"Liberar as coisas de ser útil é a política
antropológica – não cêntrica – colocada no fluxo da constelação
metafetichista", é a aposta do professor de antropologia cultural,
arte e
culturas digitais.
Abandonar a perspectiva filosófica clássica, reforçada por Marx,
de que o ser humano é a medida de todas as coisas é apenas um dos
desafios para deslocarmos a ideia antropocentrista do olhar. “A crise é
do olhar, de desenvolver uma atitude e um treino para aprender a olhar,
um olhar que modifica o olho, claro, talvez nesse sentido poderia
aceitar a ‘crise do olho’. Mas uma crise construtivista, que pretende ir
além do atual e não de ‘miopizar’ (outro péssimo neologismo) os olhos. A
democracia ocidental é baseada sobre a relação entre palavra e olhar.
Ágora é a praça e na praça eu posso escutar o político porque posso
vê-lo”, provoca Massimo Canevacci, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “A crise antropocêntrica para mim significa distribuir os olhos em cada sujeito da natureza”, complementa.
Massimo Canevacci é
doutor em Letras e Filosofia pela Universidade La Sapienza – URS, na
Itália, de onde é natural. Foi professor visitante na UFSC (2010-2011) e
na UERJ (2012). Pesquisa etnografia, comunicação visual, arte, cultura
digital. Desde março deste ano é professor visitante na IEA-USP. É autor
de livros como Antropologia da comunicação visual (Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001), Antropologia do cinema (São Paulo: Editora Brasiliense. 1990), Fake in China (Maceió: Edufal, 2011) e Fetichismos visuais (São Paulo: Atelier Editorial, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que medida o antropocentrismo condiciona nosso olhar sobre as imagens?
Massimo Canevacci – A filosofia clássica afirmou com Demócrito que “o homem é a medida de todas as coisas” e Marx
repetiu esta citação no seu livro mais famoso. O inteiro pensamento
humanista é baseado sobre este assunto. Isso foi, ainda que em parte,
elemento decisivo para afirmar a centralidade do ser humano (mais o
“homem”) autônomo e livre que dão os condicionamentos religiosos ou
irracionalisticamente míticos.
Esta visão humanística – no contexto histórico atual – tem alguns
limites. É a relação entre humanismo e antropocentrismo que precisamos
focalizar melhor. Com o segundo conceito, entende-se que o centro com
relação à natureza é o antropos (isto é não homem, mas homem e
mulher). Esta centralidade precisa ser questionada. A natureza em geral
(seja a chamada “primeira natureza”, seja a chamada “segunda natureza” –
objetos, mercadorias, etc.) virou território de domínio da razão
instrumental que achava a potencialidade de “extrair” coisas infinitas.
O centrismo é a tendência a centralizar sobre um elemento (étnico,
sexual, esportivo, individual) em contraposição aos outros. Uma
antropologia progressiva deseja criticar cada forma de centrismo. Em
relação ao específico antropocentrismo, precisamos elaborar um
pensamento prático, diria um treino filosófico descentrado, pelo qual
cada pessoa poderia imaginar que uma floresta perdida, uma coisa banal,
um objeto biográfico, uma onda do mar, o www, a obra de Michelangelo
é um centro. Dessa maneira, configuramos uma constelação móvel
policêntrica, polifônica e polimorfa: e o ser humano é parte desta
constelação, nunca mais o centro.
IHU On-Line – É possível enxergar fora de um critério antropocêntrico e etnocêntrico?
Massimo Canevacci – Sim, é possível, mas é
complicado pela resistência não somente econômica de colocar a estrutura
produtiva como centro instrumental das relações com o mundo, mas também
pela longa história psicocultural que imaginou (e praticou) este
centrismo como a base da autoafirmação do sujeito racional. Este modelo
histórico está claramente em crise.
A universidade expandida nas culturas digitais poderia elaborar uma
sua filosofia antropológica e talvez um projeto pragmático para mudar o
posicionamento político de cada sujeito. Vou resumir de maneira bastante
sintética o que tenho pensado: uma visão, uma imaginação exata de olhar
em direção de um metafetichismo, um fetichismo além do poder reificado
das mercadorias ou de uma política autocentrada, poderia precursar uma
visão onde o dualismo entre orgânico e inorgânico, objeto e sujeito,
mercadoria e coisa, ser e natureza, tendencialmente vá a acabar. Imagino
um movimento de libertação dos objetos inorgânicos que eu gosto de
chamar facticidade. Liberar as coisas de ser útil é a política
antropológica – não cêntrica – colocada no fluxo da constelação
metafetichista.
IHU On-Line – Que diferenças percebe entre olhar e ver? Em
uma sociedade imagética como a nossa, como se apresenta essa dicotomia?
Massimo Canevacci – Esta distinção é muito difícil
de precisar. O vocabulário não nos ajuda muito. Eu posso olhar tudo sem
ver nada. Talvez seria possível elaborar uma clareza neste dualismo que,
obviamente, eu não gosto. Penso a disposição de um sujeito a um olhar
passivo como maravilhosa. Passivo não significa, porém, inconsciente,
subordinado, “feminilizado”. Um olhar que incluía o ver e que se oponha
dicotomicamente. A comunicação visual que prolifera na frente e talvez
na interioridade dos nossos olhos é a metodologia que precisamos
aplicar. Uma metodologia nunca mais externa, mas interna dos corpos dos
olhos. Um corpo cheio de olhos.
IHU On-Line – O senhor, em outra entrevista, considerou que o tema da “XI Semana da Imagem – Para entender as imagens: como ver o que nos olha?” é um convite a nos tornarmos olho. Como explicar essa afirmação?
Massimo Canevacci – Eu sei que a dimensão
polissensorial é sempre mais constitutiva de um ser humano mais aberto
e, de novo, polimorfo. Ao mesmo tempo, acho que os olhos e o olhar em
geral continuam a ser muito mais importantes que o cheirar, o
provar/palatar e o ouvir. A música atual (mas acho a música em geral)
parece que não tem “sentido” sem vê-la no hic et nunc da sua própria elaboração. Às vezes, ver a musica é mais importante que ouvi-la. Lembro um fragmento do livro de Thomas Mann, Doctor Faustus, onde ele afirma que algumas obras musicais supremas, tipo a arte da fuga de Bach, deveria ser lida, não musicada. Mas cada clip mais banal de Vídeo Music
é aceito mais pela qualidade das imagens que pelo estilo musical. Ou
seja, a montagem das imagens é parte constitutiva do ritmo, mais que os
instrumentos musicais ou a voz do cantor(a). Participar ao vivo na
primeira fila de um concerto rock ou de uma opera de Puccini
é diferente de escutar ao morto no próprio CD. O olhar fixa a música e
favorece um entendimento sensorial melhor que o simples escutar.
Multissensorialidade
Quero dizer que a multissensorialidade é importante sem duvida, mas
que, ao mesmo tempo, no corpo polimorfo multissensorial o olho é ainda
antropologicamente dominante. Queria lembrar a análise de Freud sobre a mutação radical do Homo sapiens quando transita de uma centralidade sexual baseada no nariz à afirmação da supremacia do olhar. Homo sapiens
é tal porque aprendeu a olhar nos olhos do outro o prazer do amor. O
cheiro do (e no) amor é ainda importante, mas a irresistível
higienização desodorada do corpo pode ser interpretada como uma
declaração de subordinação ao olhar. Os olhos não podem ser higienizados
ou “de-olhado”, par inventar um péssimo neologismo. Eu sou o olho que
apreende continuamente o desejo intelectual de imaginar o que ainda não
existe. Um olho pensante. Olhos “reflitentes”. Agora digo o seguinte: a
extrema sensualidade do olho fica na sua impossibilidade de ser
acariciado, beijado, penetrado. A história do olho não é só aquela de Bataille:
nele – no olho – se coagula o máximo desejo de possuí-lo sem
possibilidade nenhuma de conseguir este desejo. Por isso o desejo do
olho continua e nunca poderia ser “de-olhado”.
Desejo
O ser humano continua a desejar porque nunca poderia possuir o limite
do seu desejo: ultrapassar as pálpebras e lamber a pupila. Os cílios
são os últimos guardiões. Depois a íris se expande e retrai no encontro
com a luz do outro. O cristalino, o bulbo, a retina: a inteira geografia
do aparado visual é uma festa extrema que se pode fixar, mas nunca
beijar. É defendida por uma tênue linha de pele e justamente esta
sutileza da pálpebra é a sua força. Eu queria beijar os teus olhos. Por
isso te amo ainda, porque nunca consegui realizar este desejo supremo.
Um escritor italiano, Pavese, escreveu uma poesia assim: verrà la morte e avrà i tuoi occhi. Os olhos do amor são imortais. Não se poderia dizer o mesmo das orelhas ou do nariz.
IHU On-Line – Dentro deste debate, poderíamos pensar em uma “crise do olho” como sentido dominante na cultura ocidental?
Massimo Canevacci – Não. A crise é do olhar, de
desenvolver uma atitude e um treino para aprender a olhar, um olhar que
modifica o olho, claro, talvez nesse sentido poderia aceitar a “crise do
olho”. Mas uma crise construtivista, que pretende de ir além do atual e
não de “miopizar” (outro péssimo neologismo) os olhos. A democracia
ocidental é baseada sobre a relação entre palavra e olhar. Ágora é
a praça e na praça eu posso escutar o político porque posso vê-lo. A
crise antropocêntrica para mim significa distribuir os olhos em cada
sujeito da natureza.
IHU On-Line – Traçando um paralelo entre técnica e cultura,
como podemos pensar a multiplicação de imagens e de dispositivos de
produzi-las?
Massimo Canevacci – A técnica sempre foi parte
constitutiva da cultura, em cada contexto histórico diferente. Nesse
sentido, a multiplicação de imagens e do sujeito que as realizam
(sujeito pós-orgânico) é exatamente a visão de uma democracia menos
ocidental e antropocêntrica e mais descentrada. Espero sempre que um
genial inventor como Tim Berners-Lee, aquele da web e
do seu uso sem controle de Estado, consiga imaginar a autogeração de
imagens no corpo de cada facticidade. Imagens autogeradas são parte de
um futuro mais vivível e com menos Berlusconi ou Silvio Santos, isto é, os donos de uma TV generalista e vertical que reproduz o pior do ser humano.
IHU On-Line – O que essa difusão de imagens diz sobre nossa cultura?
Massimo Canevacci – Pergunta difícil. Talvez precisamos criticar mais radicalmente o prejuízo de Platão
e de muitas religiões ou da filosofia atual contra as imagens. O medo
da imagem e da sua imaterialidade. Por isso, seria filosoficamente
melhor imaginar as imagens material/imaterial, além do dualismo clássico
que reproduz este preconceito. Em um filme “banal” (ou b-movie), Crocodile Dundee,
lembro sempre uma sequência formidável. No bush australiano, uma jovem
antropóloga queria fotografar o nativo (“aborígene”). Ela aponta a
câmera e ele diz: “Não, não!” (Ela havia estudado os clássicos). “Ah,
claro, desculpe, você acha que a imagem rouba a sua alma” – e ele
responde. “Não é isso. Você tem o obturador no olho da câmera”.
Muitos filósofos e antropólogos acham ainda que a imagem captura a
alma ou o coração de uma pessoa. Um pensamento mágico no sentido mais
atrasado permanece vivo. Por isso, eu espero que se poderiam sempre mais
selecionar as imagens no sentido de boas, interessantes, experimentais,
feias, maravilhosas, preconceituosa etc. A imagens que eu gosto são
aquelas que ainda não vi. E que me colocam em uma dimensão de estupor,
abrindo a porosidade do meu corpo.
IHU On-Line – Como podemos pensar o conceito de “fetichismo
visual” de seu livro Fetichismos visuais – corpos erópticos e metrópole
comunicacional (2008)?
Massimo Canevacci – Talvez na perspectiva diagonal
que libera a inclinação mais perturbadora: aprender a se inclinar e
diagonalizar significa que nada é instintual ou natural no processo de
perceber o que está acontecendo aqui e agora. Já apresentei a inclinação
do meta-fetichismo, como uma possibilidade de ir além da identificação
fetichismo / reificação / perversidade.
Um corpo erótico exprime a tendência de liberar o fetichismo também
da tradição cristã que o identifica com condição animista, mágica,
supersticiosa, etc. Aprender a favorecer a criação de imagens
multissensoriais que excitam a pupila a sair de si mesma e rolar entre a
tela do seminário e os olhos dos participantes, e – se via stream –
também entre os olhares de um público observador ativo e cocriador.
IHU On-Line – Em termos metodológicos, que alternativas podem
ser postas às análises acadêmicas que se debruçam sobre os estudos das
imagens?
Massimo Canevacci – O conceito-chave – que
influencia e mistura valores declarados em sentido progressivo, métodos
etnográficos descentrados, teorias críticas experimentais – é
autorrepresentação. Nessa visão, o etnógrafo ou comunicador em geral
estão legitimados para interpretar o outro – através da comunicação
visual ou composições performáticas – apenas quando estão disponíveis
para se deixar interpretar pelo outro. Esta dialógica e este desafio
apresentam uma epistemologia transitiva da representação. Assim, método
etnográfico indisciplinado, teoria crítica experimental,
autorrepresentação polifônica e sujeitos transitivos configuram a
pesquisa em forma de constelação móvel. Emerge uma etnografia ubíqua
baseada sobre tensões sincréticas e polifônicas de verificar
empiricamente entre identidades flutuantes, fetichismos visuais,
culturas digitais. A metrópole muda e o trítico comunicação / cultura /
consumo é sempre mais determinante na experienza quotidiana em
particular das culturas juvenis e se insere nos fluxos contemporâneos da
autorrepresentação, praticados nos interstícios transurbanos e nas
redes sociais digitais.
Cidadania transitiva
Nesse contexto, uma deslocante cidadania transitiva – participada na
metrópole comunicacional em conexão com identidades flutuantes –
apresenta uma crítica política horizontal sobre a divisão comunicacional
do trabalho: uma crítica pragmática além do poder vertical de “quem
representa quem”. Este movimento transitivo se manifesta em direção de
espontâneas narrativas descentradas, performances urbanas, fluxos
digitais, exata mistura de arte, publicidade, design, arquitetura,
cinema, música, moda, esporte. Por isso entre “quem representa” e “quem é
representado” há um nó linguístico específico, relativo ao que chamo
“divisão comunicacional do trabalho”, que precisa ser enfrentado nos
métodos e nas pragmáticas. Entre quem tem o poder de enquadrar o outro e
quem deveria continuar a ser enquadrado – para ser um eterno panorama
humano –, ossificou-se uma hierarquia da visão, que é parte de uma
lógica dominante a ser posta em crise na sua presumida objetividade.
As novas subjetividades que estão se afirmando como “outras” têm a
vantagem de poder usar as tecnologias digitais que favorecem esta
descentralização com um efeito de ruptura não comparável com o
analógico. Facilidade de uso, redução dos preços, aceleração das
linguagens, descentralização de ideação, editing, consumo. A
divisão comunicacional do trabalho entre quem narra e quem é narrado –
entre auto e heterorrepresentação – penetra na contradição emergente
entre produção das tecnologias digitais e uso destas mesmas tecnologias
por sujeitos ubíquos com autônomas visões do mundo. Sincretismos
culturais, pluralidades de sujeitos, polifonias de linguagens: esta é a
premissa valorativa e metodológica das representações transitivas que
apoia criatividades indisciplinadas. Enfim, estou trabalhando sobre o
“estupor metodológico”, mas quero falar na próxima entrevista sobre esta
“maravilha”.
IHU On-Line – Existem fronteiras para pensar distintamente os
fenômenos sociais e comunicacionais ou a contemporaneidade é marcada
pela indistinção das áreas de conhecimento?
Massimo Canevacci – A pergunta explicita o problema.
São as fronteiras, os espaços mais significativos da pesquisa atual.
São as fronteiras clássicas, que são cruzadas sempre mais pela
subjetividade diaspórica, que não conseguem ficar paradas no seu
território nativo, nas suas raízes obscuras e inflexíveis, e por isso
desafia as regras e clandestinamente cruza a linha. Mas também as
fronteiras digitais ou espistemológicas, aquelas que desejam favorecer a
indisciplina como desafio de uma universidade compartimentalizada que
não pode continuar a sobreviver entre faculdade, departamentos,
currículos delimitados e cerrados como prisão. Os centros das pesquisas
são sempre mais culturas, individualidades, identidades, que decidem
movimentar o seu próprio estatuto, cruzar e mesclar – sincretizar – as
fronteiras culturais e ainda mais políticas. Olhar a linha da fronteira
significa indisciplinar e inclinar as áreas e os modelos de
conhecimento. E tentar de descobrir além de, às vezes, praticar o que
ainda não é imobilizado pelo conceito.
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Nota: A fonte da imagem que ilustra esta entrevista é http://migre.me/eAY4W
Fonte: IHU on line, 18/05/2013
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