Luiz Felipe Pondé*
A janta e a normalidade do cotidiano sempre valeram mais do que qualquer vida humana
Você esconderia judeus em sua casa durante a França ocupada pelos nazistas? Não, não precisa responder em voz alta.
Melhor assim, para não passarmos a vergonha de ouvirmos nossas mentiras
quando na realidade a janta, o bom emprego e a normalidade do cotidiano
sempre valeram mais do que qualquer vida humana. Passado o terror, todos
viramos corajosos e éticos.
Anos atrás, enquanto eu esperava um trem na estação de Lille, na França,
para voltar para Paris, onde morava na época --ainda bem que tinha
minha família comigo porque Paris é uma cidade hostil--, li a resenha de
um livro inesquecível na revista "Nouvel Observateur".
Nunca li esse livro, nem lembro seu nome, mas a resenha era promissora.
Entrevistas com filhos e filhas de pessoas que esconderam judeus em casa
durante a Segunda Guerra davam depoimentos de como se sentiram quando
crianças diante dos atos de coragem de seus pais e suas mães.
A verdade é que essas crianças detestavam o ato de bravura de seus pais.
Sentiam (com razão?) que não eram amados pelos pais, que preferiam pôr
em risco a vida deles a protegê-los, recusando-se a obedecer a ordem:
quem salvar judeus morre com eles.
Podemos "desculpar" as crianças dizendo que eram crianças. Nem tanto.
Adolescentes também sentiam o mesmo abandono por parte dos pais
corajosos. Cônjuges idem.
Está justificada a covardia em nome do amor familiar? Nem tanto, mas
deve-se escolher um estranho em detrimento de um filho assustado?
Tampouco dizer que os covardes também seriam vítimas vale, porque o que
caracteriza a coragem é exatamente não se deixar fazer de vítima --coisa
hoje na moda, isto é, se fazer de vítima.
Não foi muito diferente aqui no Brasil durante a ditadura, guardando-se, claro, as diferenças de dimensão do massacre.
No entanto, não me interessa hoje essa questão da falsa ética quando o
risco já passou --a moral de bravatas. Mas sim a ambivalência
insuportável que uma situação como essa desvela, na sua forma mais
aguda.
Ou meu pai me ama ou ama o judeu escondido em minha casa, ou, ele me
ama, mas não consegue dormir com a ideia de que não salvou alguém que
considerava vítima de uma injustiça, e por isso me põe em risco. Eis a
razão mais comum dada por esses pais, quando indagados, da razão de pôr
em risco sua vida e família: "Não conseguia fazer diferente". Mas a
ambivalência da vida não se resume a casos agudos como esses.
Freud descreveu os sentimentos ambivalentes da criança para com o pai no
complexo de Édipo: amo meu pai, mas quero também me livrar dele, e
também sinto culpa por sentir vontade de me livrar dele.
Independente de crer ou não em Freud plenamente (sou bastante freudiano
no modo de ver o mundo, e Freud foi o primeiro objeto de estudo
sistemático em minha vida), a ambivalência aí descrita serve como matriz
para o resto da vida.
Os pais amam os filhos (nem sempre), mas ao mesmo tempo ter filhos
limita a vida num tanto de coisas (e hoje em dia muita mulher deixa para
ser mãe aos 40 por conta deste medo, o que é péssimo porque a mulher
biologicamente deve ser mãe antes dos 35). Apesar dos gastos
intermináveis, no horizonte jaz o possível abandono na velhice por parte
destes mesmos filhos "tão" amados.
Mas, ao mesmo tempo, não ter filhos pode ser uma chance enorme para você
envelhecer como um adulto infantil que tem toda sua vida ao redor de
suas pequenas misérias narcísicas.
Casamento é a melhor forma de deixar de querer transar com alguém devido
ao esmagamento do desejo pela lista infinita de obrigações que assola
homens e mulheres, dissolvendo a libido nos cálculos da previdência
privada.
Mas, ao mesmo tempo, a liberdade deliciosa de transar com quem quiser
(ficar solteiro), com o tempo, facilmente fará de você uma paquita velha
ridícula sozinha que confunde pagar por sexo com um homem mais jovem
com emancipação feminina. E, no caso do homem, o tiozão babão espreita a
porta.
E, também, terá razão quem disser que mesmo casando você poderá vir a ser uma paquita velha ou um tiozão babão.
Quantas ambivalências espera você nessa semana?
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Folha on line, 27/05/2013
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