José Lisboa Moreira de Oliveira*
A Antropologia nos ajudou a desvendar os mistérios
do etnocentrismo. Este consiste em
considerar ou afirmar que existem culturas superiores às demais. O
etnocentrismo normalmente se manifesta através de comportamentos agressivos e
hostis recheados de discriminação, proselitismo, violência e agressividade
verbal. É claro que não existem culturas superiores ou inferiores. Cada uma
delas deve ser vista dentro daquilo que os antropólogos chamam de interioridade cultural. Por esse motivo
jamais se pode afirmar que existem culturas selvagens, bárbaras ou atrasadas.
Toda atitude etnocêntrica precisa ser condenada e
rejeitada porque fere o princípio da igual dignidade das pessoas e de todos os
povos. A compreensão e a solidariedade são características dos seres humanos,
mas nem sempre isso acontece de forma natural. Por essa razão as diferenças e
diversidades costumam serem tomadas como pretexto para a geração de conflitos.
Neste conflito o diferente é tratado como adversário, como bárbaro, como
selvagem. Assim sendo, costuma-se aplicar ao diferente o que é proibido fazer
com os que são do mesmo grupo cultural, desde o linchamento até a tortura, a
morte, a escravização e o genocídio. Muitas vezes o etnocentrismo costuma ser
disfarçado por atitudes que são até louvadas, como é o caso, por exemplo, do
patriotismo.
O etnocentrismo é muito antigo e foi praticado no
passado por gente famosa. O antropólogo Roque Laraia no seu livro sobre a cultura
como conceito antropológico (Rio de Janeiro: Zahar) menciona vários exemplos.
No mundo da Bíblia isso é bem evidente. O próprio povo de Israel, com sua
pretensão de ser o único povo de Deus, praticou o etnocentrismo. Por isso os
profetas tiveram que lembrar aos israelitas que todos os povos eram convidados
para o banquete de Javé (Is 24,6-8). Esse tipo de etnocentrismo era tão forte
que no início do cristianismo as lideranças oriundas do judaísmo queriam
obrigar todos a se submeterem às tradições culturais hebraicas. Paulo e Barnabé
tiveram que intervir para defender o direito dos pagãos de não serem
importunados com costumes absurdos e alheios às suas culturas (At 15,1-29; Gl
2,1-14).
Durante o período da Renascença, lembram os
antropólogos Laburthe e Warnier num livro sobre etnologia e antropologia (Petrópolis: Vozes), houve a discussão
acerca dos habitantes da América. Queriam saber se eram homens ou animais, se
possuíam alma e se eram descendentes do Adão bíblico. Durante o Iluminismo alguns
filósofos afirmavam que os povos e culturas que não tinham alcançado um grau
racional idêntico aos europeus eram bárbaros e selvagens. No século XIX e
início do século XX chegou-se a criar o mito do "bom selvagem”. Exaltava-se a
sua liberdade, a beleza do seu estado natural, para depois se afirmar a
superioridade da civilização europeia.
Laraia afirma que o etnocentrismo é universal e seu ponto de referência não
é a humanidade, mas o grupo.
Normalmente acredita-se que o próprio grupo é o centro do mundo e a expressão
única de civilização. Desta forma as pessoas de uma determinada cultura reagem
com estranheza diante do diferente, que é visto neste caso como verdadeiro
inimigo. Isso depois é usado como pretexto para a prática da intolerância, da
discriminação e para justificar o uso da violência contra quem é diferente.
Em pleno século XXI o etnocentrismo não foi
superado. Continua presente ainda hoje com toda a sua carga ideológica. Às
vezes nos espantamos com o que sabemos do passado, mas, olhando nossas práticas
atuais, vamos perceber com toda clareza uma carga enorme de etnocentrismo. Por
isso, o trabalho de "descolonizar” certas práticas e opiniões ainda precisa
continuar.
O etnocentrismo atingiu e ainda atinge a teologia católica. Mesmo em nossos dias
existe na Igreja a prática de considerar a teologia europeia como a mais
correta e a mais natural. Isto suscitou e ainda suscita enormes conflitos, uma
vez que os etnocentristas eclesiásticos estão convencidos de que os teólogos de
outros continentes são inferiores e, por isso, incapazes de refletir sobre os
mistérios divinos. Por essa razão discriminam e fazem apreciações negativas
acerca das pesquisas teológicas realizadas fora da Europa. Embora feita com
métodos sérios e profundamente legítimos a teologia não europeia é olhada com
desdém. Acredita-se que somente os métodos europeus são lógicos, racionais e
corretos. Os demais são estúpidos e superficiais.
Era de se esperar que em pleno século XXI a
hierarquia da Igreja incentivasse entre as diversas teologias aquilo que os antropólogos
chamam de "solidariedade cultural”. O normal seria um diálogo mais respeitoso
que pudesse resultar numa interação entre elas e até mesmo numa fusão da qual
surgisse uma nova teologia para a Igreja, marcada pela contribuição das teologias
não europeias. Teríamos assim um sincretismo
teológico no qual a fusão de elementos teológicos daria vida a uma teologia
cheia de vitalidade e dinamismo.
Porém, o que assistimos ainda hoje é a imposição em
toda a Igreja de uma teologia eurocêntrica que despreza, inibe e até proíbe
outras formas diferentes de se fazer teologia. Roma impõe seu estilo e obriga
as demais Igrejas a abandonar suas tradições teológicas. Isso nem sempre é
feito explicitamente, mas através de propaganda ideológica ou de pressões
disfarçadas, levando os teólogos, mesmo que de forma inconsciente, a abandonar suas
pesquisas. Isso mata a novidade do Espírito, detona o processo de inculturação
da fé e obriga os teólogos a serem meros repetidores do Catecismo da Igreja.
Tal processo induz as pessoas a considerarem a própria experiência de fé como
algo inferior, forçando-as a assimilarem formas de viver o discipulado
completamente estranhas à própria realidade. É o que normalmente fazem, por
exemplo, os movimentos católicos, todos eurocêntricos ou filoeuropeus. Espalham
uma espiritualidade desencarnada, com fortes nuances de alienação, bem
distantes do dia a dia das pessoas.
Está, pois, na hora de se praticar no campo da
teologia o relativismo cultural. Compreender
cada teologia dentro do seu contexto e da sua realidade, segundo seus métodos e
processos. Está na hora da hierarquia da Igreja não ver mais as teologias
feitas fora da Europa como algo exótico, estranho e insignificante. O
relativismo cultural aplicado à teologia permitiria a todos os teólogos,
inclusive àqueles oficiais, chegarem para o debate teológico desprovidos de
preconceitos e com mais possibilidades de realizar um trabalho científico
sério. Num mundo dividido e desequilibrado isso resultaria em um grande
benefício para a Igreja Católica, para as demais igrejas e religiões e para
toda a humanidade.
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* Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor
do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past.
Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e
Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília. Co-autor de
Antropologia da Formação Inicial do Presbítero (2011) por Edições Loyola e
Universidade em Pastoralidade (2011), Edições Loyola).
Fonte: Adital on line, 20/06/2012
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