O escritor André de Leones estava na cozinha
com sua mãe, na pequena cidade de Silvânia,
quando o sino da igreja
soou.
Pelo toque, uma morte seria anunciada
em seguida, e o som se
propagaria pelo vale goiano a partir do
sistema instalado no campanário.
Até os cachorros paravam
de latir nessa hora. Foi quando a voz do
sacristão comunicou
a morte de dona Lúcia... a mãe de Leones, de nome Lúcia,
deu um pulo e pôs a mão no peito.
"Calma, mãe, a senhora não morreu", acudiu Leones.
"Ou então estamos os dois mortos."
A reportagem é de Marta Barcellos e foi publicada no jornal Valor, 05-04-2013.
Levar um anúncio de morte tão a sério pode parecer coisa antiga, dos tempos em que cortejos fúnebres nas ruas e rituais prolongados de luto eram comuns no país. No entanto, por mais que a morte tenha se deslocado para o ambiente hospitalar e seja assunto considerado desagradável na modernidade, a tradição de registrar e comunicar uma morte para a comunidade se mantém. Carros de som ainda convidam para enterros em bairros populares e cidades menores, como fazia a torre da igreja de Silvânia, na história contada por Leones. Dependendo dos costumes locais, cartazes colados em postes e comunicados em jornais permanecem como mídias eficientes, com leitores atentos. Em direção ao futuro, surgem os memoriais on-line e outras formas de driblar, na internet, a saia-justa de não poder "curtir" a morte de alguém anunciado pelo Facebook.
"Não é um mercado que possamos prospectar, e nem ficaria bem", afirma o diretor-comercial da Infoglobo, Mário Rigon, sobre a grande quantidade de anúncios fúnebres no jornal "O Globo", segundo ele um fenômeno espontâneo. "Apenas deixamos a seção ser paginada por último e temos um operador de 'call center' atencioso de plantão. Acredito que seja uma tradição carioca mostrar o que aquela pessoa representava na sociedade."
O status do morto fica subentendido pelo tamanho e pelo número de anúncios. No começo do mês passado, por exemplo, o jornal teve que abrir uma página extra para abrigar dez anúncios referentes a uma mesma morte, cada um encomendado por um braço da família ou uma entidade das relações do empresário, que morrera de causas naturais.
Os avisos são colocados na mesma página do obituário, uma seção com alto índice de leitura no jornal. Podem ser chamados para enterros, missas de sétimo dia ou apenas registros de aniversários de mortes, algumas de anos atrás. Podem ter apenas dois centímetros ou ocupar uma página inteira.
O anúncio fúnebre é considerado o primeiro dos rituais do luto, que já foram muitos, mas hoje se resumem a velórios curtos e enterros rápidos nas grandes cidades. E talvez seja o mais importante: "É fundamental que o enlutado tenha a oportunidade de se comunicar e se congregar com aqueles que conheceram a pessoa que morreu", diz Maria Helena Pereira Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre o Luto da PUC-SP. Para ela, independentemente das mídias que sejam usadas, a tradição dos anúncios se manterá.
"Os esforços para se negar a morte acabam se mostrando débeis", diz Maria Helena. "Se, por um lado, ninguém gosta de falar de morte, porque precisamos ser descolados e espertos, por outro estamos cada vez mais expostos a notícias sobre tragédias, e nos apropriamos dessas informações para tentar nos entender como mortais." Ou seja, passamos a vida tentando afastar a ideia de morte, sinônimo de fracasso diante da obrigação moderna de vencê-la a qualquer custo, mas ficamos consternados com uma tragédia coletiva como a do incêndio na boate de Santa Maria. "O bom de se entender a morte como algo humano é que isso muda a perspectiva de vida", diz a psicóloga.
Não à toa a morte costuma ser matéria-prima frequente dos escritores. "O uso que se fazia dela, na minha cidade, marcou minha escrita", admite Leones, autor de "Dentes Negros" e "Hoje Está Um Dia Morto", entre outros. Depois do anúncio pela torre da igreja de Silvânia, na sua adolescência, nos anos 1990, um ritual fúnebre iniciava-se com velório prolongado na casa do morto e cortejo fúnebre até o cemitério, e terminava com alguma lição de moral para os jovens a partir da história do falecido ou da forma como morrera. "No fim, alguém sempre comentava: agora ele vai descansar", conta.
"A paz prometida ao falecido camufla a verdadeira e única paz oferecida pelo falecimento, a saber a paz de quem, acompanhando o féretro, constata que ainda não foi a sua vez." Com frases perturbadoras como essa e a inspiração nos anúncios fúnebres que ouvia quando era criança na cidade mineira de Visconde do Rio Branco, Carlos de Brito e Mello escreveu o premiado romance "A Passagem Tensa dos Corpos." No livro, o narrador tem como ocupação principal registrar e descrever as mortes que encontra pelo caminho. "Minha tese no livro é de que o anúncio da morte não é o fim, mas o começo da narrativa: ela é elemento fundante da cultura", diz Mello.
Uma tese que começou a ser formulada a partir da observação de como os adultos reagiam quando um carro de som anunciava alguma morte em Visconde de Rio Branco, cidade dos avós. "A morte deflagrava uma grande conversa, pequenas narrativas sobre as intrigas de nossas vidas comuns. E o Jorginho, filho da Naná, só começava a existir para mim no dia em que tinha morrido." Em seu romance, o conflito surge quando o narrador se depara com uma morte que não pode ser registrada, um cadáver insepulto mantido por uma família, na sala de jantar. "Sem a constatação da morte, a história nunca pode ser finalmente contada", diz o escritor.
Para compor o seu romance, porém, Mello se deparou com problema idêntico ao de qualquer pessoa diante da tarefa de redigir um aviso fúnebre, seja ele lido no carro de som, publicado no jornal ou na internet: a precariedade da linguagem. Para tentar acolher as zonas de penumbra que a morte traz, o escritor recorreu a lacunas de texto, espaços vazios que aparecem por todo o livro. "Cria-se um embaraço irredutível: a linguagem não está apetrechada para a morte. Do ponto de vista informativo, não há mais o que dizer, e no entanto é preciso processar a morte na linguagem. Aí que surgem aquelas palavras solenes ou austeras dos anúncios, a repetição ou a gagueira na cobertura de grandes catástrofes na TV", analisa.
O publicitário e locutor Natto Bretas em geral começa o texto de seus anúncios, repetidos pelo carro de som, da seguinte forma: "Atenção: é com dor e pesar que comunicamos o falecimento de...". Ele faz uma locução "linear e puxada pra baixo" e, como fundo musical, sugere algum tema instrumental "pesado, que remete à tristeza, do tipo fim de filme de guerra". Já usou também, algumas vezes, a música "Ben", de Michael Jackson, e "The Closer I Get You", cantada por Roberta Flack. "Música nacional, ninguém pede", observa.
O carro, o mesmo usado em chamadas comerciais e campanhas políticas, percorre bairros populares da região metropolitana do Rio, especialmente na cidade de Niterói. Quase sempre o morto precisa ser apresentado também pelo apelido e pela posição que ocupava naquela comunidade. "Em geral são pessoas de importância para as classes C, D e E, como um presidente de associação de moradores ou o dono de mercearia local", diz o publicitário, que cobra R$ 100 por hora. Bretas diz acreditar que a frequência desse tipo de anúncio, comum nas cidades do interior, tende a diminuir nas capitais. "No ano passado, só fiz uns quatro." Pelo menos, diz ele, diferentemente de outros tipo de propaganda em carros de som, ninguém reclama do barulho quando o assunto é um enterro.
Para a professora Eliane Mergulhão, doutora em comunicação folclórica, práticas culturais podem permanecer e resistir a inovações tecnológicas mesmo em grandes cidades, quando estão relacionadas a crenças mais arraigadas e temas como a morte. Ela fez um estudo a partir de uma curiosa tradição observada em Caçapava, no interior de São Paulo: ali, a população se acostumou a ser informada sobre mortes por meio de cartazes colados em postes. Pelo hábito local, os comunicados impressos em gráfica são chamados de "convites", chamando para enterros e missas de sétimo dia, e fazem parte dos pacotes de serviços oferecidos pelas funerárias. Assim como os carros de som percorrem apenas os bairros de familiares e conhecidos do morto, os cartazes também são colocados em pontos estratégicos, apontados pelas famílias.
"Enterro lotado é sinal de prestígio", afirma Eliane, professora de comunicação da Universidade Paulista (Unip), que chegou a acompanhar uma cerimônia, anunciada em cartaz, na qual muitos não conheciam a comerciante que havia morrido. A linguagem utilizada como chamariz muitas vezes emprega termos solenes e adjetivos em desuso, provavelmente seguindo padrões antigos da gráfica. A palavra enterro quase sempre é substituída por funeral. No jornal "O Globo", o diretor Rigon também observa a tendência de busca por textos tradicionais, oferecidos como opção para quem procura o jornal - em geral, um conhecido da família. "Mas já tivemos um anúncio em forma de poesia. E a cruz é cada vez menos solicitada", diz ele.
Se o texto do anúncio é o começo da narrativa que será criada em torno do morto, como diz o escritor Carlos Mello, as palavras podem ser o fio que vão refazer o rombo aberto na comunidade à qual ele pertencia, na visão da psicóloga Maria Helena: "Os rituais do luto são importantes para isso. É muito sério quando eles são desconsiderados."
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Fonte: IHU on line, 18/05/2013
Imagem da Internet
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