O poder dos cenários na literatura policial
P.D. JAMES
RESUMO A série de textos que a "Ilustríssima" apresenta em
primeira mão traz trecho do livro "Segredos do Romance Policial" (184
págs., R$ 29,90), de P.D. James. O ensaio da premiada ficcionista
inglesa sobre o gênero literário que a consagrou será publicado pela
editora Três Estrelas nesta semana.
Ler qualquer obra de ficção é um ato simbiótico. Nós, leitores,
contribuímos com nossa imaginação para a imaginação do escritor ao
entrarmos voluntariamente no seu mundo, participando da vida das pessoas
que ali habitam e formando, a partir das palavras e imagens do autor,
nosso próprio quadro mental de pessoas e lugares.
O cenário em qualquer romance é, portanto, um elemento importante de
todo o livro. O lugar, afinal de contas, é onde os personagens
representam suas tragicomédias, e só se a ação estiver firmemente
enraizada na realidade física é que podemos entrar plenamente no mundo
deles.
Não se trata de sugerir que o cenário seja mais importante que a
caracterização dos personagens, a narrativa e a estrutura; essas quatro
coisas precisam ser mantidas em tensão criativa, e a história toda deve
ser escrita em linguagem atraente caso se deseje que o livro sobreviva
ao primeiro mês da publicação.
Se questionados, muitos leitores optariam pela caracterização como o
elemento fundamental da ficção, e, de fato, se os personagens não
conseguem convencer, o romance não é mais que uma narrativa sem vida,
insatisfatória.
Mas o cenário é onde essas pessoas vivem, se movem e têm sua existência,
e precisamos respirar o ar que elas respiram, ver com seus olhos,
caminhar pelos caminhos que elas trilham e habitar as salas que o
escritor mobiliou para elas.
Tão importante é essa identificação que muitos romances têm como título o
lugar onde se concentra a ação; exemplos óbvios são "Wuthering Heights"
["O Morro dos Ventos Uivantes"], "Mansfield Park", "Howards End" e
"Middlemarch", nos quais o cenário exerce uma influência unificadora e
dominante tanto nos personagens como na trama.
Procurei tornar isso verdadeiro para o Tâmisa em meu romance "Pecado
Original" (1996), no qual o rio liga tanto os elementos mais dramáticos
da história como a atmosfera entre as pessoas que vivem e trabalham
perto dele. Para um personagem, ele é uma fonte de contínuo fascínio e
prazer; seu apartamento ao lado do rio, um símbolo de ambição
conquistada; enquanto para outro a corrente escura e permanente é um
apavorante lembrete da solidão e da morte.
CÂNONE Alguns romancistas no cânone da ficção inglesa criaram
lugares imaginários com tamanhos detalhes e com tanto esmero que eles se
tornaram reais tanto para o autor como para o leitor.
A respeito de "Framley Parsonage", acrescentado por ele aos condados
ingleses, Anthony Trollope disse que conhecia suas estradas e ferrovias,
suas cidades e paróquias, qual caça corria por lá, e disse ainda que
"não há nome dado a um local fictício que não represente para mim um
lugar do qual conheço todos os detalhes, como se tivesse vivido e
passeado por lá".
De maneira semelhante, Thomas Hardy criou Wessex, de que se pode traçar
um mapa, um condado de sonho que "gradativamente solidificou-se numa
região utilitária para onde as pessoas podem ir, alugar uma casa e
escrever para os jornais". Autores de romances policiais raramente têm
espaço para descrever um cenário com tantos detalhes, mas, embora isso
possa ser feito com mais economia, o lugar deve ser tão real para o
leitor como Barchester e Wessex.
Acho importante também que o cenário, sendo parte integrante de todo o
romance, deva ser percebido através da mente de um dos personagens, não
meramente descrito pela voz autoral, de forma que lugar e personagem
interajam e que aquilo que o olho absorve influencie o clima e a ação.
Uma função do cenário é acrescentar credibilidade à história e isso é
especialmente importante na literatura de crime, que com frequência
trata de acontecimentos bizarros, dramáticos e horríveis que precisam
estar enraizados num lugar muito tangível, no qual o leitor possa entrar
como se entrasse numa sala familiar.
CLIMA Se acreditamos no lugar, acreditamos nos personagens. Além
disso, o cenário pode estabelecer desde o primeiro capítulo o clima do
romance, seja ele de suspense, terror, apreensão, ameaça ou mistério.
Basta pensar em "O Cão dos Baskerville", de Conan Doyle, naquela escura e
sinistra mansão situada no meio da charneca envolta em neblina, para
apreciar o quanto o cenário pode ser importante no estabelecimento da
atmosfera. O cão de Wimbledon Common dificilmente produziria tamanho
frisson de horror.
Mas o cenário de uma história de detetive pode enfatizar o terror por
contraste, enquanto, paradoxalmente, fornece um alívio para o horror. O
poeta W. H. Auden, que era viciado na leitura desse tipo de narrativa,
examinou o gênero à luz da teologia cristã em seu conhecido ensaio "The
Guilty Vicarage".
Ele diz: "Na história de detetive, assim como em sua imagem espelhada, a
busca do Graal, mapas (o ritual do espaço) e horários (o ritual do
tempo) são desejáveis. A natureza deve refletir seus habitantes humanos,
isto é, deve ser o Grande Lugar Bom; porque, quanto mais semelhante ao
Éden ele for, maior a contradição do assassinato [], o cadáver tem de
chocar não só porque é um cadáver, mas também porque, mesmo para um
cadáver, está chocantemente fora de lugar, como a bagunça que um
cachorro faz no tapete de uma sala."
Ele acreditava, como acho ser o caso com a maioria dos autores de
histórias de detetive britânicos, que um único corpo no chão da sala
pode ser mais horrível do que uma dúzia de corpos crivados de balas nas
ruas perigosas de Raymond Chandler, precisamente porque está de fato
chocantemente fora de lugar.
Em diversos romances meus, usei o cenário dessa forma para enfatizar o
perigo e o terror por contraste. Em "Um Gosto por Morte", os dois
corpos, ambos com a cabeça quase decepada, são descobertos na sacristia
de uma igreja por uma meiga solteirona e o jovem vagabundo de quem ela
ficou amiga.
O contraste entre a santidade do lugar e a brutalidade dos assassinatos
intensifica o horror e pode produzir no leitor uma inquietação
desorientadora, uma sensação de que a ordem estabelecida foi posta
abaixo e que não pisamos mais em terra firme.
INFERNO Em "Trabalho Impróprio para uma Mulher", meu primeiro
livro com a jovem detetive Cordelia Gray, um assassinato particularmente
horrendo e brutal ocorre no auge do verão em Cambridge, onde vastos
jardins, rochas envoltas em sol e o rio cintilante fazem Cordelia se
lembrar das palavras de John Bunyan: "Então vi que havia um caminho para
o Inferno, mesmo saindo do portão do Paraíso".
São geralmente esses caminhos para o Inferno, não o destino, que
fornecem ao romancista de crime os trajetos mais fascinantes a explorar.
Romancistas policiais sempre gostaram de ambientar suas histórias numa
sociedade fechada e isso tem diversas vantagens óbvias. Não se pode
permitir que a mancha da suspeita se espalhe longe demais se cada
suspeito tem de ser uma criatura inteira, crível, que respira, não um
boneco recortado de papelão a ser ritualmente derrubado no último
capítulo.
E numa comunidade fechada -hospital, escola, escritório, editora, usina
atômica-, onde os personagens sempre passam mais tempo com colegas de
trabalho do que com a família, sobretudo se o cenário servir também como
residência, a irritação que pode emergir dessa intimidade enclausurada e
involuntária é capaz de gerar animosidade, ciúme e ressentimento,
emoções que, se forem suficientemente fortes, podem ferver e acabar
explodindo na destrutiva fatalidade da violência.
A comunidade isolada pode também ser o epítome de um mundo externo mais
amplo, e isso, para um escritor, pode ser uma das maiores atrações de
uma ambientação ficcional circunscrita, principalmente quando os
personagens estão sendo explorados sob o trauma de uma investigação
oficial de assassinato, processo que pode destruir a privacidade de
vivos e mortos.
ALDEIA O cenário de aldeia sempre foi popular -comumente, é
claro, em Agatha Christie-, uma vez que a cidadezinha inglesa é em si
uma sociedade fechada que, vivamos numa aldeia ou não, detém um poderoso
domínio sobre nossa imaginação, uma imagem composta de nostalgia por
uma vida um dia experimentada ou imaginada e um vago desejo de escapar
da metrópole para uma vida mais simples, menos frenética, mais pacífica.
É interessante como quão vividamente nós, leitores, recriamos para nós
mesmos o cenário rural, em geral com o auxílio poderoso de imagens da
televisão e do cinema. Não creio que Agatha Christie tenha em lugar
algum descrito detalhadamente St. Mary Mead, mas conhecemos a rua da
cidadezinha, a igreja, o chalé, genuinamente velho mas sem marcas do
tempo, com seu belo jardim na frente, aldrava brilhante e, lá dentro,
miss Marple, com sua mistura de suave autoridade e bondade, explicando à
sua empregada mais recente que o modo como ela espana os móveis deixa a
desejar.
[...] Num sentido mais limitado, o cenário, em especial a arquitetura e
as casas, é importante para a caracterização, uma vez que as pessoas
reagem a seu ambiente e são influenciadas por ele. Quando um autor
descreve uma sala na casa da vítima, talvez a sala em que o corpo foi
encontrado, a descrição pode revelar ao leitor perceptivo muito do
caráter e dos interesses do morto.
Móveis, livros, quadros, artigos pessoais em armários e estantes, todo o
triste resíduo da vida terminada conta sua história. Por essa razão o
local onde o corpo é encontrado é particularmente revelador e considero a
descrição do encontro do corpo como um dos capítulos mais importantes
de um romance policial.
Encontrar um corpo assassinado é uma experiência horrível, às vezes
transformadora, para a maioria das pessoas normais, e o texto deve ser
vívido e realista o suficiente para permitir que o leitor participe do
choque e do horror, da repulsa e da pena. As emoções desse momento e a
linguagem usada para comunicá-las devem, em minha opinião, refletir a
pessoa que faz a descoberta.
O cenário é onde essas pessoas vivem, se movem e têm sua existência, e
precisamos respirar o ar que elas respiram, ver com seus olhos, habitar
as salas que o escritor mobiliou para elas
Auden acreditava que um corpo no chão da sala pode ser mais horrível
do que uma dúzia de corpos crivados de balas nas ruas de Chandler,
precisamente por estar fora de lugar
Quando um autor descreve uma sala na casa da vítima, talvez a sala em
que o corpo foi encontrado, a descrição pode revelar ao leitor muito do
caráter e dos interesses do morto------------------
Tradução JOSÉ RUBENS SIQUEIRA
Fonte: Folha on line, 17/06/2012
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