terça-feira, 26 de junho de 2012

A criação artística como vislumbre da eternidade

P. José Tolentino Mendonça
A demarcação dos artistas face à tutela da religião, a visão do cristianismo segundo Gil Vicente, «o primeiro grande teólogo português», o criador enquanto sondador da alma e do silêncio, o Átrio dos Gentios e a arte como possibilidade de sugerir um vislumbre da eternidade foram alguns dos temas abordados pelo diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, padre José Tolentino Mendonça, em entrevista à Renascença, após a 8.ª Jornada da Pastoral da Cultura realizada no dia 22 de junho, em Fátima.

Por que é que é tão politicamente incorreto para muitos criadores e artistas assumirem-se como católicos? Por que é que vemos no meio da cultura algum preconceito para com a religião?
É da própria natureza do percurso artístico a procura de uma liberdade muito grande. Se há uma tradição criadora que inspira a arte, cada área artística é chamada, de certa forma, a começar tudo de novo. E nesse sentido um artista não cresce à sombra de ninguém, mas vive uma ardente e radical procura e abertura.
As tutelas, mesmo as de tipo religioso ou confessional, podem ser muitas vezes mais um obstáculo do que um estímulo. Eu lembro sempre o poeta Ruy Cinatti, cujo catolicismo é de todos conhecido, que dizia não ser um poeta católico mas um católico poeta. Esta distinção é importante porque dá uma liberdade muito grande. O artista não está mandatado para ser artista – ele é artista, contextualizado na sua biografia, convicções e crenças. Só desta forma livre é que o criador pode exercer com fecundidade o seu dom.

A dúvida é estimulante...
«A minha fé nasceu da fornalha da dúvida», dizia o romancista Dostoievsky. O espaço de liberdade reivindicado pelos artistas ou pelo ser humano no seu percurso de consciência não se vira contra a afirmação ou construção da atitude crente; pelo contrário: a fé supõe esse caminho de interrogação.
Por isso os artistas têm um papel muito importante na iluminação do percurso crente. Não é por acaso que um homem como Gil Vicente, sendo dramaturgo, é o primeiro grande teólogo português. A síntese que faz da experiência cristã, a visão que tem do que é a inscrição do cristianismo na cultura do seu tempo, ou na paixão humana de todos os tempos, faz dele um teólogo que ainda hoje continua a iluminar, inquietar e desafiar o nosso presente.
O contributo que a arte e os artistas dão à vivência da fé é trazer-nos a pergunta, a procura de uma profundidade e a capacidade de desmontar aquilo que parece uma evidência para buscar o que às vezes é o difícil, o austero, o demorado, o silencioso, que é o caminho das procuras autênticas.

E procurar também o belo...
O belo é algo que nos transcende; não se fabrica. O belo é uma espécie de estado. Platão dizia que é uma espécie de febre. Ficamos habitados por essa espécie de energia febril que nos faz perceber o mundo como epifania de um silêncio, uma luz, uma obscuridade que o mundo guarda mas que está, sem dúvida, mais perto do sentido que buscamos.

 «A minha fé nasceu da fornalha da dúvida»
- Dostoievsky -


Que valores faltam à sociedade?
Uma coisa que me provoca sempre grande admiração e esperança no contacto com os criadores e artistas é ver que para lá dos seus posicionamentos religiosos, o trabalho artístico é eminentemente espiritual, seja no teatro, artes visuais e performativas, na escrita.
O criador é uma espécie de sonda que desce a regiões profundas do espírito humano, da sua alma, do seu silêncio, e aí colhe alguma coisa que se torna relevante para a experiência de nós todos.
Neste sentido corroboro as palavras do poeta Manuel Alegre [proferidas na 8.ª Jornada da Pastoral da Cultura, realizada a 22 de junho, em Fátima], dizendo que num período de grande vacilação, inquietude e crise, como aquele que estamos a viver, o lugar do artista não pode ser alienado.

A fase que atravessamos em Portugal pode ser um bom momento para o diálogo entre aqueles que acreditam e os que não acreditam, como veículo para uma esperança?
Este momento histórico obriga-nos a uma reflexão coletiva e a um recentramento das nossas prioridades e por isso estamos todos no mesmo barco, crentes e não crentes.
Todos nós percebemos que houve, talvez, um investimento excessivo no consumo, de uma certa euforia na materialidade do mundo, preterindo dimensões da humanidade, cultura, artes, religioso e espiritual que têm a ver não com as verdades penúltimas ou mais imediatas, mas com as verdades últimas, que iluminam e resgatam a vida.
Esta hora de fragilidade das construções sociais é também uma hora para decidirmos aquilo que é mais importante, o que de facto é capaz de responder à reivindicação de felicidade que existe no coração humano.

Fale-nos do projeto do “Átrio dos Gentios”, que vai chegar a Portugal em novembro.
Nos dias 16 e 17, em Guimarães e Braga, haverá uma realização portuguesa do projeto do Pontifício Conselho para a Cultura intitulado Átrio dos Gentios.
O Átrio dos Gentios não é o lugar onde encontramos os gentios, porque gentios somos todos, mas é um átrio, uma esplanada, um recinto, um espaço de diálogo onde se procura uma sabedoria comum em torno às grandes temáticas.
E, de facto, Deus é uma questão para crentes e não crentes; a vida é um enigma e um mistério para crentes e não crentes; a verdade é uma procura de crentes e não crentes. E o património comum de humanidade e humanismo deve ser um laço que nos une e aproxima, mais do que um fosso e uma fronteira que nos separa.

Há uma arte ou várias artes?
Há uma grande criadora, Hildegarda de Bingen, que fala da sinfonia da criação. A criação tem esse lado musical, que se espraia, e que no fundo não é outra coisa se não a existência que vai ganhando forma e se vai transfigurando diante dos nossos olhos, que em certos momentos de contemplação são capazes de fixar ou de nos dar a sugestão que fixam a própria eternidade.
-----------------------
Entrevista de Maria João Costa
In Rádio Renascença
© SNPC | 24.06.12
Fonte:  http://www.snpcultura.org/a_criacao_artistica_como_vislumbre_eternidade.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário