coisas boas e ruins. É preciso conhecê-la e
desmistificá-la, tirando dela o que há de melhor.
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* É Ph.D. em comunicação digital pela ECA-USP, de onde também é professor há mais de dez anos.
folha@luli.com.brFonte: Folha on line, 20/05/2013
Imagem da Internet
Parabéns pelo texto professor. Terminei recentemente, minha monografia de Direito que versa sobre Cybercrimes na Dark Web.
ResponderExcluirFilio-me totalmente ao seu pensamento, como tudo na esfera social, sempre há espaço para a conotação do bem, quanto para o mal. Essas características migram integralmente para o ambiente virtual ganhando a ubiquidade e dinâmica propiciada pela rede.
A segurança e anonimato garantido pelo TOR tem uso legítimo (vide Primavera Árabe), contudo, chamou a atenção do cibercriminoso que se apropria dessas características para praticarem seus delitos virtuais. ao arrepio e inalcançabilidade de qualquer ordenamento jurídico.