Arnaldo Jabor*
"Cara, matar o homem eu entendo, até eu podia matar, mas
esquartejar!... Ah, isso é demais!" Ouvi essa frase várias vezes desde o
nefando crime. "Matou a mãe sem motivo" - assim eram as famosas
manchetes dos jornais policiais d'antanho. Assassinos comuns nos
confortam com seus motivos bárbaros (miséria, ignorância), mas o
esquartejador tira-nos o sossego da alma, pois há entre nós e a loucura
um limite que é quase nada. Lembram daquele cirurgião que desmembrou a
namorada, alegando "legítima defesa"? E aquele garoto que matou pai e
mãe nos Jardins de São Paulo e que a rica família conseguiu esconder? E o
caso Isabela, e a Suzanne? Fica um buraco vazio em nossa memória. Não
aguentamos viver sem clareza entre o bem e o mal.
Entendemos até as quentes paixões assassinas, mas o horror é gelado. A
Elize disse que matou por ciúmes, por amor, para realizar ao avesso um
pavoroso amor/ódio que lhe devorava a alma.
Agora, surgiu um legista barbudo que nos trouxe uma nova versão e
(talvez) alívio de entendimento: "Foi muito difícil fazer a necropsia de
muitos pedaços em saquinhos de plástico" - reclamou -, "mas, creio que
ele ainda estava vivo quando foi degolado". E aí?
Isso nos conforta ou apavora? Essa versão de crime 'quente' torna a mulher mais monstro ou menos monstro?
A cena: o Matsunaga caído vê, num flash, sua amada, com a faca que
cortara a pizza, rasgando sua garganta - um raio antes da escuridão
total. Por um segundo, houve a testemunha do gesto. Por um instante,
houve um fotograma de filme de horror, um fotograma de cinema realista
mais crível que a fria cirurgia da vingança. Como no cinema, a
verossimilhança é exigência das plateias. O crime seco faz menos
sucesso. Se ela o degolou vivo, é bom para a defesa ou para a acusação?
Ela, impulsionada pelo ódio, aumenta ou diminui a gravidade do
homicídio? O que é mais desumano - o sangue quente ou sangue frio?
No crime quente haveria ao menos uma espécie de 'confissão' à vítima,
quase um diálogo. Ele veria a própria morte e não seria apagado como um
abajur e transformado em pacotinhos nas bolsas Vuitton. Vejo nas
revistas que fica mais fácil classificá-la de 'monstro', se ele foi
degolado vivo. Ela seria mais cruel, mais violenta, porém mais
compreensível. "Presa de desatino, arrancou à faca o coração do amante" -
dizia outra antiga manchete. (Este texto vai meio 'esquartejado'
também, porque é impossível fechar tudo numa síntese, exatamente como é
impossível para o legista juntar as partes e alcançar um sentido único.)
E se o crime foi gelado? No caso da morte fria, o japonês não saberia
nem que morrera. E teríamos não apenas a crueldade, mas a burocrática
cirurgia da vingança. Ela poderia ter chamado a polícia, entregar o
corpo intacto, confessar o crime por autodefesa e ser inocentada em
julgamento. Mas, ela era, como os jornais sempre repetem, uma "garota de
programa", uma puta, claro, essa palavra tão odiosa quanto desejada.
Nós pagamos a prostituta para ela não existir. E subjaz no freguês, em
muitos putanheiros, além do medo de amar, uma vontade secreta de ser
bom, de merecer a gratidão da mulher. Por medo e desejo, o Matsunaga
gostava de se sentir 'salvador', protegido pela gratidão das 'decaídas'.
Mas, hoje as prostitutas se respeitam, são profissionais sem culpa.
Antes, o freguês era o "sujeito" dos bordeis. Hoje, ele é o objeto. Há
um vento gelado nos lupanares atuais, limpos, rápidos como uma
lanchonete. Há algo de McDonald's nos puteiros contemporâneos.
Nos noticiários há uma sutil analogia entre putaria e crime, entre a
mulher que se dá em pedaços a qualquer um e depois esquarteja. Ela deve
ter pensado: "Vou perder tudo que tenho; logo, tenho de esconder o
corpo".
O desmembramento desperta em nós uma curiosidade macabra, semelhante à
fantasia primitiva de assistirmos à própria fecundação, a chamada 'cena
primária' dos pais se amando: os dois corpos juntos com uma faca entre
eles.
A cena: A moça deu o tiro. Instalou-se na casa um grande silêncio. O
clima é outro; não um violento melodrama, mas um seco documentário.
A filha dormia, a babá tinha ido embora, os quadros estavam nas
paredes, os restos de pizza esfriavam e os dois ficaram sozinhos.
Sentou no sofá para pensar no que fazer, foi buscar a faca de cortar a
pizza, esperou o sangue coagular e dedicou-se à metódica tarefa de
corte.
Eu acho mais terrível a solidão dos dois: ela viva e ele virado em
coisa. Enfim, sós - quase um "tête-à-tête". O que aterroriza é a
naturalidade do trabalho da assassina, como se trincha uma galinha. No
Holocausto, o mais espantoso era a zelosa banalidade do extermínio -
quantos dentes de ouro, quantos óculos, quantos anéis.
O esquartejamento é uma segunda morte. É o contrário da tortura em
que o desesperado desejo da vítima é morrer. No caso, o que houve foi
uma tortura post-mortem, em que a vítima não sentia mais nada, mas era
preciso que fosse desumanizada, impedida para sempre de subir aos céus,
de reencarnar. É isso que o esquartejador almeja: privar o morto até da
morte, impedir uma identidade para o corpo.
O que me fascina nas prostitutas não é a falta de uma 'moralidade',
não é o 'pecado' atribuído a suas vidas; o que impressiona é a espantosa
mutação existencial provocada por centenas de pedaços de seu corpo dado
a fregueses, anos a fio. Como fica a cabeça de uma prostituta, mistura
de heroína com desgraçada, com uma experiência de humilhações que
ninguém tem?
A marca da prostituição é muito profunda. Mesmo assim, na maioria
delas mora um desejo de amor para além do "michê". Tentam, mas são
humilhadas na gratidão. O cara tira a mulher da 'vida fácil' e isso
nunca é esquecido pelos dois. Um dia virá a frase: "Vai voltar para o
lixo, sua puta!" Ou seja, não adianta procurarmos uma explicação que
sintetize o crime, como se a vida social fosse um contrato de bom senso.
Como se fôssemos animais racionais e a loucura, um desvio. É o
contrário, irmãos...
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* Cineasta. Roteirista. Diretor de cinema e TV. Produtor cinematográfico. Dramaturgo. Crítico. Jornalista. Escritor árabe-brasileiro. Colunista do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 19/06/2012
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