Maíra Mathias*
Cumprindo uma extensa agenda de compromissos na Cúpula dos Povos
desde o dia 14 de junho, quando participou da oficina ‘Saúde,
sustentabilidade e bien vivir’ promovida pela Universidade Popular de
Movimentos Sociais em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos participou de duas
atividades de conversa com os participantes do evento no Aterro do
Flamengo nesta terça-feira (19). Quem foi ao Clube Boqueirão, na mesa
organizada pela ONG italiana A SUD, e em seguida à tenda da Economia
Solidária pôde ouvir um balanço antecipado da conferência oficial e seus
(fracos) resultados, assim como uma reflexão sobre as esquerdas no
cenário político atual. Para Boaventura, os movimentos sociais e
organizações que atuam em defesa da justiça ambiental e social precisam,
mais do que nunca, se unir em agendas agregadoras expressadas por meio
de campanhas únicas.
Rio+20
Para Boaventura, a conferência oficial das Nações Unidas foi
capturada por interesses privados, que travam a discussão e pode ser
comparada ao Fórum Econômico Mundial, baseado em Davos na Suíça, que
reúne todos os anos chefes de Estado e grandes empresários. “A novidade
de 2012 em relação à 2001 é que naquele ano, o Fórum Econômico Mundial
se realizou em Davos, enquanto que Porto Alegre sediava a primeira
edição do Fórum Social Mundial. Hoje, o Fórum Econômico está acontecendo
no Riocentro e o Fórum Social no Aterro do Flamengo. Entre nós, um
oceano de morros e táxis, um oceano de apartheid social que o Rio
turístico esconde”, criticou.
O sociólogo comparou a principal proposta da ONU para a Rio + 20 –
que prevê mecanismos de financeirização da natureza e é conhecida como
economia verde – ao presente de gregos a troianos. “É um Cavalo de Tróia
instalado na praia, é invisível e enorme. A economia verde é a cortina
de fumaça que estão estabelecendo a nossa volta, porque é a melhor
maneira para o capital global, financeiro, sobretudo, ter acesso à
gestão dos recursos globais”.
Seguindo a conturbada negociação do documento da Rio + 20, intitulado
‘O futuro que queremos’, Boaventura acredita que o texto sai esvaziado.
“Nem as propostas do G77 [bloco formado pelos países em
desenvolvimento] mais China vão poder ser aprovadas. O grande Fundo do
Desenvolvimento Sustentável foi recusado. O acesso universal à saúde foi
recusado pelos Estados Unidos. A alteração dos sistemas de governo do
Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, do Conselho de
Segurança obviamente nem a Europa nem os Estados Unidos querem ouvir
falar”, enumerou, completando: “Penso que é um retrocesso em relação à
1992, que produziu compromissos obrigatórios, se seguiram as convenções e
por outro lado as responsabilidades comuns diferenciadas, isto é, os
países ricos têm que pagar mais porque poluem mais e há mais tempo, nada
disso é neste momento pacífico.
Por todas essas razões, o sociólogo português sustenta que não temos
muitas razões para ter esperanças no plano intergovernamental e destaca o
papel que a Cúpula dos Povos desempenha para dar voz às demandas e
críticas da sociedade civil mundial. “O que mudou de positivo em relação
à 92 é o que se passa na Cúpula dos Povos. Nós temos hoje consciência
socioambiental, existem organizações, movimentos mais fortes do que
antes. Por exemplo, a agenda socioambiental começa a ser transversal e
entra em movimentos como o Sintagma na Grécia, dos indignados em Madrid,
dos jovens urbanos da Inglaterra e também no Ocuppy Wall Street. Em
todos eles, a questão ecológica aparece de maneira profunda, como o Bem
Viver. A maneira como se organiza a vida cotidiana nos acampamentos é um
testemunho de outra maneira de viver e estar com a natureza, um modelo
que tem como horizonte a justiça social e ambiental”, destacou.
Ecologia de saberes
No entanto, Boaventura acredita que ainda não temos uma nova cultura
socioambiental. Para chegar lá, ele sustenta que é preciso resgatar os
fundamentos da economia política. “Não adianta pensar que a luta de
classes não é importante porque já vimos que o colonialismo, o sexismo e
o capitalismo andam junto, portanto, não faz sentido lutar pelo meio
ambiente se não se luta pelas comunidades quilombolas, pelos territórios
dos indígenas, pelos povos de rua, pela seguranças dos travestis,
contra os massacres de homossexuais”, citou.
Elementos de todas as culturas dos povos articulados ao conhecimento
produzido nas universidades podem criar uma nova economia de saberes,
necessária, segundo o sociólogo, para alcançar novas formas de pensar o
poder e a democracia. “A Constituição da Bolívia diz que há três formas
de economia: privada, pública e comunitária. E há sete formas de
propriedade, dentre elas a pública, a comunal, a privada, a associativa,
a cooperativa. Ou seja, pluralizar as economias. A mesma Constituição
também diz que as formas da democracia são várias: representativa,
participativa, comunitária. Nas nossas teorias eurocêntricas, nunca nos
demos conta que para além da democracia representativa e da
participativa poderia existir a comunitária. É a democracia das
populações ribeirinhas, dos indígenas, das populações quilombolas”,
disse.
Para ele há uma “demodiversidade”, uma diversidade de democracias que
circulam na sociedade com uma diversidade cognitiva de saberes, uma
diversidade de poderes. “Seria um erro grave pensarmos que podemos
transformar o mundo sem tomar o poder, agora não podemos transformar o
poder sem mudar o poder”. Nesse sentido, Boaventura acredita que os
partidos, os movimentos e organizações sociais não são as únicas formas
de fazer política. “Os indignados mostraram que nós da esquerda tínhamos
sido muito elitistas porque sempre consideramos que para fazer política
era preciso estar organizado em partido, sindicato, movimento social ou
ONG, não levando em conta que esmagadora maioria da população não está
organizada em partido não é membro de movimento ou associação. E olhamos
para eles como se fossem despolitizados. Ora é essa gente que hoje está
na Ocuppy Wall Street. Nós negligenciamos qual é o patamar a partir do
qual a indignação é tão grande que a pessoa sai à rua. Temos que estudar
onde está o patamar de indignação”, propôs.
Agendas agregadoras
Boaventura relatou que a maior lição tirada da atividade organizada
pela Universidade Popular dos Movimentos Sociais foi a necessidade de
construir agendas agregadoras. Ele relatou o caso do representante dos
moradores de rua que, a princípio, não queria se articular com
representantes de outros movimentos populares no encontro. “Eu
perguntei: Porque não se uniu? Quanta gente do LGBT, quantos travestis
não vivem na rua? Ao fim da atividade, o Samuel do movimento da
população de rua estava articulado não só com o LGBT, mas também com o
movimento de educação popular da saúde porque tinha chegado à conclusão
que a luta dos povos de rua se integra ao SUS em pontos muito
específicos. Portanto, nós temos um problema em articular as agendas”.
Para ele, o grande desafio é identificar quais são essas agendas
agregadoras nas quais devemos nos concentrar. “A agenda socioambiental é
agregadora, mas ela por vezes é muito vaga”, pontuou. O sociólogo
acredita que lutas agregadoras são aquelas em que populações do campo e
da cidade conseguem confluir suas demandas. O professor citou o exemplo
do norte da Colômbia, onde a luta contra a privatização da água
articulou camponeses com moradores da cidade, todos à favor do acesso à
água potável por um bom preço. No Brasil, Boaventura acredita que a
campanha contra os agrotóxicos e pela vida pode ter essa dimensão. “O
agronegócio se assenta no conceito de produtividade, que consiste em
extrair o máximo da terra em um ciclo de produção. Essa é a diferença
para a agricultura camponesa porque o camponês extrai o máximo da terra,
mas não em um ciclo porque sabe que ao fim de uma colheita a terra,
assim como nós, precisa repousar. Isso é absolutamente incompatível com
lógica de produtividade capitalista, que quer máximo lucro em um ciclo
de produção. Por isso, a monocultura capitalista precisa dos
agrotóxicos”, expôs.
O professor lembrou que há três anos, o Brasil é o país que mais
consome agrotóxicos no mundo, produtos que, em alguns casos, foram
proibidos na Europa há mais de vinte anos por comprovadamente causarem
doenças como câncer e diabetes. “Esse movimento tem um potencial enorme
de unir o campo e a cidade porque envenena os camponeses e contamina
suas águas, mas obviamente contamina a alimentação da cidade, e ao
contaminá-la, também produz câncer, causa aos urbanos muitas
enfermidades”.
Para Boaventura, o grande problema político dos movimentos sociais é
centrarem-se nas suas agendas. “Essas agendas são facilmente cooptáveis,
como vemos hoje nos conselhos de saúde, e por outro lado não veem a
floresta. A floresta é o sistema político corrupto. Nós não podemos ter
políticas sustentáveis com políticos insustentáveis. Cada político
corrupto é um político insustentável. E porque ele é corrupto? Será
porque é má pessoa? Porque não foi à missa ontem? Não tem nada a ver com
isso. A corrupção é um sistema”, argumentou.
Para ele, o sistema da corrupção encontrou terreno mais fértil com a
crescente indistinção entre mercado político dos valores que não se
compram nem vendem com o mercado econômico dos valores que se compram e
se vendem. “Hoje, o mercado político é igual ao mercado econômico. A
corrupção é endêmica. Por isso que as parcerias público-privadas são
efetivamente parcerias privadas-privadas. Não zelam pelo interesse
público, mas pelo interesse de seus bolsos. E sendo assim, é curioso que
o Brasil avance nas parcerias público-privadas sem olhar a experiência
da Europa. Em Portugal e na Espanha, essas parcerias foram consideradas
as maiores fontes de corrupção e estão todas em tribunal”.
Para ele, não podemos vencer as nossas lutas sem alterar o sistema
político. Boaventura também criticou o Código Florestal: “O código
sem-vergonha seria possível se a bancada ruralista não tivesse 400
membros no Congresso Nacional? Eles servem ao sistema politico
brasileiro que tem que ser reformado. Também o sistema eleitoral, o
sistema da democracia participativa, o sistema dos tribunais. Vejam, há
mecanismos da Constituição de 1988 que nunca foram aplicados porque não
foram regulamentados, como o plebiscito e o referendo. Precisamos por em
prática. Não é apenas lutar por orçamentos participativos, mas por
essas outras medidas do sistema político”.
(Instituto CarbonoBrasil)
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* Da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/27/06/2012
Imagem da Internet
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