P. José Tolentino Mendonça
A demarcação dos artistas face à tutela da
religião, a visão do cristianismo segundo Gil Vicente, «o primeiro
grande teólogo português», o criador enquanto sondador da alma e do
silêncio, o Átrio dos Gentios e a arte como possibilidade de sugerir um
vislumbre da eternidade foram alguns dos temas abordados pelo diretor
do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, padre José Tolentino
Mendonça, em entrevista à Renascença, após a 8.ª Jornada da Pastoral da
Cultura realizada no dia 22 de junho, em Fátima.
Por que é que é tão politicamente
incorreto para muitos criadores e artistas assumirem-se como católicos?
Por que é que vemos no meio da cultura algum preconceito para com a
religião?
É da própria natureza do percurso
artístico a procura de uma liberdade muito grande. Se há uma tradição
criadora que inspira a arte, cada área artística é chamada, de certa
forma, a começar tudo de novo. E nesse sentido um artista não cresce à
sombra de ninguém, mas vive uma ardente e radical procura e abertura.
As tutelas, mesmo as de tipo religioso ou
confessional, podem ser muitas vezes mais um obstáculo do que um
estímulo. Eu lembro sempre o poeta Ruy Cinatti, cujo catolicismo é de
todos conhecido, que dizia não ser um poeta católico mas um católico
poeta. Esta distinção é importante porque dá uma liberdade muito
grande. O artista não está mandatado para ser artista – ele é artista,
contextualizado na sua biografia, convicções e crenças. Só desta forma
livre é que o criador pode exercer com fecundidade o seu dom.
A dúvida é estimulante...
«A minha fé nasceu da fornalha da dúvida», dizia o
romancista Dostoievsky. O espaço de liberdade reivindicado pelos
artistas ou pelo ser humano no seu percurso de consciência não se vira
contra a afirmação ou construção da atitude crente; pelo contrário: a
fé supõe esse caminho de interrogação.
Por isso os artistas têm um papel muito
importante na iluminação do percurso crente. Não é por acaso que um
homem como Gil Vicente, sendo dramaturgo, é o primeiro grande teólogo
português. A síntese que faz da experiência cristã, a visão que tem do
que é a inscrição do cristianismo na cultura do seu tempo, ou na paixão
humana de todos os tempos, faz dele um teólogo que ainda hoje continua
a iluminar, inquietar e desafiar o nosso presente.
O contributo que a arte e os artistas dão
à vivência da fé é trazer-nos a pergunta, a procura de uma
profundidade e a capacidade de desmontar aquilo que parece uma
evidência para buscar o que às vezes é o difícil, o austero, o
demorado, o silencioso, que é o caminho das procuras autênticas.
E procurar também o belo...
O belo é algo que nos transcende; não se fabrica.
O belo é uma espécie de estado. Platão dizia que é uma espécie de
febre. Ficamos habitados por essa espécie de energia febril que nos faz
perceber o mundo como epifania de um silêncio, uma luz, uma
obscuridade que o mundo guarda mas que está, sem dúvida, mais perto do
sentido que buscamos.
«A minha fé nasceu da fornalha da dúvida»
- Dostoievsky -
Que valores faltam à sociedade?
Uma coisa que me provoca sempre grande admiração e
esperança no contacto com os criadores e artistas é ver que para lá
dos seus posicionamentos religiosos, o trabalho artístico é
eminentemente espiritual, seja no teatro, artes visuais e
performativas, na escrita.
O criador é uma espécie de sonda que
desce a regiões profundas do espírito humano, da sua alma, do seu
silêncio, e aí colhe alguma coisa que se torna relevante para a
experiência de nós todos.
Neste sentido corroboro as palavras do poeta
Manuel Alegre [proferidas na 8.ª Jornada da Pastoral da Cultura,
realizada a 22 de junho, em Fátima], dizendo que num período de grande
vacilação, inquietude e crise, como aquele que estamos a viver, o lugar
do artista não pode ser alienado.
A fase que atravessamos em Portugal pode
ser um bom momento para o diálogo entre aqueles que acreditam e os que
não acreditam, como veículo para uma esperança?
Este momento histórico obriga-nos a uma
reflexão coletiva e a um recentramento das nossas prioridades e por
isso estamos todos no mesmo barco, crentes e não crentes.
Todos nós percebemos que houve, talvez,
um investimento excessivo no consumo, de uma certa euforia na
materialidade do mundo, preterindo dimensões da humanidade, cultura,
artes, religioso e espiritual que têm a ver não com as verdades
penúltimas ou mais imediatas, mas com as verdades últimas, que iluminam
e resgatam a vida.
Esta hora de fragilidade das construções sociais é
também uma hora para decidirmos aquilo que é mais importante, o que de
facto é capaz de responder à reivindicação de felicidade que existe no
coração humano.
Fale-nos do projeto do “Átrio dos Gentios”, que vai chegar a Portugal em novembro.
Nos dias 16 e 17, em Guimarães e Braga, haverá
uma realização portuguesa do projeto do Pontifício Conselho para a
Cultura intitulado Átrio dos Gentios.
O Átrio dos Gentios não é o lugar onde
encontramos os gentios, porque gentios somos todos, mas é um átrio, uma
esplanada, um recinto, um espaço de diálogo onde se procura uma
sabedoria comum em torno às grandes temáticas.
E, de facto, Deus é uma questão para crentes e
não crentes; a vida é um enigma e um mistério para crentes e não
crentes; a verdade é uma procura de crentes e não crentes. E o
património comum de humanidade e humanismo deve ser um laço que nos une
e aproxima, mais do que um fosso e uma fronteira que nos separa.
Há uma arte ou várias artes?
Há uma grande criadora, Hildegarda de
Bingen, que fala da sinfonia da criação. A criação tem esse lado
musical, que se espraia, e que no fundo não é outra coisa se não a
existência que vai ganhando forma e se vai transfigurando diante dos
nossos olhos, que em certos momentos de contemplação são capazes de
fixar ou de nos dar a sugestão que fixam a própria eternidade.
-----------------------
Entrevista de Maria João Costa
In Rádio Renascença
© SNPC | 24.06.12
In Rádio Renascença
© SNPC | 24.06.12
Fonte: http://www.snpcultura.org/a_criacao_artistica_como_vislumbre_eternidade.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário