Contardo Calligaris*
Preferimos enxergar todos nossos mal-estares e fracassos como doenças, que um remédio pode curar
1) No fim dos anos 60, pensávamos que, no fundo, o louco era um rebelde
que sofria da repressão que lhe era imposta e das condições horrorosas
da internação psiquiátrica.
Mas o que tornou possível o progressivo fechamento dos manicômios não
foi esse entusiasmo; foi a chegada de medicações mais eficientes, pelas
quais o louco não precisava ser enclausurado, porque podia ser, não digo
curado, mas controlado.
Desde então, os remédios psicotrópicos (ou seja, que modificam o funcionamento da mente) fizeram progressos.
2) A descoberta de que o remédio podia substituir as paredes do asilo
repercutiu e contribuiu a inaugurar uma era em que preferimos enxergar
quase todos nossos mal-estares e fracassos como doenças, que um remédio
pode curar. Em outras palavras, se os remédios eram formas possíveis de
controle social, por que eles não seriam também meios possíveis de
autocontrole?
3) A modernidade é sedenta de técnicas de controle de si (dietas,
prescrições, treinos, meditações etc.). Há menos controle externo
(religioso ou político) sobre nossa vida; aumenta a necessidade de
controle que nós mesmos exerceríamos sobre nós. Nessa tarefa, a ajuda de
drogas e remédios é bem-vinda --para controlar nossa vida cotidiana,
conter a tristeza, as variações de humor, a ansiedade, a preocupação
etc.
4) Tendemos a responsabilizar os laboratórios farmacêuticos por essa
medicalização crescente da vida. Mas eles apenas se aproveitam de um
pedido que é nosso: queremos remédios como formas de controle e poder
sobre nós mesmos.
5) Vi o último filme de Soderbergh duas vezes, no último fim de semana. O
título original é "Side Effects", efeitos colaterais. Foi traduzido
como "Terapia de Risco". Tudo bem --contanto que se entenda que os
efeitos colaterais e o risco são tanto para o terapeuta quanto para o
paciente.
Sim, o filme denuncia os laboratórios e suas práticas de propaganda.
Sim, o filme lembra que a medicação não é nenhum tiro certeiro: sua
administração é empírica (tipo: vamos ver o que acontece) e sua eficácia
é modesta. Mas, sobretudo, o filme é uma perfeita narrativa da época do
higienismo tardio, em que quase tudo é efeito da medicalização da vida.
Confira.
6) Uma nota. Alguns psicoterapeutas e psicanalistas se opõem
furiosamente à medicação de seus pacientes. Tudo bem, mas a
medicalização é hoje uma cultura, um regime, um sistema de controlar e
organizar a vida. Os remédios são apenas um dos meios da medicalização; é
possível medicalizar a vida adotando práticas "saudáveis" ou
frequentando um psicoterapeuta.
7) Nossos mal-estares cotidianos não têm marcadores específicos. Ou
seja, não tenho como verificar (com uma análise de sangue, uma
endoscopia ou um balanço hormonal) se e quanto alguém está deprimido.
Devo me contentar com o que ele me diz.
Eu me formei numa escola de psicanálise em que acreditávamos que fosse
possível encontrar, na fala dos pacientes, marcadores clínicos tão
seguros quanto o nível de uma proteína no sangue.
Em tese, apostávamos, deveríamos poder diagnosticar um tumor no cérebro
sem exames de imagem, porque saberíamos, por exemplo, que tal
esquecimento é diferente de um esquecimento histérico, de um começo de
Alzheimer, de uma amnésia etc. Mas esse ideal não se realiza (ao menos,
não plenamente).
E um bom simulador pode vender qualquer peixe a todos nós, psiquiatras,
psicoterapeutas, psicanalistas etc. Ou seja, um sociopata de bom feitio
faz gato e sapato não só da lei, da gente também.
8) Se lêssemos as bulas com atenção, não tomaríamos nunca remédio algum.
Os laboratórios, para prevenir processos, enumeram qualquer catástrofe.
No fim dos anos 1960, um amigo, J.H., perfeito exemplo de medicalização
da vida, procurava seu equilíbrio numa mistura de anfetaminas e
barbitúricos. Morreu afogado, de noite. A bula do Nembutal poderia
dizer: cuidado, em combinação com simpamina, pode produzir a morte em
quem vai surfar sozinho em Big Sur de madrugada.
Na época da medicalização, a lista indefinida (se não infinita) dos
efeitos colaterais vale também como lista também indefinida das
desculpas. Matou o vizinho, mas não foi intencional; foi porque ele
tomava sei lá qual antidepressivo.
9) Assista a "Terapia de Risco" e, na saída do cinema, responda: ao seu
ver, o psiquiatra do filme conseguiu ou não cuidar de sua paciente?
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* Psiquiatra. Escritor. Colunista da Folha
@ccalligarisFonte: Folha on line, 23/05/2013
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