ROBERTO DAMATTA*
Todo mundo fala em democracia e educação, sem perceber
que as palavras têm conotações especiais. No Brasil, a palavra educação
não significa somente instrução, mas polidez, calma e delicadeza. O
"mal-educado" ou o "ignorante" não é quem não tem saber, mas é o
"grosseirão" inclinado ao gesto brusco ou à violência. O "bem-educado" é
aquele que - calado consciente e superior - espera a sua vez.
Fazemos uma clara distinção entre o "bem" e o "mal-educado": o fino, o
grosso, o sensível e o boçal. Essa representação enlaça o par "educação
e democracia". Pois a voz do povo mostra uma dualidade hierárquica. No
plano superior, ficam os "bem-educados" (gente instruída e fina). No
inferior, estão não apenas os não instruídos, mas os mal-educados.
Embaraçamos a ignorância definidora do não saber com a grosseria - esse
avatar atribuído aos afoitos e, por extensão preconceituosa, aos
subalternos. Seria isso um resíduo explosivo de um passado que combinou
numa equação rara, aristocracia branca e escravidão negra?
Imagine o seguinte. Numa festa, chega a cascata de camarões. Os
"mal-educados" avançam sobre os deliciosos crustáceos e dão conta do
prato. Atropelando a fila, locupletam-se e - porque são "mal-educados" -
"pegam" o que podem para seus maridos e filhinhos. Os "bem-educados"
olham a cena com o horror dos semissuperiores, confirmando como a sua
boa "educação" - que segue princípios igualitários gerais, como o de
esperar pelo seu turno, impede tal conduta. Eles confirmam sua
"polidez", mas verificam que não comendo os deliciosos camarões são
bobocas ou babacas porque simplesmente deixam passar uma oportunidade
que era de todos, mas que foi aproveitada pelos mais espertos: os
"mal-educados!".
Moral: o conceito de "educação" tem que ser entendido dentro de um
sistema sócio-histórico para poder ser aplicado com eficiência. Um dos
problemas das escolas públicas numa sociedade com uma concepção
hierárquica de educação é que o ensino pode ser bom, mas o ambiente
seria marcado pela "má-educação" (significando ausência de "boas
maneiras") dos alunos. Sem perceber que, entre nós, a "educação" vai
além da instrução, nada fizemos para introduzir uma "educação para a
igualdade" e para uma cidadania sem favores e sem os usuais "você sabe
com quem está falando?".
No Brasil, uma definição igualitária de educação como um instrumento
universal de saberes, é filtrada. Há um toque de superioridade no "ser
educado" que aristocratiza paradoxalmente o processo, tornando-o
exclusivo. Neste sistema, a instrução seria distinta da "boa educação".
Um engenheiro pode ser competente, mas mal-educado. E isso pode fazer
com que prédios e pontes sejam construídos por linhas tortas.
Não pode haver projeto real de democracia igualitária, fundada no
liberalismo meritocrático e competitivo, sem um sistema educacional
universal que busque a todo custo atingir a todos.
Mas como realizar isso sem abrir o embrulho das ideias preconcebidas
sobre "educação"? Como, então, reformar esse sistema, tornando-o uma
força de internalização de igualdade e de democracia? Convenhamos que
para o antropólogo de Marte que escreve essa coluna, isso não deve ser
fácil em escolas nas quais as crianças tratam seus mestres por "tias".
Ora, o primeiro espaço público que todos experimentamos de modo profundo
é justamente o da escola. O drama que testemunhei no rito de passagem
do "primeiro dia de aula" dos meus filhos e netos, fala eloquentemente
dessa transição dos papéis desempenhados na casa, na qual se é "filho",
"sobrinho" e "netinho"; para o papel de "alunos" sem nenhum privilégio,
exceto - é claro - quando a "boa educação" interfere, fazendo com que
seus mestres os tratem como "sobrinhos", interrompendo uma mudança
crítica.
"Ele é filho do ministro" -, disse a professora. Não vai entrar na
fila da merenda junto com os outros. Ademais, ele traz a merenda de
casa!"
Esse diálogo mostra como uma educação para a igualdade é muito
diversa de uma educação para as boas maneiras. Do mesmo modo, e pela
mesma lógica, quando se observa os poderes da república tentando uma
hierarquia na qual o Executivo seria o mais importante e o Judiciário
estaria submetido ao Legislativo, vê-se uma recusa da educação. Da
educação como um sistema destinado a estabelecer para cada poder limites
e papéis autoimpostos. Essa capacidade de conter-se voluntariamente
dizendo não a si mesmo. Esse apanágio do liberalismo que começamos a
descobrir lentamente, como insiste o meu lado otimista. Por isso,
democracia não depende apenas de educação, como se diz a todo momento.
Ela é, sobretudo, um processo penoso de aceitar discordâncias.
Democracia é educação.
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* Antropólogo. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 22/05/2013
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