Roberto DaMatta*
Dizem que o mundo está aquecido. Eu afirmo que é pior:
vivemos num mundo requentado. Servir uma comida requentada é sinal de
preguiça; melhor seria fazer um prato novo. É como ensinar a quem acha
que sabe - essa multidão que povoa o mundo. O que singulariza um
universo globalizado é o excesso de meios e uma enorme carência de fins.
Nele, o velho tende a retornar como novo. No mundo diário, isso surge
com os homens de cabelo pintado da cor de burro quando foge.
* * * *
A vida é uma linha. Ela começa no nascimento, passa por um longo
período de consolidação física e ética; segue para uma aliança conjugal
cuja consequência é geralmente a criação de novas vidas e a
responsabilidade de transformá-las em pessoas e, finalmente, ela nos
leva a um ponto sem futuro (toda mudança na velhice é problemática
porque não se mexe em time que está ganhando), que antecede a saída
deste dramalhão barato e belo do qual tomamos parte sem termos sido
convidados.
Não obstante essa implacável linearidade, cada fase da vida tem seus
impulsos, seus dilemas e suas regressões. Uma nova etapa não acaba
automaticamente com a outra. Exceto nos rituais, e, por isso, eles são
tão importantes, essas fases todas se confundem e criam dilemas dentro
de dilemas e regressões (bem como saltos e rompimentos) em meio aos
retornos. Continuar crescendo (dizendo não a nós mesmos) ou voltar à
irresponsabilidade da infância? Caminhar sozinho na tempestade ou
desistir? Como saber se o Brasil vai dar certo se ele continua e nós, um
dia, partiremos?
Na meio do jardim podado da velhice encontramos o menino inseguro ou o
adolescente moleque; na juventude tentamos viver o idoso que fala
pausadamente e imagina que sabe tudo. As fases da vida seguem como um
trem de ferro, mas a composição não é fixa. Muitas vezes a locomotiva é
empurrada por vagões vazios...
* * * *
Tenho a sensação do requentado. A Rio+20 me reitera - apesar do
esforço de alguns grupos e do Sérgio Besserman - a Torre de Babel. E
existe coisa mais velha do que redescobrir em meio à fanfarra da mídia e
da presunção dos "chefes de Estado" que nós, humanos, não nos
entendemos nem quando se trata de salvar o teatro no qual atuamos? O
único modo de encontrar o acordo é saber que estamos sempre em
desacordo. Geralmente, em nome de algo maior que para o outro é
obviamente menor. Movidos por um enredo individualista, mas ignorando-o,
queremos discutir o planeta sem nos darmos conta da força dos nossos
tabus nacionais e patrióticos. O resultado é uma conta que não fecha,
pois nossa maior dificuldade é justamente perceber o planeta como um
englobante - como uma totalidade que tem suas razões e demandas.
* * * *
Há algo mais cinicamente requentada do que essa CPI
Cachoeira-Demóstenes-Delta num momento eleitoral? Pode haver algo mais
lamentável numa democracia do que a mentira e a mendacidade como valores
políticos? O caso Demóstenes é culminante - como ter democracia sem
oposição? Melhor do que isso, só o encontro de Lula com Maluf - essas
criaturas da modernidade paulista -, ambos candidatos a padrinhos do
candidato Haddad. Mas no meio do retorno do nosso velho personalismo,
negativo e onipotente, surge uma Erundina que usa sua individualidade
para dizer que sem os valores nenhum de nós é coisa alguma. E não há
nada mais patético do que um ator sem texto.
* * * *
Eis uma pergunta que não pode calar-se: é possível fazer política -
essa esfera da vida que hoje substitui a religião - permitindo tudo? O
cálculo do poder pelo poder, o vencer a qualquer custo, a norma
brasileira segundo a qual em política o pecado é perder e a ideia de os
adversários serem canalhas são concepções vencedoras?
Será que perdemos o senso e não nos importamos com a politicalha de
alguns políticos? Pode-se viver democraticamente numa sociedade que tem
uma multidão de leis, mas que não pune os privilegiados - os que, como
Lula e Maluf e Haddad, entram no grupo do "nós somos tu e tu é nosso"? É
possível conviver com o roubo aberto de bens essenciais para a nossa
própria existência, como escolas, hospitais, polícia e saneamento? Nem
num livro de ficção científica escrita por um cínico se encontra esta
combinação que hoje permeia a cena nacional: esta divisão de tarefas na
qual um monte de gente trabalha para sustentar uma aristocracia estatal
que nada faz e tem a arrogância de alardear isso como algo normal, comum
em todos os países.
Será que vivemos num país que conseguiu encaixar nos pagamentos
rotineiros da vida pública algo que vai além dos dinheiros, pois neste
Brasilzinho de hoje a ideologia - que era o último reduto do altruísmo -
virou também moeda corrente e sonante?
* * * *
"Um povo livre", escreve Karl Jaspers no seu Introdução ao Pensamento Filosófico,
"sabe que é responsável pelos atos do seu governo. A vida pública de
uma nação" - continua - "não é um simples espelho do povo. Deve ser o
fórum de sua autoeducação política. Um povo que pretenda ser livre não
pode jamais permanecer complacente face a erros e falhas. Impõe-se a
recíproca autoeducação de governantes e governados. Em meio a todas as
mudanças, mantém-se uma constante: a obrigação de criar e conservar uma
vida penetrada de liberdade política."
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* Antropólogo. Escritor. Colunista do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 27/06/2012
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