Paulo Ghiraldelli Jr.*
“Temos
de descobrir qual a ideologia que está por trás”. Eis aí uma frase
daquelas que antes confundem que ajudam. Não há nenhuma ideologia que
possa estar “por trás” de alguma coisa. O que pode estar por trás são a
doutrina e a filosofia. A ideologia é a doutrina transformada em quase
propaganda ou então o que Engels chamou de “falsa consciência”, e é o
vem na frente, não atrás.
Não gosto dessa metáfora de “frente e
atrás”, mas se é o que se usa, então, que usemos corretamente. Quando
trabalhamos com ideários, o que chega primeiro não é a doutrina e, muito
menos a filosofia, e sim a ideologia. A ideologia é a doutrina sem seus
resguardos filosóficos, porque estes são legitimadores da doutrina e,
no entanto, mostra-a também com propostas hipotéticas e pressupostos
pouco discutidos tanto quanto a doutrina eleita adversária. A filosofia
nunca deixa de ser inteligente. Então, se é doutrina – um “o que fazer” –
aparece calçada pela filosofia, mostra sua força exatamente na
capacidade de não esconder sua suposta fraqueza. A filosofia é sempre
ingênua: ela revela os pontos fracos da doutrina que sustenta quer
queira quer não. A ideologia faz diferente. Ela não entende a fraqueza
da legitimidade da doutrina, não pode entender, toma a doutrina
dogmaticamente e, então, sai na frente dizendo ser não uma boa solução,
mas a solução verdadeira. O ideólogo não é filósofo.
Um exemplo. Li o professor Pondé (1), da
PUC-SP, em que ele diz que a democratização da cultura é sempre uma
maneira de tornar os apetrechos culturais capazes de serem oferecidos a
mais gente e assim fazê-los necessariamente passar por uma transformação
que deve piorá-los. Isso é uma filosofia conservadora ou uma ideologia
conservadora? Não é uma filosofia. É uma ideologia, e vem na frente. Vem
como propaganda impactante. É uma ideologia porque se mostra
dogmaticamente como verdade sem qualquer garantia, a não ser a duvidosa
garantia de observações históricas adrede preparadas. Caso fosse
verdade, então os livros em que Pondé escreve coisas desse tipo
deveriam ser tomados como ruins, pois eles vendem bem e são feitos para
isso, para a popularização extremada, não só pela linguagem utilizada,
mas também porque há neles uma conversa muito ao gosto do senso comum
conservador (contra o politicamente correto, contra direitos de
minorias, contra o feminismo etc.). Ora, mas eu não diria que os livros
do professor Pondé são um lixo porque são para a multidão. Eu diria
apenas que não são do meu gosto porque são de um conservadorismo que já
se fez presente entre minhas leituras no passado e já se fez presente no
passado de outros bem mais antigos do que eu.
Agora, há filosofia nessa tese de Pondé, contra a democracia?
Bem, sabemos da existência da filosofia
conservadora. Sabemos bem que ela está visível na história da filosofia,
e a vemos correr séculos dizendo que tudo que é para “os muitos”, sejam
eles quem for, será sempre algo banal. Essa filosofia é anterior mesmo à
democracia. Ela, a filosofia conservadora, foi posta à prova – e ficou
reprovada – quando houve a educação escolar básica popular, entre os
séculos XIX e XX, e, então, muitos produtos culturais que pareciam só
poderem ser bem apreciados pelos “poucos” foram excelentemente
apreciados pelos “muitos”. Vários países da Europa seguiram o caminho
americano e se espantaram em ver o resultado, ou seja, de que não
necessariamente tudo que se amplia perde qualidade. Até então, as
pessoas que advogavam a democracia e tinham apreço pela cultura achavam
que uma sociedade democrática só podia ter bens culturais apreciáveis se
a democracia fosse bem hierarquizada e, principalmente, fosse algo
diminuto, mais ou menos como o modelo de Atenas. Ora, a filosofia sempre
trouxe um germe de questionamento quanto a esse modelo, mesmo quando
era adepto dele. Isso sempre foi visível em Platão.
A obra de Platão faz um elogio às
elites, mostra sua raiva da democracia que assassinou Sócrates e, no
entanto, não deixa de escrever a “Carta Sete”, onde mostra a
dificuldades maiores que teve com as elites. Também não deixa de elogiar
Sócrates, filósofo da rua e, de certo modo, da plebe, e não das elites.
E mais: mostra o quanto Sócrates, apostando em Alcibíades, uma pessoa
da alta elite, deu com os burros n’água. Assim, em Platão, não há um
comprometimento cego com a não-democracia. Sua filosofia tem uma
doutrina elitista e, ao mesmo tempo, mostra o quanto o elitismo pode ter
pés de barro. Mas, quando o platonismo escapa das mãos de Platão e se
transforma em uma doutrina isolada, ele realmente tem tudo para dar
origem rápida a uma possível ideologia elitista, a de veneração do
Rei-filósofo e coisas do gênero. E isso aconteceu nas melhores casas!
Transformada em ideologia, e que passou a ir à frente, o platonismo
assim feito conquistou os conservadores. Não à toa os conservadores
foram responsáveis por uma historiografia que tentou aposentar Sócrates,
tomando-o como um mero personagem de um Platão aprendiz, inicialmente, e
depois como um personagem descartável de um Platão já platônico e
conservador. Nunca admitiram o Platão com dúvida sobre o platonismo, o
que é algo notável para os que efetivamente leram Platão.
Pondé apresenta, então, uma ideologia
conservadora – algo que tem a ver com fantasmas platônicos transformados
por séculos de medievalismo e por reacionários mais próximos de nós.
Mas Pondé não apresenta filosofia. Caso apresentasse a filosofia que
sustenta seu conservadorismo, ela mesma, a filosofia, daria uma série de
dicas para ele desconfiar sobre se valeria a pena ele não ter dúvidas
quanto ao modo como adota o seu conservadorismo. Mas se tem uma coisa
que Pondé não sabe o que é, é a dúvida. Ele diz frases ideológicas
conservadoras com a máxima convicção. Às vezes soa religioso na doutrina
e, assim, mais ideológico ainda. Sua citação aqui e ali de alguns
filósofos não é filosofia ou, digamos, não é suficientemente algo da
filosofia de modo capaz a fazer aquilo que a filosofia faz até com os
mais renitentes, a de jogá-los para a coceira cerebral, aquela vontade
de dizer coisas como “acho que estou errado”. Ele está inebriado com a
sua ideologia. Ela, vindo na frente, às vezes mostra que acabou antes
ganhando ele próprio, destruindo sua capacidade crítica, deixando em
plano até secundário os que deveriam ser atingidos pelos seus textos.
Ora, mas o que faz Pondé ser vítima de
sua ideologia? Todos nós estamos à mercê dessa situação. Para cairmos
nela, basta tomarmos o lugar que vivemos como sendo o mundo. Pondé toma a
PUC como sendo o Planeta. Ele vê no marxista dogmático e na feminista
chata não o marxista dogmático e a feminista chata, mas o homem do
iluminismo ou do romantismo que tem pendores à esquerda e a mulher
moderna sexy e com vocação intelectual. Ele faz de pequenas caricaturas
de seu meio ambiente acadêmico os tipos que ele imagina quase
universais. E se horroriza com eles – quem não se horrorizaria, já nos
anos oitenta? Nisso, ele pensa estar fazendo filosofia, mas está apenas
caindo de joelhos diante de sua ideologia. Esta, de tanto ir à frente,
funciona como um ectoplasma que ao se lançar no espaço puxa-o pela boca,
por um anzol espectral, e o expõe em livros em que ele se lamenta de
não ter tido uma infância feliz e, ao mesmo tempo, esbraveja contra
mulheres que são intelectuais, que tem tesão, mas que parece que ele não
consegue ganhar.
De frase conservadora em frase
conservadora, seus livros mais populares o jogam no arrastão de sua
própria ideologia. Ao fim e ao cabo, ele começa a pedir desculpas ao
leitor, a cada capítulo. Começa a ficar cismado que seu amargor, que seu
pessimismo e o que ele chama de “trágico”, não esteja ao gosto de todos
os conservadores que compraram seu livro. Cisma que exagerou na dose e,
então, pensa que pode perder seus leitores. Nesse instante, em que
poderia se enxergar como ideólogo, ainda não se vê, e faz o que o
criminoso nazista Rudolf Höss fez em seu livro autobiográfico, escrito
na prisão em que esperava a morte (The Commandant): declara-se como uma pessoa não má, como uma pessoa que, afinal, tem ainda
uma ética. O livro de Pondé sobre a filosofia politicamente incorreta
tem um tom patético quando ele começa, aqui e ali, a se desculpar com o
leitor.
A ideologia faz exatamente esse serviço.
A filosofia dá condições de autocrítica e, então, abre portas para a
mudança, mas a ideologia não. Quando quem está nela é enredado por algum
tipo de dúvida, ainda assim não muda, mas passa a se desculpar. Fica
com medo de perder possíveis amigos que havia conseguido ganhar por ter
formado um público. Tendo um público, passa a gostar das pessoas, a ter
sua carência de escritor suprida e, então, age quase igual ao marxista e
a feminista que ele denuncia como medíocres e “bregas” por quererem “um
mundo melhor”. De lobo mau que se imaginava trágico vira uma vovozinha
cambaleante que, ao final, parece que quase irá acender uma vela e
iniciar uma oração pela própria alma.
A ideologia está na frente. Se há algo atrás, é o ideólogo – antes arrastado pela ideologia que como o seu produtor.
(1) Li dele dois livros de sucesso editorial: Contra um mundo melhor e Guia politicamente incorreto da filosofia, ambos da editora Leya.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/06/22/ponde-ideologo-ponde-vitima/
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