Paulo Ghiraldelli*
O
ponto de vista do cidadão é moral, o do político é ético (1). Isto é, o
cidadão pode dar-se o direito de julgar muita coisa, talvez tudo, a
partir de sua ótica. Seus valores pessoais, portanto, acabam guiando o
que pensa até mesmo quando atina para questões que não dizem respeito só
às suas relações privadas. Nesse sentido, ele moraliza a
política. O político, no entanto, não pode fazer isso, porque seus
valores pessoais pouco importam, uma vez que ele, por definição, tem de
pensar a respeito de relações públicas, e nesse sentido ele tem de
pensar antes eticamente que moralmente.
Nem sempre entendemos essa diferença
básica entre moral e ética no caso específico da prática democrática,
ensinada pela filosofia política, e então tendemos a criticar os
políticos pelos seus acordos que, a nosso ver, deveriam seguir
“princípios”. Mas o político entende bem sua função, pois o preço de não
saber isso o destituiria da condição de político. E isso, é claro,
especialmente na democracia.
Na democracia liberal os chamados
“princípios” não são valores que se sobrepõe à própria prática
democrática. O objetivo máximo da democracia liberal é que o poder se
exerça pela vontade da maioria e, ao mesmo tempo, que este mesmo poder
garanta os direitos básicos das minorias. A virtude da democracia é que
isso possa ser feito antes por acordos racionais, que implicam em
negociações, que pela força. Assim, a ética da política democrática se
realiza à medida que os políticos se disponham sempre a negociar de modo
a criarem alianças que possam conquistar maiorias capazes de ganhar as
eleições e, depois, governar, visando aqueles objetivos máximos. Em
geral, esquecemos que a obtenção de acordos entre divergentes é a
virtude ética da democracia e, quando os acordos acontecem, cobramos
deles que eles sejam tratados segundo nossa ótica moral, e eis então que
chutamos o que aprendemos em filosofia política. Moralizamos a política
como se ela fosse um encontro de relações nossas, relações
particulares.
Um exemplo pode deixar claro isso.
Quando vejo meu amigo conversando todo amistoso com um inimigo meu,
alguém que prejudicou minha família e a mim, pessoalmente, eu fico
chateado. Atribuo ao meu amigo um pecado contra nossa amizade, uma falta
moral. A falta moral dele é que ele parece não compreender o que é a
amizade, de quanto moralmente ela é um compromisso de lealdade. Por essa
sua falta moral eu posso pensar, inclusive, em descartar seu nome do
rol dos meus amigos (o que é diferente de colega). Nesse campo das
relações individuais e particulares, quase privadas, situa-se o mores
– a moral. Agora, quando vejo a liderança política de meu partido
conversando amistosamente com um adversário político, e fazendo um
acordo com ele visando se chegar ao poder, tudo muda, não cabe aí falar
de moral, mas de ética. Ao buscar a aliança por meio da negociação – o
que implica em compartilhar programas, cargos e objetivos parciais – o
que o político faz é cumprir um ethos, um ethos
próprio da democracia, que é sempre agir em função de acordos, não da
força. Nesse sentido, o acordo político é sempre ético (se ele é
inteligente ou não, aí é outra coisa). Nesse segundo caso, não tenho que
me livrar do meu líder político, tenho mais é que aplaudi-lo por ele
não estar parado, por ele estar fazendo política e, mais que isso,
seguindo o ethos da democracia.
Isso que falei vale para o acordo Lula-Maluf.
Não é um acordo de coronéis para casar suas filhas e, assim, depois,
controlar mais territórios. Nesse caso, haveria algo moral se imiscuindo
no âmbito ético. Mas o acordo Lula-Maluf é estritamente ético, e assim
deve ser julgado. Ambos estão somando votos – ou apostando que podem
assim fazer – para poder derrotar um adversário comum, e com isso dando
satisfações ao seu eleitorado. Estão trabalhando para conseguir maioria e
pegar o poder, não estão parados. O que é acordado? Como já disse:
programas, cargos e objetivos. Não há outra coisa a se acordar. E no
âmbito da análise política, onde tratamos do político e do cidadão, não
cabe imaginar que esses acordos possuem objetivos não ditos, ainda que
possamos, porque não somos ingênuos, acreditar que existam. Mas,
objetivos não ditos, como são não ditos, também podem ser imaginados em
relação a outros. Por exemplo, poder-se-ia pensar em objetivos não ditos
no acordo FHC-Toninho Malvadeza, quando o primeiro foi candidato à
Presidência da República. Como não podemos falar do que não ficamos
sabendo, não temos que levar isso em conta para a nossa avaliação aqui,
que é a de quem apenas quer mostrar que moral e ética, no processo
democrático, são coisas diferentes.
Creio que fica claro, agora, como que
nossas avaliações se equivocam quando moralizamos a política, uma vez
que ela é do âmbito da ética. Não é verdade?
O não entendimento de alguns, às vezes,
também não é só por conta de que não conseguem saber o que é a esfera da
ética e o que é a esfera da moral. Não raro, às vezes falta capacidade
de abstração nossa, de modo que não pensamos nos acordantes como
políticos, e sim como a pessoa X e a pessoa Y. Isso ocorre, às vezes,
porque os que estão envolvidos no acordo são personalidades tão
fortemente marcadas por determinadas características (se verdadeiras ou
não, isso não importa), que não conseguimos vê-los senão como quem faz
antes negociatas que acordos ou negociações. Mas, nesse caso, nossa
visão do empírico não deve nublar nossos olhos de modo que não possamos
continuar a ver as coisas segundo os vocabulários corretos que
empregamos, ou, como diriam outros filósofos, segundo os conceitos
corretos que empregamos.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
(1) “político” e “cidadão”, aqui, são abastrações conceituais da filosofia política, não indivíduos empíricos.
Sobre outros aspectos do acordo Lula-Maluf, clique aqui!
Post Scriptum 1: fiquei chocado
ao ver que mesmo colocando o aviso no final do texto, no último
parágrafo, sobre o nível de abstração em que a filosofia política
trabalhar, eu tenha tido leitores – alguns, inclusive, com formação
universitária – que não tenham entendido o texto, moralizando-o de novo e
chamando para o texto as figuras empíricas, pessoais, de Lula e Maluf.
Meu Deus! O que está acontecendo com o leitor?Cidadão e político, neste
texto, são abstrações, claro. E o último parágrafo mostra o quanto é
difícil se livrar da figura empírica de X e Y! Ora, é difícil, mas com o
aviso, o leitor não poderia retomar o texto, lê-lo de novo e, então,
entender? Mas mesmo assim, não entende. Como pode ter feito um curso
universitário?
Post Scriptum 2. Outro erro,
este ainda mais crasso, foi o dos que acharam que o artigo justifica a
prática de Lula. Ora, o artigo não julga a prática, apenas a nomina como
legítima desde o início, porque ela é da ética democrática
independente de nossa vontade. Ela é legítima por si só.
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Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/06/20/o-acordo-etico-entre-maluf-e-lula/
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