domingo, 17 de junho de 2012

Que Shakespeare escreveu Shakespeare?

Eis a questão
NELSON DE SÁ

RESUMO Americanos, os dois maiores especialistas em Shakespeare da atualidade divergem sobre a autoria das peças atribuídas ao poeta inglês. Em entrevista, os acadêmicos Stephen Greenblatt e James Shapiro falam sobre suas teses defendidas em livros recém-publicados no Brasil. Os autores participam de debate na Flip em 6/7.
Na incessante produção de estudos shakespearianos, ano após ano revirando o cadáver do poeta, dois acadêmicos sobressaíram na última década: Stephen Greenblatt, de Harvard, e James Shapiro, de Columbia. Ambos americanos, eles são hoje considerados na própria Inglaterra as referências contemporâneas em William Shakespeare. E parecem se situar, tema após tema, em extremos opostos.
Greenblatt, autor de *"Como Shakespeare se Tornou Shakespeare" [trad. Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra, Companhia das Letras, 456 págs., R$ 59]*, manteve distância do conflito sobre a autoria das peças. "A questão autoral é algo cansativa. Fico feliz de deixar outros cruzarem lanças em torno dela", ele diz.
Quem tomou para si a tarefa foi Shapiro, autor de *"Quem Escreveu Shakespeare" [trad. Liliana Negrello e Christian Schwartz, Nossa Cultura, R$ 358 págs., R$ 59]*, uma resposta aos que questionam Shakespeare, que sai aqui na próxima semana. Shapiro culpa pela disseminação de teorias conspiratórias os próprios scholars que especulam sobre a vida do poeta.
Não cita diretamente, mas seu alvo é o próprio Greenblatt.
Eles se enfrentam no próximo dia 6, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), com mediação do jornalista Cassiano Elek Machado. Leia, a seguir, a entrevista que Greenblatt concedeu à Folha e, ao lado, a conversa com Shapiro.
Folha - "Como Shakespeare se Tornou Shakespeare" o tornou um autor mundial, para além do estudo de história, mas também alvo. Já disseram que o sr. vai longe demais em conjecturas, e o sr. preferiu não responder. Não vê as críticas como parte de um questionamento mais amplo do novo historicismo?
Stephen Greenblatt - Há boas razões para criticar conjecturas biográficas envolvendo Shakespeare: questões sobre a natureza das evidências, sobre os elos entre as evidências de que dispomos e as peças e poemas específicos, sobre a validade geral de qualquer especulação biográfica na tentativa de compreender obras de arte.
[Jorge Luis] Borges celebremente comparou Shakespeare, nesse esquivamento absoluto, a Deus. Mas Shakespeare não era Deus nem é absolutamente arredio. Era uma pessoa real que vivia num mundo real. E é eminentemente razoável, ou pelo menos parece ser assim para mim, sentir-se próximo dessa pessoa que se dirige a nós com tamanha potência e querer saber o possível sobre ela.
[Mas] não me sinto inclinado a entrar em tentativas de autojustificação pelo simples motivo de que a justificativa de meu livro, se é que existe, deve estar no próprio livro -ou seja, em qualquer iluminação que ele pode trazer à experiência e ao entendimento da obra. 

O sr. diz que a ideia para "Como Shakespeare se Tornou Shakespeare" veio com a premissa do filme"Shakespeare Apaixonado" (1998). Pensou no livro para tornar Shakespeare mais acessível?
Scholars tendem a não acreditar que consigam interessar mais que um pequeno número de pessoas nos assuntos para os quais devotam suas carreiras. Mas o roteiro de "Shakespeare in Love", de Marc Norman e Tom Stoppard, foi bem-sucedido em engajar um grande público ao que é essencialmente o tipo de pergunta levantada pela crítica literária: como Shakespeare passou do autor de uma peça como "Os Dois Cavalheiros de Verona" para o de "Romeu e Julieta"?
A intuição do filme foi que a chave deve estar não só no gênio natural de Shakespeare, mas também em sua experiência histórica, algo que é encapsulado, à maneira dos filmes de Hollywood, na figura cativante de Gwyneth Paltrow.
Agora, nós não sabemos se houve tal figura na vida do Shakespeare real, mas a intuição básica me parece certa. E acontece que podemos reconstruir bastante da experiência de Shakespeare sobre o mundo histórico em que ele estava mergulhado. Minha intenção não foi popularizar Shakespeare, mas tornar mais acessíveis, menos herméticos, autoencerrados e opacos, os resultados de uma vida, na verdade, muitas vidas, de investigação erudita. Se isso torna Shakespeare mais acessível aos leitores comuns, melhor ainda. 

Em "A Virada" [trad. Caetano Waldrigues Galindo, Companhia das Letras, 304 págs., R$ 39, previsto para o dia 26], o sr. comenta o impacto do poeta romano Lucrécio sobre os artistas do Renascimento e posteriores, citando a influência de "De Rerum Natura" sobre "Romeu e Julieta". Poderia comentar outros instantes que ecoam Lucrécio?
Decidi focar a narrativa no momento de descoberta, 1417. Mas, se tivesse de seguir a questão que você levanta, olharia com atenção para a intimação de "Macbeth" por um universo sem o sentido de redenção e para os versos de "Rei Lear", sobre o homem como um "animal pobre, nu, fendido". 

Jonathan Bate criou uma peça, "Being Shakespeare", e James Shapiro fez um livro, "Quem Escreveu Shakespeare", ambos para se contrapor aos que rejeitam Shakespeare como o autor. O sr. não entrou no ringue. Acredita não ser necessário?
Acho a chamada questão autoral, como os debates sobre quem matou John Kennedy, algo cansativa. E fico feliz de deixar outros cruzarem lanças em torno dela. 

Pode comentar o filme "Anonymous"? Foi um fracasso, embora tenha tido produção e publicidade grandes. Isso quer dizer que a questão autoral sempre será periférica? A onda passou, ao menos por enquanto?
Tentei assistir ao filme num avião e achei-o ao mesmo tempo tão enfadonho e tão irritante que não consegui chegar até o final, embora não tivesse mais nada para fazer. Realmente penso que, apesar da preponderância de evidências para o William Shakespeare de Stratford-upon-Avon, sempre haverá pessoas que pensam que algum outro tem de ter escrito as peças e os poemas. Elas não terão êxito porque as evidências são tão fortes, mas elas não vão desaparecer. Há várias razões para essa persistência, algumas não são agradáveis, mas a mais forte me parece estar na implausibilidade de qualquer pessoa escrever aquele conjunto extraordinário de trabalhos. Em geral os seres humanos são criaturas bastante pobres, eu suponho, mas de vez em quando aparece alguém, não só Shakespeare, é claro, mas também Homero, Brueghel, Mozart, Picasso etc., que faz coisas que parecem impossíveis. 

Ao contrário da visão comum, você escreve que temos uma "abundância relativa" de informação sobre Shakespeare. Ela foi levantada nas últimas décadas, no último século? Ainda é possível descobrir fatos novos sobre sua vida?
Não só durante essas últimas décadas, embora tenha havido algumas pequenas descobertas, mas amplamente nos séculos 19 e 20. Shakespeare viveu numa cultura que mantinha registros, burocrática, e exércitos de pesquisadores apaixonados, penteando sem parar os arquivos, trouxeram à tona um arquivo surpreendentemente grande de material. 

As peças têm uma longa história com a língua portuguesa, começando com um "Hamlet" produzido num navio a caminho da Índia, poucos anos após a estreia em Londres. No Brasil, "Hamlet" e "Romeu e Julieta" têm sido importantes para o teatro desde o século 19. Quais são seus pensamentos sobre Shakespeare e o português? E também o Brasil, que parece ecoar em "A Tempestade", com Caliban, e é tão afeiçoado às suas peças?
Essa não é uma pergunta que eu esteja aparelhado para responder. Mas, a partir da minha familiaridade extremamente modesta com a literatura brasileira, eu diria que a combinação de humor negro e pessimismo profundo e inquiridor das comédias-problemas de Shakespeare e de suas últimas peças têm ecos estranhos e ressonantes em Machado de Assis. Eu acrescentaria que, quando dou aulas sobre "A Tempestade", muitas vezes solicito que meus estudantes leiam a magnífica "História de uma Viagem Feita na Terra do Brasil" de Jean de Léry. 

"Shakespeare não era Deus nem é absolutamente arredio. Era uma pessoa real que vivia num mundo real. E eminentemente razoável, ou pelo menos parece assim para mim"

Uma droga poderosa e imaginativa 

James Shapiro alcançou estatura nos estudos shakespearianos com *"1599" [trad. Marcelo Musa Cavallari e Cordelia Magalhaes, Planeta, 440 págs., R$ 50]*, o ano em que nasceram "Hamlet" e outras três peças. Também o ano em que nasceu a Companhia das Índias Orientais, que marcou o início da ascendência global da Inglaterra e de sua cultura.
À Folha ele relata que, jovem, obrigado a estudar, "odiava Shakespeare". E agora prepara mais um livro, que talvez se chame "1606", o ano de "Rei Lear". (NS)
 
Folha - Em "1599", o sr. evita palavras comuns em livros sobre Shakespeare, como "provavelmente", e ainda assim escreve 416 páginas sobre um só ano de sua vida. Sabemos o bastante para parar de dizer que ele é um João Ninguém?
James Shapiro - Passei o último quarto de século pesquisando Shakespeare, tenho noção clara do que sabemos e do que nunca saberemos sobre ele. Nunca saberemos que tipo de pai ou marido foi, quais suas posições políticas, sua fé religiosa ou seus pendores sexuais. Essas coisas estão perdidas e não podem ser recuperadas por leituras engenhosas de seus textos, embora isso não pareça conter outros acadêmicos, que afirmam que ele foi mau marido ou secretamente católico.
Os registros sobreviventes deixam claro o que sabemos, que é muito, embora bastante limitado às atividades profissionais. Tive chance, na filmagem de um documentário da BBC, de examinar alguns dos documentos originais que o mencionam. Ninguém que tenha manipulado o "Relatório das Festas de Natal de 1604/1605", que descreve as peças apresentadas na corte e nomeia Shakespeare como o autor de "Medida por Medida", "Henrique 5º", "Otelo", "O Mercador de Veneza", reivindicaria que ele é um João Ninguém.
Embora o que mais queiramos saber sobre ele -o que sentia sobre as coisas, no que acreditava- não possa mais ser recuperado, os fatos de sua vida e sua carreira estão presentes e são um testemunho poderoso. É crucial que acadêmicos resistam a especular. 

O que torna o ano de 1599 tão importante e que papel teve Shakespeare ao refletir essas mudanças?
De alguns pontos de vista, foi um ano comum. De outros, extraordinário. Foi o ano, por exemplo, da criação da Companhia das Índias Orientais, que teve consequências globais porque estava no coração do nascente império britânico. Mas dificilmente alguém na época teria sonhado que seria tão significativo. A maior preocupação era a guerra na Irlanda, com a Inglaterra enviando 16 mil homens para esmagar a revolta irlandesa. Como tento mostrar no livro, as peças que ele escreveu nesse ano respondem de formas variadas e sutis a pressões e ansiedades atuais. 

Por que o ano é tão importante para a própria vida de Shakespeare?
Foi quando sua companhia construiu o teatro Globe, que seria o lar das suas peças até o final da carreira. Também nesse ano ele rascunhou o que muitos consideram sua maior peça, "Hamlet", após finalizar "Henrique 5º" e escrever e encenar "Júlio César" e "Como Você Quiser". Deve ter sido um tempo inspirado e exaustivo. 

Em "Quem Escreveu Shakespeare", o sr. tenta entender o que fez escritores como Henry James e Mark Twain cogitarem que Shakespeare não escreveu as peças. Foi pela falta de informação sobre sua vida?
Sou fascinado pelo motivo pelo qual pessoas inteligentes acreditam em ideias tolas ou falam coisas estúpidas. Recebi uma carta de um ex-juiz da Suprema Corte que dizia acreditar que Shakespeare não escreveu as peças. Trocamos cartas por meses, mas nenhuma das evidências que ofereci balançou sua fé. A cada resposta minha, ele levantava objeções mais periféricas.
Confirmou para mim que é uma questão de fé, e não de provas para a maioria dos céticos. Mas cada cético tem sua razão, apesar das evidências esmagadoras de que Shakespeare escreveu suas peças.
Twain não queria crer porque sentia que um escritor precisava ter a experiência em primeira mão, como ele mesmo. Como as peças estão cheias de linguagem jurídica, Twain acreditava que só alguém com treinamento sobre leis, como Francis Bacon, poderia ter sido o autor. Há quem observe que as peças estão cheias de alusões ao mar ou à Itália e que o autor tinha de ser marinheiro ou soldado ou político ou mulher ou judeu. A verdade é simples: Shakespeare tinha uma imaginação poderosa. 

Bacon e outros foram abandonados como possíveis autores, deixando Oxford como favorito. Qual o papel de Freud no avanço dessa teoria?
Freud é uma das pessoas mais brilhantes a duvidar que Shakespeare escreveu Shakespeare, um herói para os oxfordianos, cuja causa defendeu. Como aconteceu com Twain, as razões de Freud são tanto óbvias como obscuras.
No fim das contas, ele ficou diante de uma escolha: ou continuava acreditando que o autor de "Hamlet" tinha experimentado uma crise edipiana após a morte do pai, como o próprio Freud experimentou; ou revisava, talvez abandonava, sua teoria edipiana, que dependia em grau surpreendente de sua interpretação de "Hamlet".
Freud não se convenceu a revisar a teoria ao saber que Shakespeare escreveu "Hamlet" antes da morte do pai. Felizmente para ele, o pai do conde de Oxford morreu muito antes de "Hamlet" ter sido escrita, tornando-o um candidato mais adequado à autoria.
Soa bizarro descrito dessa forma, ofereço um relato mais nuançado no livro, mas é o que está no coração da rejeição de Shakespeare por Freud. Ele quase levou seus amigos à loucura com essa teoria. 

Anos atrás, o sr. passou um período em Londres com o novo Globe. Qual sua relação com o palco? Por que escolheu a obra de Shakespeare?
Quando era jovem, forçado a estudar peças na escola, eu odiava Shakespeare. Não entendia a linguagem, os jogos de palavras e as piadas sujas, não via onde estava a excitação. Nunca fiz um curso de Shakespeare na universidade.
Fui fisgado quando comecei a viajar, nos anos 70, vendo pela Inglaterra montagens da Royal Shakespeare Company e do National Theatre. Devo ter visto de 150 a 200 até meus 20 e poucos anos, e isso foi a base do meu amor por Shakespeare, cujas peças agiram sobre mim como droga poderosa.
Eu me encaminhei para um PhD, mas meu amor por Shakespeare vem de vê-lo produzido. Um grande prazer da minha vida é trabalhar com atores, jovens e velhos, amadores e profissionais. A RSC tem me levado à Inglaterra para trabalhar com seus elencos, em peças em produção. Também trabalho com atores nos EUA e passei um tempo com diretores como Peter Brook e Declan Donnellan. Eu me sinto abençoado. 

O sr. pode falar daquilo em que está trabalhando agora? Outro livro?
Ao terminar "1599", percebi que havia focado quase inteiramente no Shakespeare elizabetano. Mas ele escreveu peças extraordinárias sob o rei James, de 1603 a 1613. Decidi fazer um documentário de três horas sobre esse período criativo, que inclui grandes tragédias e romances [tragicomédias], inclusive "Macbeth", "Rei Lear", "Antônio e Cleópatra", "Coriolano", "Conto de Inverno" e "A Tempestade".
As primeiras três foram escritas em outro ano tumultuoso, 1606, e venho trabalhando numa espécie de sequência de "1599", naquele ano. Também estou cada vez mais interessado em como Shakespeare é montado ao redor do mundo e talvez faça outro documentário. 

"Passei o último quarto de século pesquisando Shakespeare. Nunca saberemos que tipo de pai ou marido foi, quais suas posições políticas, sua fé religiosa ou seus pendores sexuais"
 
"Freud é uma das pessoas mais brilhantes a duvidar que Shakespeare escreveu Shakespeare, um verdadeiro herói para os oxfordianos, cuja causa ele defendeu"
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Fonte: Folha on line, 17/06/2012
Imagem da internet 

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