A arte de tolerar
Estudo publicado na Inglaterra mostra que a amizade pode se tornar uma chateação. Mas, apesar disso, as pessoas engolem sapos, suportam momentos de tédio e levam desaforos para casa a fim de não perder o amigo
Amizade
é como sexo: mesmo quando não é o máximo, ainda vale a pena. Pelo menos
é o que se pode concluir de um estudo recém-publicado na Inglaterra
pela centenária Sociological Review. A partir da análise de centenas de
relatos de vida, o trabalho demonstra que os amigos se transformam com
insistente frequência em uma chateação – mas mesmo assim pouca gente
parece disposta a se desfazer deles. Perde-se a piada, mas não se perde o
amigo.
O trabalho saltou do mundo acadêmico para as conversas de mesa de bar por desafiar uma concepção arraigada, eivada de romantismo: a de que a amizade é sempre uma relação baseada no benefício e no prazer mútuos. Ela é isso, certamente. Mas também é a arte de engolir sapos, de levar desaforos para casa e de suportar momentos de tédio absoluto. Os quatro pesquisadores que assinam o estudo mostram que mesmo as relações mais problemáticas tendem a ser mantidas por anos ou décadas a fio. As mulheres, especialmente, parecem dispostas a qualquer sacrifício para não romper com um amigo – por pior que ele seja.
– Para as mulheres que participaram do estudo, perseverar nas amizades difíceis é um dever. O sentimento é de que amizades que duraram longo tempo precisam ser preservadas – registram os autores.
Uma das razões para as amizades serem mantidas a qualquer custo, por mais insatisfatórias que se tornem, parece ser a escassez do produto no mercado. Pesquisas feitas em diferentes partes do mundo apontam que, apesar dos milhares de amigos virtuais na internet, há cada vez menos amigos do peito no mundo real. Nos Estados Unidos, por exemplo, a média de amigos íntimos por pessoa caiu de três para dois em duas décadas. Em 1985, 10% dos norte-americanos relatavam não ter ninguém com quem discutir assuntos pessoais importantes.
Há esforço para salvar amizades
Em 2010, o índice saltara para 25% – e outros 20% diziam ter como único confidente não um amigo, mas o cônjuge. Os brasileiros seguem a mesma tendência:
– A redução da amizade também ocorre no Brasil. Há cada vez mais dificuldade de achar amigos e compartilhar a intimidade. O afastamento decorre do ritmo acelerado da vida. As pessoas estão com muito trabalho, sem tempo para passar com os outros – afirma a professora de psicologia Luciana Karine de Souza, que tematizou a amizade em seu doutorado pela UFRGS.
Com 30 anos de experiência, o psicanalista Robson de Freitas Pereira nota que as amizades tornaram-se tão valorizadas que são consideradas relações mais estáveis até do que os casamentos. Ninguém quer arriscar-se a perdê-las, por receio da solidão. A tendência é de se apegar, mesmo que o amigo não atenda às expectativas.
– Ter um amigo se tornou tão importante que as pessoas fazem mais esforço para salvar uma amizade do que para salvar um casamento – garante Pereira.
Quando o esforço não dá certo e a amizade é rompida, as marcas são duradouras. Um dos pontos mais chamativos do estudo da Sociological Review é revelar que um amigo perdido dura para sempre. Veja-se o caso da técnica de enfermagem Vanderlaina Silveira Martins, 38 anos, moradora de Porto Alegre. Quando ela cursava o 2º Grau, conheceu na escola um rapaz com o qual nem precisava falar para se entender. Bastava um olhar. Eles foram amigos inseparáveis durante dois anos.
Um dia, a mãe do adolescente sondou Vanderlaina sobre a sexualidade dele, dizendo que queria ajudá-lo. A então estudante, pensando que fazia um bem, confirmou a homossexualidade do amigo. Ele foi posto para fora de casa. Nunca perdoou a amiga. Passadas duas décadas, Vanderlaina ainda se emociona:
– Sou culpada. Não fui amiga. Procurei psicólogo por causa disso, mas a mancha não sai. Eu o amo até hoje. Foi o único grande amigo que tive, e joguei fora. Não perdoo a minha traição.
É um cargo de confiança
A traição é justamente o grande fantasma da amizade – e o temor de que ela se concretize pode ter algum peso no esforço para evitar rupturas. Amigo é cargo de confiança, é um arquivo vivo.
– Acontece que toda confiança traz em si o problema da traição. O amigo é sempre uma fonte possível de traição, de revelação dos meus segredos mais íntimos. Daí ser fonte de preocupação permanente – diz Mauro Koury, coordenador do Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções da Universidade Federal da Paraíba.
As dicas de Célia Ribeiro
Como enfrentar o lado aborrecido da amizade sem ferir os manuais de boas maneiras? Com muito esforço e paciência, responde a colunista de ZH Célia Ribeiro, perita em assuntos de etiqueta.
– Amizade não é só alegria e oba-oba. É um diálogo, um jogo de parceria. Sem manter esse jogo, ela não resiste. Ser amigo é abrir parênteses dos próprios interesses e dar atenção aos interesses do amigo, mesmo que eles sejam chatos. É telefonar, apesar de não ter vontade. É comparecer à homenagem feita ao amigo e ouvir a discurseira – afirma.
E se o amigo for um chato? Nesse caso, diz Célia, o primeiro passo é identificar com que tipo de chato se está lidando. Ela aponta duas possibilidades: o chato bem intencionado e o chato invasivo, malicioso, fofoqueiro. O primeiro tipo, por mais aborrecido que seja, deve ser bem tratado:
– Tem de telefonar para a pessoa, mas diminuir o convívio, porque quanto maior o convívio mais a gente se chateia e mais corre o risco de ser grosseiro – explica.
Em alguns casos, é aconselhável engolir sapos – dependendo do tamanho do sapo, do quanto a pessoa já ajudou no passado e do momento pessoal que ela está vivendo. Se for o caso de romper, Célia recomenda como método esfriar a relação, não procurar mais e agradecer os convites, mas recusá-los.
– Na hora de um rompimento, não se deve colocar nada por escrito. Vai estar tudo documentado, se houver desejo de reatar depois.
O trabalho saltou do mundo acadêmico para as conversas de mesa de bar por desafiar uma concepção arraigada, eivada de romantismo: a de que a amizade é sempre uma relação baseada no benefício e no prazer mútuos. Ela é isso, certamente. Mas também é a arte de engolir sapos, de levar desaforos para casa e de suportar momentos de tédio absoluto. Os quatro pesquisadores que assinam o estudo mostram que mesmo as relações mais problemáticas tendem a ser mantidas por anos ou décadas a fio. As mulheres, especialmente, parecem dispostas a qualquer sacrifício para não romper com um amigo – por pior que ele seja.
– Para as mulheres que participaram do estudo, perseverar nas amizades difíceis é um dever. O sentimento é de que amizades que duraram longo tempo precisam ser preservadas – registram os autores.
Uma das razões para as amizades serem mantidas a qualquer custo, por mais insatisfatórias que se tornem, parece ser a escassez do produto no mercado. Pesquisas feitas em diferentes partes do mundo apontam que, apesar dos milhares de amigos virtuais na internet, há cada vez menos amigos do peito no mundo real. Nos Estados Unidos, por exemplo, a média de amigos íntimos por pessoa caiu de três para dois em duas décadas. Em 1985, 10% dos norte-americanos relatavam não ter ninguém com quem discutir assuntos pessoais importantes.
Há esforço para salvar amizades
Em 2010, o índice saltara para 25% – e outros 20% diziam ter como único confidente não um amigo, mas o cônjuge. Os brasileiros seguem a mesma tendência:
– A redução da amizade também ocorre no Brasil. Há cada vez mais dificuldade de achar amigos e compartilhar a intimidade. O afastamento decorre do ritmo acelerado da vida. As pessoas estão com muito trabalho, sem tempo para passar com os outros – afirma a professora de psicologia Luciana Karine de Souza, que tematizou a amizade em seu doutorado pela UFRGS.
Com 30 anos de experiência, o psicanalista Robson de Freitas Pereira nota que as amizades tornaram-se tão valorizadas que são consideradas relações mais estáveis até do que os casamentos. Ninguém quer arriscar-se a perdê-las, por receio da solidão. A tendência é de se apegar, mesmo que o amigo não atenda às expectativas.
– Ter um amigo se tornou tão importante que as pessoas fazem mais esforço para salvar uma amizade do que para salvar um casamento – garante Pereira.
Quando o esforço não dá certo e a amizade é rompida, as marcas são duradouras. Um dos pontos mais chamativos do estudo da Sociological Review é revelar que um amigo perdido dura para sempre. Veja-se o caso da técnica de enfermagem Vanderlaina Silveira Martins, 38 anos, moradora de Porto Alegre. Quando ela cursava o 2º Grau, conheceu na escola um rapaz com o qual nem precisava falar para se entender. Bastava um olhar. Eles foram amigos inseparáveis durante dois anos.
Um dia, a mãe do adolescente sondou Vanderlaina sobre a sexualidade dele, dizendo que queria ajudá-lo. A então estudante, pensando que fazia um bem, confirmou a homossexualidade do amigo. Ele foi posto para fora de casa. Nunca perdoou a amiga. Passadas duas décadas, Vanderlaina ainda se emociona:
– Sou culpada. Não fui amiga. Procurei psicólogo por causa disso, mas a mancha não sai. Eu o amo até hoje. Foi o único grande amigo que tive, e joguei fora. Não perdoo a minha traição.
É um cargo de confiança
A traição é justamente o grande fantasma da amizade – e o temor de que ela se concretize pode ter algum peso no esforço para evitar rupturas. Amigo é cargo de confiança, é um arquivo vivo.
– Acontece que toda confiança traz em si o problema da traição. O amigo é sempre uma fonte possível de traição, de revelação dos meus segredos mais íntimos. Daí ser fonte de preocupação permanente – diz Mauro Koury, coordenador do Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções da Universidade Federal da Paraíba.
As dicas de Célia Ribeiro
Como enfrentar o lado aborrecido da amizade sem ferir os manuais de boas maneiras? Com muito esforço e paciência, responde a colunista de ZH Célia Ribeiro, perita em assuntos de etiqueta.
– Amizade não é só alegria e oba-oba. É um diálogo, um jogo de parceria. Sem manter esse jogo, ela não resiste. Ser amigo é abrir parênteses dos próprios interesses e dar atenção aos interesses do amigo, mesmo que eles sejam chatos. É telefonar, apesar de não ter vontade. É comparecer à homenagem feita ao amigo e ouvir a discurseira – afirma.
E se o amigo for um chato? Nesse caso, diz Célia, o primeiro passo é identificar com que tipo de chato se está lidando. Ela aponta duas possibilidades: o chato bem intencionado e o chato invasivo, malicioso, fofoqueiro. O primeiro tipo, por mais aborrecido que seja, deve ser bem tratado:
– Tem de telefonar para a pessoa, mas diminuir o convívio, porque quanto maior o convívio mais a gente se chateia e mais corre o risco de ser grosseiro – explica.
Em alguns casos, é aconselhável engolir sapos – dependendo do tamanho do sapo, do quanto a pessoa já ajudou no passado e do momento pessoal que ela está vivendo. Se for o caso de romper, Célia recomenda como método esfriar a relação, não procurar mais e agradecer os convites, mas recusá-los.
– Na hora de um rompimento, não se deve colocar nada por escrito. Vai estar tudo documentado, se houver desejo de reatar depois.
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Reportagem por ITAMAR MELO
Fonte: ZH on line, 17/06/2012
Imagem da Internet
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