Eis a questão
RESUMO Americanos, os dois maiores especialistas em Shakespeare
da atualidade divergem sobre a autoria das peças atribuídas ao poeta
inglês. Em entrevista, os acadêmicos Stephen Greenblatt e James Shapiro
falam sobre suas teses defendidas em livros recém-publicados no Brasil.
Os autores participam de debate na Flip em 6/7.
Na incessante produção de estudos shakespearianos, ano após ano
revirando o cadáver do poeta, dois acadêmicos sobressaíram na última
década: Stephen Greenblatt, de Harvard, e James Shapiro, de Columbia.
Ambos americanos, eles são hoje considerados na própria Inglaterra as
referências contemporâneas em William Shakespeare. E parecem se situar,
tema após tema, em extremos opostos.
Greenblatt, autor de *"Como Shakespeare se Tornou Shakespeare" [trad.
Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra, Companhia das Letras, 456
págs., R$ 59]*, manteve distância do conflito sobre a autoria das peças.
"A questão autoral é algo cansativa. Fico feliz de deixar outros
cruzarem lanças em torno dela", ele diz.
Quem tomou para si a tarefa foi Shapiro, autor de *"Quem Escreveu
Shakespeare" [trad. Liliana Negrello e Christian Schwartz, Nossa
Cultura, R$ 358 págs., R$ 59]*, uma resposta aos que questionam
Shakespeare, que sai aqui na próxima semana. Shapiro culpa pela
disseminação de teorias conspiratórias os próprios scholars que
especulam sobre a vida do poeta.
Não cita diretamente, mas seu alvo é o próprio Greenblatt.
Eles se enfrentam no próximo dia 6, na Festa Literária Internacional de
Paraty (Flip), com mediação do jornalista Cassiano Elek Machado. Leia, a
seguir, a entrevista que Greenblatt concedeu à Folha e, ao lado, a conversa com Shapiro.
Folha - "Como Shakespeare se Tornou Shakespeare" o tornou um autor
mundial, para além do estudo de história, mas também alvo. Já disseram
que o sr. vai longe demais em conjecturas, e o sr. preferiu não
responder. Não vê as críticas como parte de um questionamento mais amplo
do novo historicismo?
Stephen Greenblatt - Há boas razões para criticar conjecturas
biográficas envolvendo Shakespeare: questões sobre a natureza das
evidências, sobre os elos entre as evidências de que dispomos e as peças
e poemas específicos, sobre a validade geral de qualquer especulação
biográfica na tentativa de compreender obras de arte.
[Jorge Luis] Borges celebremente comparou Shakespeare, nesse
esquivamento absoluto, a Deus. Mas Shakespeare não era Deus nem é
absolutamente arredio. Era uma pessoa real que vivia num mundo real. E é
eminentemente razoável, ou pelo menos parece ser assim para mim,
sentir-se próximo dessa pessoa que se dirige a nós com tamanha potência e
querer saber o possível sobre ela.
[Mas] não me sinto inclinado a entrar em tentativas de autojustificação
pelo simples motivo de que a justificativa de meu livro, se é que
existe, deve estar no próprio livro -ou seja, em qualquer iluminação que
ele pode trazer à experiência e ao entendimento da obra.
O sr. diz que a ideia para "Como Shakespeare se Tornou Shakespeare"
veio com a premissa do filme"Shakespeare Apaixonado" (1998). Pensou no
livro para tornar Shakespeare mais acessível?
Scholars tendem a não acreditar que consigam interessar mais que um
pequeno número de pessoas nos assuntos para os quais devotam suas
carreiras. Mas o roteiro de "Shakespeare in Love", de Marc Norman e Tom
Stoppard, foi bem-sucedido em engajar um grande público ao que é
essencialmente o tipo de pergunta levantada pela crítica literária: como
Shakespeare passou do autor de uma peça como "Os Dois Cavalheiros de
Verona" para o de "Romeu e Julieta"?
A intuição do filme foi que a chave deve estar não só no gênio natural
de Shakespeare, mas também em sua experiência histórica, algo que é
encapsulado, à maneira dos filmes de Hollywood, na figura cativante de
Gwyneth Paltrow.
Agora, nós não sabemos se houve tal figura na vida do Shakespeare real,
mas a intuição básica me parece certa. E acontece que podemos
reconstruir bastante da experiência de Shakespeare sobre o mundo
histórico em que ele estava mergulhado. Minha intenção não foi
popularizar Shakespeare, mas tornar mais acessíveis, menos herméticos,
autoencerrados e opacos, os resultados de uma vida, na verdade, muitas
vidas, de investigação erudita. Se isso torna Shakespeare mais acessível
aos leitores comuns, melhor ainda.
Em "A Virada" [trad. Caetano Waldrigues Galindo, Companhia das
Letras, 304 págs., R$ 39, previsto para o dia 26], o sr. comenta o
impacto do poeta romano Lucrécio sobre os artistas do Renascimento e
posteriores, citando a influência de "De Rerum Natura" sobre "Romeu e
Julieta". Poderia comentar outros instantes que ecoam Lucrécio?
Decidi focar a narrativa no momento de descoberta, 1417. Mas, se tivesse
de seguir a questão que você levanta, olharia com atenção para a
intimação de "Macbeth" por um universo sem o sentido de redenção e para
os versos de "Rei Lear", sobre o homem como um "animal pobre, nu,
fendido".
Jonathan Bate criou uma peça, "Being Shakespeare", e James Shapiro
fez um livro, "Quem Escreveu Shakespeare", ambos para se contrapor aos
que rejeitam Shakespeare como o autor. O sr. não entrou no ringue.
Acredita não ser necessário?
Acho a chamada questão autoral, como os debates sobre quem matou John
Kennedy, algo cansativa. E fico feliz de deixar outros cruzarem lanças
em torno dela.
Pode comentar o filme "Anonymous"? Foi um fracasso, embora tenha tido
produção e publicidade grandes. Isso quer dizer que a questão autoral
sempre será periférica? A onda passou, ao menos por enquanto?
Tentei assistir ao filme num avião e achei-o ao mesmo tempo tão
enfadonho e tão irritante que não consegui chegar até o final, embora
não tivesse mais nada para fazer. Realmente penso que, apesar da
preponderância de evidências para o William Shakespeare de
Stratford-upon-Avon, sempre haverá pessoas que pensam que algum outro
tem de ter escrito as peças e os poemas. Elas não terão êxito porque as
evidências são tão fortes, mas elas não vão desaparecer. Há várias
razões para essa persistência, algumas não são agradáveis, mas a mais
forte me parece estar na implausibilidade de qualquer pessoa escrever
aquele conjunto extraordinário de trabalhos. Em geral os seres humanos
são criaturas bastante pobres, eu suponho, mas de vez em quando aparece
alguém, não só Shakespeare, é claro, mas também Homero, Brueghel,
Mozart, Picasso etc., que faz coisas que parecem impossíveis.
Ao contrário da visão comum, você escreve que temos uma "abundância
relativa" de informação sobre Shakespeare. Ela foi levantada nas últimas
décadas, no último século? Ainda é possível descobrir fatos novos sobre
sua vida?
Não só durante essas últimas décadas, embora tenha havido algumas
pequenas descobertas, mas amplamente nos séculos 19 e 20. Shakespeare
viveu numa cultura que mantinha registros, burocrática, e exércitos de
pesquisadores apaixonados, penteando sem parar os arquivos, trouxeram à
tona um arquivo surpreendentemente grande de material.
As peças têm uma longa história com a língua portuguesa, começando
com um "Hamlet" produzido num navio a caminho da Índia, poucos anos após
a estreia em Londres. No Brasil, "Hamlet" e "Romeu e Julieta" têm sido
importantes para o teatro desde o século 19. Quais são seus pensamentos
sobre Shakespeare e o português? E também o Brasil, que parece ecoar em
"A Tempestade", com Caliban, e é tão afeiçoado às suas peças?
Essa não é uma pergunta que eu esteja aparelhado para responder. Mas, a
partir da minha familiaridade extremamente modesta com a literatura
brasileira, eu diria que a combinação de humor negro e pessimismo
profundo e inquiridor das comédias-problemas de Shakespeare e de suas
últimas peças têm ecos estranhos e ressonantes em Machado de Assis. Eu
acrescentaria que, quando dou aulas sobre "A Tempestade", muitas vezes
solicito que meus estudantes leiam a magnífica "História de uma Viagem
Feita na Terra do Brasil" de Jean de Léry.
"Shakespeare não era Deus nem é absolutamente arredio. Era uma pessoa
real que vivia num mundo real. E eminentemente razoável, ou pelo menos
parece assim para mim"
Uma droga poderosa e imaginativa
James Shapiro alcançou estatura nos estudos shakespearianos com *"1599"
[trad. Marcelo Musa Cavallari e Cordelia Magalhaes, Planeta, 440 págs.,
R$ 50]*, o ano em que nasceram "Hamlet" e outras três peças. Também o
ano em que nasceu a Companhia das Índias Orientais, que marcou o início
da ascendência global da Inglaterra e de sua cultura.
À Folha ele relata que, jovem, obrigado a estudar, "odiava
Shakespeare". E agora prepara mais um livro, que talvez se chame "1606",
o ano de "Rei Lear". (NS)
Folha - Em "1599", o sr. evita palavras comuns em livros sobre
Shakespeare, como "provavelmente", e ainda assim escreve 416 páginas
sobre um só ano de sua vida. Sabemos o bastante para parar de dizer que
ele é um João Ninguém?
James Shapiro - Passei o último quarto de século pesquisando
Shakespeare, tenho noção clara do que sabemos e do que nunca saberemos
sobre ele. Nunca saberemos que tipo de pai ou marido foi, quais suas
posições políticas, sua fé religiosa ou seus pendores sexuais. Essas
coisas estão perdidas e não podem ser recuperadas por leituras
engenhosas de seus textos, embora isso não pareça conter outros
acadêmicos, que afirmam que ele foi mau marido ou secretamente católico.
Os registros sobreviventes deixam claro o que sabemos, que é muito,
embora bastante limitado às atividades profissionais. Tive chance, na
filmagem de um documentário da BBC, de examinar alguns dos documentos
originais que o mencionam. Ninguém que tenha manipulado o "Relatório das
Festas de Natal de 1604/1605", que descreve as peças apresentadas na
corte e nomeia Shakespeare como o autor de "Medida por Medida",
"Henrique 5º", "Otelo", "O Mercador de Veneza", reivindicaria que ele é
um João Ninguém.
Embora o que mais queiramos saber sobre ele -o que sentia sobre as
coisas, no que acreditava- não possa mais ser recuperado, os fatos de
sua vida e sua carreira estão presentes e são um testemunho poderoso. É
crucial que acadêmicos resistam a especular.
O que torna o ano de 1599 tão importante e que papel teve Shakespeare ao refletir essas mudanças?
De alguns pontos de vista, foi um ano comum. De outros, extraordinário.
Foi o ano, por exemplo, da criação da Companhia das Índias Orientais,
que teve consequências globais porque estava no coração do nascente
império britânico. Mas dificilmente alguém na época teria sonhado que
seria tão significativo. A maior preocupação era a guerra na Irlanda,
com a Inglaterra enviando 16 mil homens para esmagar a revolta
irlandesa. Como tento mostrar no livro, as peças que ele escreveu nesse
ano respondem de formas variadas e sutis a pressões e ansiedades atuais.
Por que o ano é tão importante para a própria vida de Shakespeare?
Foi quando sua companhia construiu o teatro Globe, que seria o lar das
suas peças até o final da carreira. Também nesse ano ele rascunhou o que
muitos consideram sua maior peça, "Hamlet", após finalizar "Henrique
5º" e escrever e encenar "Júlio César" e "Como Você Quiser". Deve ter
sido um tempo inspirado e exaustivo.
Em "Quem Escreveu Shakespeare", o sr. tenta entender o que fez
escritores como Henry James e Mark Twain cogitarem que Shakespeare não
escreveu as peças. Foi pela falta de informação sobre sua vida?
Sou fascinado pelo motivo pelo qual pessoas inteligentes acreditam em
ideias tolas ou falam coisas estúpidas. Recebi uma carta de um ex-juiz
da Suprema Corte que dizia acreditar que Shakespeare não escreveu as
peças. Trocamos cartas por meses, mas nenhuma das evidências que ofereci
balançou sua fé. A cada resposta minha, ele levantava objeções mais
periféricas.
Confirmou para mim que é uma questão de fé, e não de provas para a
maioria dos céticos. Mas cada cético tem sua razão, apesar das
evidências esmagadoras de que Shakespeare escreveu suas peças.
Twain não queria crer porque sentia que um escritor precisava ter a
experiência em primeira mão, como ele mesmo. Como as peças estão cheias
de linguagem jurídica, Twain acreditava que só alguém com treinamento
sobre leis, como Francis Bacon, poderia ter sido o autor. Há quem
observe que as peças estão cheias de alusões ao mar ou à Itália e que o
autor tinha de ser marinheiro ou soldado ou político ou mulher ou judeu.
A verdade é simples: Shakespeare tinha uma imaginação poderosa.
Bacon e outros foram abandonados como possíveis autores, deixando
Oxford como favorito. Qual o papel de Freud no avanço dessa teoria?
Freud é uma das pessoas mais brilhantes a duvidar que Shakespeare
escreveu Shakespeare, um herói para os oxfordianos, cuja causa defendeu.
Como aconteceu com Twain, as razões de Freud são tanto óbvias como
obscuras.
No fim das contas, ele ficou diante de uma escolha: ou continuava
acreditando que o autor de "Hamlet" tinha experimentado uma crise
edipiana após a morte do pai, como o próprio Freud experimentou; ou
revisava, talvez abandonava, sua teoria edipiana, que dependia em grau
surpreendente de sua interpretação de "Hamlet".
Freud não se convenceu a revisar a teoria ao saber que Shakespeare
escreveu "Hamlet" antes da morte do pai. Felizmente para ele, o pai do
conde de Oxford morreu muito antes de "Hamlet" ter sido escrita,
tornando-o um candidato mais adequado à autoria.
Soa bizarro descrito dessa forma, ofereço um relato mais nuançado no
livro, mas é o que está no coração da rejeição de Shakespeare por Freud.
Ele quase levou seus amigos à loucura com essa teoria.
Anos atrás, o sr. passou um período em Londres com o novo Globe. Qual
sua relação com o palco? Por que escolheu a obra de Shakespeare?
Quando era jovem, forçado a estudar peças na escola, eu odiava
Shakespeare. Não entendia a linguagem, os jogos de palavras e as piadas
sujas, não via onde estava a excitação. Nunca fiz um curso de
Shakespeare na universidade.
Fui fisgado quando comecei a viajar, nos anos 70, vendo pela Inglaterra
montagens da Royal Shakespeare Company e do National Theatre. Devo ter
visto de 150 a 200 até meus 20 e poucos anos, e isso foi a base do meu
amor por Shakespeare, cujas peças agiram sobre mim como droga poderosa.
Eu me encaminhei para um PhD, mas meu amor por Shakespeare vem de vê-lo
produzido. Um grande prazer da minha vida é trabalhar com atores, jovens
e velhos, amadores e profissionais. A RSC tem me levado à Inglaterra
para trabalhar com seus elencos, em peças em produção. Também trabalho
com atores nos EUA e passei um tempo com diretores como Peter Brook e
Declan Donnellan. Eu me sinto abençoado.
O sr. pode falar daquilo em que está trabalhando agora? Outro livro?
Ao terminar "1599", percebi que havia focado quase inteiramente no
Shakespeare elizabetano. Mas ele escreveu peças extraordinárias sob o
rei James, de 1603 a 1613. Decidi fazer um documentário de três horas
sobre esse período criativo, que inclui grandes tragédias e romances
[tragicomédias], inclusive "Macbeth", "Rei Lear", "Antônio e Cleópatra",
"Coriolano", "Conto de Inverno" e "A Tempestade".
As primeiras três foram escritas em outro ano tumultuoso, 1606, e venho
trabalhando numa espécie de sequência de "1599", naquele ano. Também
estou cada vez mais interessado em como Shakespeare é montado ao redor
do mundo e talvez faça outro documentário.
"Passei o último quarto de século pesquisando Shakespeare. Nunca
saberemos que tipo de pai ou marido foi, quais suas posições políticas,
sua fé religiosa ou seus pendores sexuais"
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Fonte: Folha on line, 17/06/2012
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