Paulo Ghiraldelli*
“O
marxismo está morto” – essa frase foi escrita mil vezes pelos
conservadores do final do século XIX até o final do século XX. Após o
fim do comunismo (1989-1992), a frase perdeu sua força. Aquela outra
frase, “há um espectro que ronda a Europa, o fantasma do comunismo”, se
tornou realidade, mas de forma irônica: realmente o comunismo virou um
fantasma. Mas ficou com um rosto muito mais para Gasparzinho, que não
assusta ninguém e efetivamente está morto, que para qualquer outra coisa
que possa meter medo a não ser nos jornalistas da Revista Veja.
No entanto, uma coisa é o marxismo e
outra o comunismo, algo semelhante com o que ocorre com um seu parente, a
psicanálise. Uma coisa é o freudismo, outra coisa são as práticas
terapêuticas da psicanálise. Todavia, com o freudismo parece ter
ocorrido o oposto: as clínicas de terapia psicanalítica dominam a vida
urbana ocidental, mas o próprio freudismo, ortodoxo, não tem mais
adeptos senão em círculos acadêmicos restritos.
Não podemos deixar de notar que há uma
diferença de base entre marxismo e freudismo: Freud era médico e,
portanto, um amante do empirismo. Marx era um pesquisador com profunda
capacidade empírica, mas, antes de tudo, um filósofo hegeliano que
jamais abandonou por completo o desejo de escrever o que escreveu no
texto de 1959, sobre o “método da Economia Política”, algo que ficava
entre uma teoria da história e uma filosofia da história. Freud, por sua
vez, não fez isso, isto é, filosofia, em meio de carreira, mas ao
final. Como todo grande pensador, não conseguiu ficar sem filosofar e,
principalmente em “O mal estar na civilização” e outros escritos
semelhantes, esboçou talvez algo mais que uma teoria da história, mas
uma verdadeira cosmologia.
Marx montou sua teoria da história a
partir de algo que estava no imaginário do século XIX: as revoluções. A
formulação que ele deu era extremamente sintética e sedutora. As forças
produtivas deveriam sempre ir adiante, mas às vezes eram retardadas
pelas relações de produção que, ao início, só as ajudavam. Em outras
palavras: a indústria e as invenções querem continuar seu trabalho,
querem o progresso, mas a legislação e os interesses econômicos
particulares nem sempre caminham no sentido de assim permitir. Nem
sempre o que é mais racional para a evolução é adotado, porque as leis e
todo o aparato político continuam brindando o arcaísmo. Essa é a hora
da revolução. Há quem, na sociedade, perceba isso, de algum modo, e
comece a pedir toda uma mudança da legislação e da organização política e
até mesmo do modo como se organiza a produção. Assim se deu com as
chamadas “revoluções burguesas” – a da Inglaterra (feita por partes), a
da França (feita abruptamente) e a da América (que veio junto da
Independência dos Estados Unidos). Marx montou assim um modelo social –
quase que inventando o que seria, depois, a sociologia – não como algo
usado para adivinhar o que viria na história, mas, no meu entendimento,
como um heurística capaz de ajudar os pesquisadores no sentido de uma
racionalização da história. Nisso, funcionou o seu hegelianismo: o real é
racional (se o racional é real, isso é outra história, duvidosa para
Marx – talvez viesse a sê-lo, no comunismo). Ou seja, o real é possível
de ser inteligível porque possível de ser posto em uma estrutura
racional. O pensamento pode captar o real e expô-lo não como um conjunto
atordoado de “fatos”, como uma bagunça social da revolução, que parece
para alguns a perda completa da racionalidade, mas como um conjunto de
elementos que fornecem uma trama com algum sentido. Que os homens sejam
malucos, ao menos na revolução, tudo bem, mas que não exista uma razão
interna à história, isso não seria verdade.
Ora, Freud fez algo parecido. No início
de suas pesquisas, ele acreditava que havia uma única força, uma
energia, de comando no mundo. Essa energia era a libido, manifesta
claramente no princípio de prazer. Depois, Freud livrou-se de seu
“sexualismo”, e partiu para a idéia de uma energia com dupla face: o
princípio de prazer, de um lado, o princípio de morte, de outro. Um
seria responsável pelo que desde os gregos pré-socráticos vinha com o
que une elementos: o amor. O outro, como o que desune, afasta: o ódio
ou, melhor dizendo no caso, a violência, o ímpeto destrutivo. Não é
difícil de ver isso. São bem evidentes os graus variados de sado
masoquismo que estão presentes no sexo e em atividades que só
aparentemente parecem distantes do sexo. O prazer e a dor, o gozo sexual
e a morte, estão juntos. A união e a individuação pagam um preço alto
no altar da dissolução do ego. Quando gozamos sexualmente sabemos bem o
que parece ser a morte, a dissolução do ego – gozar e passar por um
prazer intenso sem, no entanto, ter mesmo de morrer. Conseguimos essa
façanha, a de experimentar a paz da dissolução do ego sem a sua perda
completa dele, coisa que em vários animais não foi possível (o
louva-deus que o diga!). Eros e Tanatos surgiram na teoria freudiana
como forças psíquicas, talvez com base biológica, mas, talvez, com um
odor que levaria Freud, caso ele não fosse um médico, a adotar
terminologias que ele conhecia bem, vindas de Schopenhauer e Nietzsche, e
que dariam a tais teorias um caráter cosmológico. Vontade em
Schopenhauer e vontade de potência (e forças) em Nietzsche seriam bem
vindas a Freud se ele não fosse, antes de tudo, um materialista já
banhado em práticas positivas, ou mesmo positivistas, e um profundo
darwiniano em termos de interpretação da psique em termos evolutivos.
Seu medo de introduzir na psicanálise palavras que pudessem soar
místicas – e com razão – não era pequeno. Se houve um período em que o
misticismo se casou com a ciência, foi o que transcorreu entre o final
do século XIX até o pré-Segunda Guerra.
Essas duas grandes teorias tinham tudo
que uma filosofia poderia querer. Mas, elas tinham tudo do século XIX
que uma teoria, para ser boa, naquela época, deveria não conter, ou
seja, rastros filosóficos, odores de filósofos. A filosofia era
metafísica – talvez só isso. E a metafísica estava em baixa. “Deus
morreu”, a frase de Nietzsche, não era algo de se jogar fora. A
metafísica parecia, mesmo, talvez até mais que hoje, uma disciplina
completamente dispensável como se fosse um resto da teologia.
Elas, as duas novas teorias, o marxismo e
a psicanálise, forneciam um modelo de entendimento da relação entre o
bípede sem penas, individual e coletivamente, com o meio ambiente. Mas,
diferente das teorias anteriores, elas rejeitavam a idéia de ser uma
filosofia, ao menos era isso que seus proprietários e criadores mais ou
menos diziam. Marx e Engels haviam afirmado que desejavam antes
transformar o mundo que o interpretá-lo, como havia sido feito pelos
filósofos até então. E Freud havia dito que ele escrevia contra a
filosofia, admitindo que a vida mental funciona não de modo racional e
transparente a si mesma, como no modelo cartesiano, mas com forças
irracionais e subconscientes ou mesmo inconscientes (a palavra já não
significaria mais estar sem vigília, como quem está inconsciente por
estar desmaiado). Ora, que filósofo admitiria algo não lógico como estar
inconsciente consciente? Freud, então, ao ver os filósofos adorarem a
lógica, tendia a dizer que sua pesquisa encontrava um objeto, sede da
lógica, como agindo contra a lógica.
Filosofias, em geral, trazem junto um sistema ético, uma direção, isto é, não mais só uma visão a respeito do ser, mas uma compreensão a respeito do dever ser. Quando
banhadas por utopias, chegam a trazer o dever ser em seu sentido
oposto, como o que não existe e não pode existir, mas como o que
funciona de modo radical dizendo ao que existe: você possui erros. No
caso de certas teorias holísticas, o dever ser já vem implícito no ser.
Assim foi com Hegel. De certo modo, os escritos de Marx e Freud, se
apresentaram com características desse tipo. O que se deve fazer para
ser feliz (a eudaimonia, perseguida pela filosofia grega) não é outra
coisa senão cumprir o destino incrustado no modo como a história parece
já indicar – história da sociedade ou do indivíduo. Mas, ao mesmo tempo,
essas teorias mostravam a existência de uma brecha para o que poderia
ser interpretado como exclusivamente científico, isto é, uma
inexistência de qualquer vínculo com um destino ético ou mesmo com um
aconselhamento ético. A terapia freudiana e o comunismo poderiam ser
deslocados da teoria ou, senão deslocados, ao menos considerados como
uma parte não implicada necessariamente no conjunto analítico. Assim, em
certo sentido, poder-se-ia falar de marxismo sem a necessidade do
comunismo e freudismo sem as amarras da terapia. Foi nessa brecha que se
deram mil e uma batalhas interpretativas e de uso do marxismo e do
freudismo.
Segundo os que vieram a apostar nessa
divisão, analisar a vida social pelas revoluções tinha sentido. O que
não tinha sentido era acreditar que a “velha toupeira” de Marx (a
revolução) deveria, necessariamente, estar sempre caminhando, dando uma
tranqüilidade aos que desejariam as transformações radicais. Ora,
segundo os que ficavam tranqüilos, porque a revolução, como a justiça
divina, poderia tardar mas não falhar, uma hora ou outra, a toupeira
iria aparecer na superfície. Poderia ser na Polônia ou na América. Mas
que iria aparecer, iria! Nenhuma toupeira poderia ficar sem vir à
superfície. As revoluções caminham por debaixo da política. São
transformações que não vemos, mas que uma hora ou outra, eclodem. Esse
predeterminismo gerou, é claro, um bocado de fanáticos. Essas pessoas
foram tomadas como gênios e, depois, como bobocas.
Lênin foi tomado como gênio. Ele teria
entendido a história. Ele teria visto as condições objetivas
corretamente, então, soube mobilizar as condições subjetivas para vir
saldar a toupeira. Ele foi aquele que teria sabido cantar como Vandré:
“quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Marcou hora e local para
servir champanhe à toupeira. Hora: 1917, Local: Rússia. Isso foi coisa
de gênio? Após o final do comunismo (1989), essa questão, que foi tão
importante no sentido de dividir o enorme movimento marxista, que,
afinal, criou a III Internacional, deixando os então ortodoxos de lado
(os que acreditavam que a ortodoxia marxista era a de que nunca haveria
revolução em país não industrializado), foi praticamente abandonada –
bem, mas aí, abandonada junto com a validade do marxismo. Durante anos
antes de 1989, a luta pelo abandono ou não dessa idéia de que havia
entre nós, mortais, alguém que se comunicava quase que demiurgicamente
com a fantástica toupeira, pairava não como algo místico entre os
professores e militantes, mas como algo que indicaria os que deveriam
comandar o mundo. Ora, mais misticismo que isso, impossível – diziam
alguns.
Os gênios do comunismo, como Lênin,
deixaram, após 1989, um espaço para os bobocas. Quem seriam eles? Ora,
qualquer um desses professores universitários de esquerda dando “aulas”
ao redor do movimento Occupy, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil,
brigaram por esse título. Eles nunca estiveram errados no sentido de
apoiar tais movimentos. Eles estiveram errados porque, no fundo, se
acreditaram como segundos Lênins. Se recusaram a rir quando do filme
“Adeus Lênin” (Wolfgang Becker, Berlin, 2003). E pior ainda, eles não se
deram conta de quanto temos hoje nos movimentos sociais e políticos
alguma coisa que pode parecer toupeira, mas está longe de ser uma
toupeira que, botando o focinho na superfície, irá dizer: “Let’s go
workers, we must walk to socialism!”. Aliás, a própria toupeira de 1989
disse o oposto!
Com a psicanálise, o que se deu foi
diferente. As clínicas e a prática psicanalítica não tiveram
dificuldades intransponíveis em se institucionalizar. Tiveram
dificuldades, é claro, mas, após a Segunda Guerra Mundial já ninguém
mais, escolarizado, admitia não serem necessárias, como qualquer outra
clínica médica de uma cidade. Agora, com o freudismo, apareceram
resistências terríveis, mesmo na acadêmica, muito mais que com o
marxismo. A visão de Freud sobre a vida dos bípedes sem penas, aos olhos
de muitos, sempre implicou em um realismo exacerbado, algo muito mais
angustiante que a espera da toupeira. Saber que uma toupeira pode
aparecer na superfície e criar um pandemônio social é alguma coisa muito
irritante para governos e classe média. Saber que há um monstro bem
mais feio que a toupeira dentro de cada um de nós, mesmo quando
crianças, é alguma coisa que ultrapassa a irritação. É algo tão incômodo
que, enfim, acaba criando uma rejeição de todo tipo de bípede sem
penas. Que nós, desde pequenos, estejamos envolvidos com forças que
recebem o nome de “libidinais”, e que podemos desejar nossas mães e,
então, disputá-las com nossos pais, nunca foi uma coisa igual a
encontrar uma toupeirinha. O Dr. Jeckyll e Mr. Hyde sempre tiveram ares
bem mais sombrios que qualquer toupeirinha. Talvez porque toupeiras são
da ordem do mundo exterior a nós, enquanto que Mr. Hyde e o Dr. Jeckyll
são personagens malditos que substituíram os bichos malvados que ficavam
em baixo de nossas camas.
Marx criou vocabulários que nos deram
uma nova imagem de nós mesmos, e o mesmo fez Freud. O “burguês” deixou
de ser o simples “habitante do burgo” para ser o “detentor de meios de
produção” e o “explorador do trabalho”. A palavra “explorador”, nesse
caso, deveria ganhar apenas um caráter analítico, mas à medida que o
comunismo era o objetivo ético do marxismo, “explorador” foi um termo
logo moralizado. Tornou-se a imagem de alguém a serviço do mal. Por sua
vez, a “libido” deixou de ser algo do âmbito intelectual e passou a
correr na boca popular, incluída em bulas de remédio e possível de ser
pronunciada até mesmo na sala de jantar de burgueses e na conversa
escolar, ou quase isso. Nesse caso, longe de ser termo ético e, sim,
termo médico, ela conseguiu sobreviver ao moralismo inicial que quis
abraçá-la. O “complexo de Édipo” ganhou trânsito livre ou semi livre.
Suas ligações com o homossexualismo também puderam ser objeto de
conversa. A medicalização dessas palavras sempre foi o passaporte da
psicanálise para o interior dos grupos de elite e da classe média. Todas
essas transformações de vocabulários de Marx e Freud, que nos deram
outra imagem de nós mesmos, ficaram e parecem que vão permanecer durante
o século XXI. Mas, é claro, dificilmente marxismo e freudismo irão
aparecer como apareceram a alguns no início do século XX ou mesmo
durante quase todo o século, como a Nova Ciência.
Houve um tempo que a própria
universidade pensou que haveria o fim da filosofia e que esta seria
substituída pela Ciência do Marxismo e/ou pela Ciência da Psicanálise.
Teríamos criado duas grandes teorias, com características de
metateorias, mas destituídas de certos incômodos da filosofia, a saber, a
disputa sobre se temos ou não de acoplar ou separar o ser e o dever ser.
A divisão ou a união disso poderia ficar no passado, como uma questão
filosófica morta, algo tão defunto quanto o positivismo de Comte, aquela
ambição de apologia da ciência que, enfim, se tornou em algo mais
problemático que a filosofia, porque reduzida à mera doutrina. Essa
conversa é, mesmo, coisa do passado. Hoje, o que foi incorporado ao
nosso vocabulário comum por essas formulações, é considerado ganho, o
que não foi, parece nem mesmo merecer ser destituído.
Ninguém hoje, em sã consciência,
admitiria o surgimento de algo que viesse a receber o nome de “Ciência”,
com “c” maiúsculo. Talvez seja até mais fácil, hoje, conquistar pessoas
para acreditar que a filosofia tem lá uma função novamente unificadora
que qualquer outra coisa. Não que eu concorde com essa força da
filosofia, para mim, é claro, a filosofia é antes de tudo uma ação
cultural política, uma espécie de função de árbitro organizador do jogo
de conversação das várias linguagens do teatro, da literatura, da
ciência, da religião, do senso comum entre si. Mas, não tudo isso, tem a
ver com o Ocidente, ou com a característica do “desencantamento do
mundo” (Weber) do Ocidente. Só que, também no Ocidente, há a força da
religião, que toma diversos aspectos, que se parece com a sua força do
senso comum do Oriente, quase que ignorando todo esse movimento que
tivemos entre a apologia do marxismo e do freudismo até os nossos
momentos atuais em que os colocamos, mais ou menos, no baú. É nisso que
estamos hoje. Encontramos entre nós não mais os velhos embates do
marxismo e da psicanálise com a filosofia, ou dessas coisas entre si,
mas sim o nosso novo vocabulário, vindo dessas teorias, no enfrentamento
de vocabulários que desconhecem a luta de Diderot e Voltaire pela
construção do mundo que resultou no que vivemos.
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*Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/06/13/os-tumulos-de-marx-e-freud/
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