sexta-feira, 22 de junho de 2012

O acordo ético entre Maluf e Lula

Paulo Ghiraldelli*

 
O ponto de vista do cidadão é moral, o do político é ético (1). Isto é, o cidadão pode dar-se o direito de julgar muita coisa, talvez tudo, a partir de sua ótica. Seus valores pessoais, portanto, acabam guiando o que pensa até mesmo quando atina para questões que não dizem respeito só às suas relações privadas. Nesse sentido, ele moraliza a política. O político, no entanto, não pode fazer isso, porque seus valores pessoais pouco importam, uma vez que ele, por definição, tem de pensar a respeito de relações públicas, e nesse sentido ele tem de pensar antes eticamente que moralmente.
Nem sempre entendemos essa diferença básica entre moral e ética no caso específico da prática democrática, ensinada pela filosofia política, e então tendemos a criticar os políticos pelos seus acordos que, a nosso ver, deveriam seguir “princípios”. Mas o político entende bem sua função, pois o preço de não saber isso o destituiria da condição de político. E isso, é claro, especialmente na democracia.
Na democracia liberal os chamados “princípios” não são valores que se sobrepõe à própria prática democrática. O objetivo máximo da democracia liberal é que o poder se exerça pela vontade da maioria e, ao mesmo tempo, que este mesmo poder garanta os direitos básicos das minorias. A virtude da democracia é que isso possa ser feito antes por acordos racionais, que implicam em negociações, que pela força. Assim, a ética da política democrática se realiza à medida que os políticos se disponham sempre a negociar de modo a criarem alianças que possam conquistar maiorias capazes de ganhar as eleições e, depois, governar, visando aqueles objetivos máximos. Em geral, esquecemos que a obtenção de acordos entre divergentes é a virtude ética da democracia e, quando os acordos acontecem, cobramos deles que eles sejam tratados segundo nossa ótica moral, e eis então que chutamos o que aprendemos em filosofia política. Moralizamos a política como se ela fosse um encontro de relações nossas, relações particulares.
Um exemplo pode deixar claro isso. Quando vejo meu amigo conversando todo amistoso com um inimigo meu, alguém que prejudicou minha família e a mim, pessoalmente, eu fico chateado. Atribuo ao meu amigo um pecado contra nossa amizade, uma falta moral. A falta moral dele é que ele parece não compreender o que é a amizade, de quanto moralmente ela é um compromisso de lealdade. Por essa sua falta moral eu posso pensar, inclusive, em descartar seu nome do rol dos meus amigos (o que é diferente de colega). Nesse campo das relações individuais e particulares, quase privadas, situa-se o mores – a moral. Agora, quando vejo a liderança política de meu partido conversando amistosamente com um adversário político, e fazendo um acordo com ele visando se chegar ao poder, tudo muda, não cabe aí falar de moral, mas de ética. Ao buscar a aliança por meio da negociação – o que implica em compartilhar programas, cargos e objetivos parciais – o que o político faz é cumprir um ethos, um ethos próprio da democracia, que é sempre agir em função de acordos, não da força. Nesse sentido, o acordo político é sempre ético (se ele é inteligente ou não, aí é outra coisa). Nesse segundo caso, não tenho que me livrar do meu líder político, tenho mais é que aplaudi-lo por ele não estar parado, por ele estar fazendo política e, mais que isso, seguindo o ethos da democracia.
Isso que falei vale para o acordo Lula-Maluf. Não é um acordo de coronéis para casar suas filhas e, assim, depois, controlar mais territórios. Nesse caso, haveria algo moral se imiscuindo no âmbito ético. Mas o acordo Lula-Maluf é estritamente ético, e assim deve ser julgado. Ambos estão somando votos – ou apostando que podem assim fazer – para poder derrotar um adversário comum, e com isso dando satisfações ao seu eleitorado. Estão trabalhando para conseguir maioria e pegar o poder, não estão parados. O que é acordado? Como já disse: programas, cargos e objetivos. Não há outra coisa a se acordar. E no âmbito da análise política, onde tratamos do político e do cidadão, não cabe imaginar que esses acordos possuem objetivos não ditos, ainda que possamos, porque não somos ingênuos, acreditar que existam. Mas, objetivos não ditos, como são não ditos, também podem ser imaginados em relação a outros. Por exemplo, poder-se-ia pensar em objetivos não ditos no acordo FHC-Toninho Malvadeza, quando o primeiro foi candidato à Presidência da República.  Como não podemos falar do que não ficamos sabendo, não temos que levar isso em conta para a nossa avaliação aqui, que é a de quem apenas quer mostrar que moral e ética, no processo democrático, são coisas diferentes.
Creio que fica claro, agora, como que nossas avaliações se equivocam quando moralizamos a política, uma vez que ela é do âmbito da ética. Não é verdade?
O não entendimento de alguns, às vezes, também não é só por conta de que não conseguem saber o que é a esfera da ética e o que é a esfera da moral. Não raro, às vezes falta capacidade de abstração nossa, de modo que não pensamos nos acordantes como políticos, e sim como a pessoa X e a pessoa Y. Isso ocorre, às vezes, porque os que estão envolvidos no acordo são personalidades tão fortemente marcadas por determinadas características (se verdadeiras ou não, isso não importa), que não conseguimos vê-los senão como quem faz antes negociatas que acordos ou negociações.  Mas, nesse caso, nossa visão do empírico não deve nublar nossos olhos de modo que não possamos continuar a ver as coisas segundo os vocabulários corretos que empregamos, ou, como diriam outros filósofos, segundo os conceitos corretos que empregamos.
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 * Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
(1) “político” e “cidadão”, aqui, são abastrações conceituais da filosofia política, não indivíduos empíricos.

Sobre outros aspectos do acordo Lula-Maluf, clique aqui!

Post Scriptum 1: fiquei chocado ao ver que mesmo colocando o aviso no final do texto, no último parágrafo, sobre o nível de abstração em que a filosofia política trabalhar, eu tenha tido leitores – alguns, inclusive, com formação universitária – que não tenham entendido o texto, moralizando-o de novo e chamando para o texto as figuras empíricas, pessoais, de Lula e Maluf. Meu Deus! O que está acontecendo com o leitor?Cidadão e político, neste texto, são abstrações, claro. E o último parágrafo mostra o quanto é difícil se livrar da figura empírica de X e Y! Ora, é difícil, mas com o aviso, o leitor não poderia retomar o texto, lê-lo de novo e, então, entender? Mas mesmo assim, não entende. Como pode ter feito um curso universitário?
Post Scriptum 2. Outro erro, este ainda mais crasso, foi o dos que acharam que o artigo justifica a prática de Lula. Ora, o artigo não julga a prática, apenas a nomina como legítima desde o início, porque  ela é da ética democrática independente de nossa vontade. Ela é legítima por si só.
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Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/06/20/o-acordo-etico-entre-maluf-e-lula/

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