LUÍS RUBIRA*
“No Brasil, Nietzsche tornou-se ‘popular’ durante as décadas de 1970 e 1980. Foi explorado pela mídia, utilizado pelos meios de comunicação, apropriado pelo mercado editorial. Surgiram livros introdutórios a respeito de sua filosofia, textos de divulgação de suas ideias, artigos em jornais e revistas que mencionavam a qualquer propósito palavras suas. Durante anos, dele se falou como se fala de um autor na moda: sem ter conhecimento da densidade de sua reflexão filosófica. (Scarlett Marton em “Nietzsche: Filósofo da Suspeita”)
Professora Titular de Filosofia Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP), Scarlett Marton recebeu, nos últimos meses, duas homenagens pelo conjunto de seu trabalho sobre o pensamento de Nietzsche – que ela investiga há mais de 40 anos. A primeira veio em novembro de 2011: um livro de 600 páginas intitulado Filosofia e Cultura: Festschrift para Scarlett Marton, organizado por Ivo da Silva Jr. e publicado pela editora Barcarolla. Prestando reconhecimento aos esforços de Scarlett, comparecem na obra oito estudiosos internacionais da filosofia de Nietzsche, dentre os quais investigadores de peso como Eric Blondel, Patrick Wotling e Giuliano Campioni. Do mesmo modo, nomes expressivos da cena filosófica brasileira dedicam-lhe textos, entre eles Marilena Chauí, Paulo Eduardo Arantes, Oswald Porchat, Ernildo Stein, Renato Janine Ribeiro, Franklin Leopoldo e Silva, Olgária Matos, Renato Mezan etc.
A segunda homenagem ocorreu em maio e, desta vez, por parte dos membros do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN) – pesquisadores que, formados por Scarlett Marton, hoje são professores em universidades públicas espalhadas pelo território nacional. Criado em 1996, o GEN dedicou à sua fundadora o trigésimo número dos Cadernos Nietzsche, revista com conceito B1 no Qualis da Capes há vários anos. O presente número traz, portanto, não somente textos escritos pelos integrantes do GEN, formados na USP, mas também depoimentos deles sobre a importância da formação que receberam de Scarlett Marton. Além disso, há um relato em que a própria homenageada, no texto GEN – Uma Experiência de Formação, reflete sobre o trabalho em grupo desenvolvido por ela ao longo de quase duas décadas. Trata-se de uma publicação que dá uma amostra de como funciona o grupo que realiza semestralmente os Encontros Nietzsche e publica, com a mesma periodicidade, os Cadernos Nietzsche e os livros da coleção Sendas & Veredas.
Primando por compreender e apresentar a densidade da reflexão filosófica do autor da Genealogia da Moral, ela lançou, em 1990, uma obra que tornou-se referência para a pesquisa Nietzsche no cenário nacional e internacional: Nietzsche: Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos. De outra parte, visando combater livros introdutórios marcados pela superficialidade e pela forma caricatural com que abordam o pensamento de Nietzsche, ofereceu ao público brasileiro obras numa linguagem acessível e bem escrita (própria de quem dava aula de língua portuguesa já na infância), dentre as quais destacam-se: Nietzsche, uma Filosofia a Marteladas (Brasiliense, 1982), Nietzsche: A Transvaloração dos Valores (Editora Moderna, 1993) e, mais recentemente, Nietzsche: Filósofo da Suspeita (Casa da Palavra, 2010).
Estudiosa que defendeu sua dissertação de mestrado sobre Nietzsche na Sorbonne, em 1974, Scarlett Marton também realizou, ao longo dos anos, três pós-doutorados na França: o primeiro na Université de Paris X; o segundo na École Normale Superieure e o terceiro na Université de Reims. Esta aproximação com a vida intelectual e filosófica francesa pode ser percebida no próprio título de seu livro publicado em 2010, na medida em que ela dá desenvolvimento a uma tese de Michel Foucault (que compreendeu Nietzsche, Freud e Marx como “os mestres da suspeita”). Ao escrever Nietzsche: Filósofo da Suspeita, Scarlett fornece o exemplar que melhor desfaz os inúmeros equívocos, incompreensões e a deficiente exegese que se fez da filosofia nietzschiana durante o século 20. Nos três primeiros capítulos, ela aporta, justamente, as enganosas teses defendidas por opositores do filósofo: Nietzsche, de Modo Algum Filósofo; Nietzsche, Precursor do Nazismo; Nietzsche, Irracionalista e Niilista. E, ao final de cada capítulo, busca desconstruir, com rara elegância e clareza conceitual, as apropriações equivocadas do pensamento de Nietzsche. Ao final do livro indica, ainda, uma rigorosa bibliografia para aqueles que desejam aprofundar os estudos nietzschianos.
Como pesquisadora, o reconhecimento de Scarlett Marton chegou à Europa há vários anos (ela ocupa um papel de destaque no Grupo Internacional de Pesquisa Nietzsche, fundado por especialistas franceses e italianos no ano de 2008). Todavia, não bastasse sua dedicação aos estudos nietzschianos, bem como os esforços de novos pesquisadores no Brasil, seguem proliferando entre nós, cada vez mais, revistas de divulgação e livros que voltam a reforçar equívocos da vida e da obra de Nietzsche.
Neste sentido, basta tomar contato com um destes livros encontrados em livrarias e bancas de jornal, que continuam a explorar midiaticamente a biografia do filósofo, afirmando que ele “contraiu sífilis, o que mais tarde lhe provocaria uma crise de demência durante 11 anos”, ou que Nietzsche tinha “um desejo inconsciente de rebelião” (deixo de citar a fonte pela razão óbvia de que trata-se de um desqualificado material de divulgação). Veja-se, também, uma lamentável representação da vida e do pensamento de Nietzsche que teve lugar em Porto Alegre recentemente. Como espectador, confesso que saí decepcionado do sarau Freud e Nietzsche, por verificar que o filósofo segue sendo tratado do mesmo modo caricatural como se o fazia no início do século 20. Algo inaceitável, pois, se àquela altura era tolerável, hoje não mais se esperaria tal tratamento, tendo em vista os esforços para compreensão do pensamento de Nietzsche iniciados já na década de 1930 por nomes como Karl Löwith e Martin Heidegger. Vários, no entanto, são aqueles que abordam seu pensamento sem levam em conta a fortuna crítica já existente.
Deixo registrado, assim, a minha dívida (e a de muitos outros) para com Scarlett Marton e o trabalho que ela segue desenvolvendo sobre o pensamento de Nietzsche. Um filósofo que muitos, ainda, insistem em não compreender.
Uma obra inovadora
Em
Nietzsche: Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos, tese de doutorado
construída entre 1980 e 1988, na USP, Scarlett Marton inaugurou um
método exegético de análise de texto, o método genético-estrutural. Com
ele, afastou-se das abordagens de Heidegger e de Foucault, intérpretes
de Nietzsche que privilegiavam o tratamento hermenêutico do texto e, com
isso, não compreendiam plenamente a gênese e as mudanças conceituais
das principais ideias de Nietzsche.
Tratando, então, de mostrar o momento em que o conceito de vontade de potência surge na obra de Nietzsche e as transformações conceituais que ele vai sofrendo, ela busca reconstruir a filosofia nietzschiana, que estaria apoiada numa cosmologia arquitetada sobre hipóteses científicas e daria fundamento para uma reflexão sobre problemas morais. Após reconstruir a cosmologia ou a filosofia da natureza na obra publicada e póstuma do filósofo alemão, ela explora a teoria das forças e o conceito de vontade de potência, para, então, chegar à sua noção de valor.
A partir daí, passa a confrontar a tese moral nietzschiana com a doutrina moral kantiana e a filosofia moral de Stuart Mill e Herbert Spencer. Privilegiando o seu perspectivismo e o seu experimentalismo, faz ver que Nietzsche jamais poderia ser considerado um metafísico. Nietzsche partiria de forças cósmicas (sua hipótese cosmológica que envolve o conceito de vontade de potência e a hipótese do eterno retorno do mesmo) para, então, responder à questão dos valores humanos.
Outra inovação de Scarlett Marton foi mostrar a necessidade de levar em conta a fortuna crítica na abordagem dos textos nietzschianos. Assim, ela mesma enfrentou as abordagens de Löwith, Deleuze, Klossowski, Lyotard, Jaspers, Kaufmann, Granier e outros. Algo que também veio a ensinar ao Grupo de Estudos Nietzsche ao longo dos anos, para que, de modo algum, “inventássemos a roda” ou “arrombássemos portas abertas”, como lamentavelmente ainda é muito comum nas abordagens do pensamento de Nietzsche.
Tratando, então, de mostrar o momento em que o conceito de vontade de potência surge na obra de Nietzsche e as transformações conceituais que ele vai sofrendo, ela busca reconstruir a filosofia nietzschiana, que estaria apoiada numa cosmologia arquitetada sobre hipóteses científicas e daria fundamento para uma reflexão sobre problemas morais. Após reconstruir a cosmologia ou a filosofia da natureza na obra publicada e póstuma do filósofo alemão, ela explora a teoria das forças e o conceito de vontade de potência, para, então, chegar à sua noção de valor.
A partir daí, passa a confrontar a tese moral nietzschiana com a doutrina moral kantiana e a filosofia moral de Stuart Mill e Herbert Spencer. Privilegiando o seu perspectivismo e o seu experimentalismo, faz ver que Nietzsche jamais poderia ser considerado um metafísico. Nietzsche partiria de forças cósmicas (sua hipótese cosmológica que envolve o conceito de vontade de potência e a hipótese do eterno retorno do mesmo) para, então, responder à questão dos valores humanos.
Outra inovação de Scarlett Marton foi mostrar a necessidade de levar em conta a fortuna crítica na abordagem dos textos nietzschianos. Assim, ela mesma enfrentou as abordagens de Löwith, Deleuze, Klossowski, Lyotard, Jaspers, Kaufmann, Granier e outros. Algo que também veio a ensinar ao Grupo de Estudos Nietzsche ao longo dos anos, para que, de modo algum, “inventássemos a roda” ou “arrombássemos portas abertas”, como lamentavelmente ainda é muito comum nas abordagens do pensamento de Nietzsche.
ONDE MAIS |
> As 30 edições dos Cadernos Nietzsche estão disponíveis online em www.cadernosnietzsche.unifesp.br. |
> Parte do trabalho do GEN pode ser verificado em www.fflch.usp.br/df/gen. |
> Acompanhe também a programação do Grupo Internacional de Pesquisa Nietzsche em www.europhilosophie.eu. |
DE SCARLETT MARTON > “Nietzsche: Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos” (São Paulo: Brasiliense, 1990) |
> “Nietzsche Hoje? Colóquio de Cerisy “(org.). São Paulo: Brasiliense, 1985. |
> “O Eterno Retorno do Mesmo – Tese Cosmológica ou Imperativo Ético?” Artigo em “Nietzsche: Uma Provocação” (Chistoph Türcke, org.). Porto Alegre: Editora da Universidade, 1994. |
> “A Terceira Margem da Interpretação”, artigo em “A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche”. São Paulo: Annablume, 1997. |
> “Extravagâncias – Ensaios Sobre a Filosofia de Nietzsche”. São Paulo: Discurso Editorial/Editora Unijuí, 2000. |
> “A Irrecusável Busca de Sentido – Autobiografia Intelectual”. São Paulo: Ateliê Editorial/Editora Unijuí, 2004. |
* LUÍS RUBIRA | Professor do Departamento de Filosofia da UFPel
Fonte: ZH on line, 23/06/2012
Imagem da Internet
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