Quarenta anos depois, primeiro livro de
Deleuze-Guattari ainda ajuda a compreender como o capital estimula a
produção desejante e ao mesmo tempo faz tudo para controlá-la
Por Bruno Cava, no Quadrado dos Loucos
Resenha de DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. ed. 34. 2010 [1972].
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Quando se pensa no Maio de 68 europeu, logo vêm à mente alguns livros. Geralmente, lembramos de Eros e civilização (1955), de Marcuse, ou A sociedade do espetáculo (1967), de Debord; às vezes de Os condenados da Terra (1961), de Fanon; ou talvez A arte de viver para as novas gerações (1967),
de Raoul Vaneigem. Cânones de seu tempo, foram livros que ficaram
registrados como inspiradores da geração, frequentemente citados em
retrospectivas, documentários e memórias. O anti-Édipo veio
depois da grande turbulência, em 1972. O primeiro da série de livros
resultado das núpcias intelectuais entre um filósofo e um médico, daí
por diante amados e odiados pelo binômio Deleuze-Guattari.
No começo da década de 1970, a onda já tinha quebrado na cabeça de
muitos militantes daquele ciclo. Tempos de frustração, nuvens
carregadas, revisionismo. Nada disso deprimiu os autores, que escreveram
uma obra sem qualquer compromisso com fardos históricos. Em vez de
sentar no sofá e se ressentir, fizeram um livro que age. Que articula
novas armas para novos desafios. Não dá pra ler O Anti-Édipo sem
dar uns pulinhos de vez em quando. Nele, você passeia por um mundo
barroco de jogos, armadilhas, provocações, labirintos, boutades,
sacanagens, palavrões, astúcias, gracejos, sacadas, imposturas e
impudicícias. Uma experiência tão sexy quanto um livro de filosofia pode
proporcionar. E sem a menor vergonha. Um livro-vadia que dá a pensar,
que alucina, no meio do que algo se passa e está sempre se passando. Não
é para sedentários. É pra ler viajando, ainda que sem sair do lugar. Um
livro que jamais apetecerá velhas Guermantes.
Erra feio quem, por desconhecimento ou ódio, atribui a
Deleuze-Guattari a aura do pós-modernismo radical chic. Esta espécie de
anemia que conjuga bem com o liberalismo fim-de-século,
“antitotalitário”, antimilitante e multicultural. Nada menos justo. O
livro não prega o respeito às diferenças, mas a agressividade como
constitutiva delas. Não propõe vias ecléticas ou conciliadoras, mas a
revolução. Nada aquém do que a desordem de uma revolução. Em nenhum
momento, se pretende tolerante: o livro ofende sem parar o próximo e
confessa o amor pelo distante. E sem deixar que se aproxime muito, pois a
relação à distância mesma é que produz. Está atravessado por uma
leitura intensiva e ao mesmo tempo distanciada de Marx e Freud, mas
também Nietzsche, Spinoza, Kant, Artaud, para citar alguns. Possui uma
teoria do estado, uma teoria da moeda, uma teoria do poder constituinte,
uma psiquiatria materialista, uma filosofia da imanência, o projeto da
esquizoanálise, e muito mais.
O maior protagonista do Anti-Édipo é o desejo. Sem estragar o
conceito com antropocentrismos. O humano não deseja propriamente
falando, como se fosse o sujeito do desejo. O desejo é que acontece
nele, e o faz ser o que ele é — ou não. O desejo em mim é o mesmo desejo
no lobo, na samambaia, nas rochas, na Lua, numa poesia de Pessoa ou
numa canção de rock. O desejo ativa forças impessoais, não-figurativas,
não-simbólicas, forças conspiratórias do Ser. Ele gera o real. Toda a
realidade se cria no desejo e pelo desejo, num movimento para dentro e
para fora, que se diferencia inclusive em si mesmo, uma vastidão
intensiva. Por sermos tocados pelo desejo, sempre há algo em nós que nos
convoca para além do que somos. O desejo nos chama de um nome estranho e
nós respondemos — outros. Ele é primeiro e doa (ou rouba) tudo, sem
contrapartida nem equivalência. Por isso, nenhuma pessoa, nenhuma coisa,
nada basta em si próprio. Sempre se pode ativar um excedente, uma carga
delirante que desborda e embaralha. Aqui, nenhum vitalismo à vista: tem
desejo de vida e tem desejo de morte. Do contrário, as pessoas nunca se
suicidariam.
O desejo está em tudo e tudo está nele. Tudo se cria, respira, numa
variação contínua. O desejo pulsa no interior das coisas, das relações,
dos afetos, das impressões, do que existe e pode existir. Uma metonímia
infinita, um continuum de matéria e espírito, a contiguidade última. Daí
a coextensividade de que nos falam os autores, entre homem e natureza,
entre cultura e universo, que os fluxos desejantes percorrem sem
distinção real. Isto não significa que homem e natureza se unam nalguma
pasta cósmica e indiferenciada. Mas, sim, que cultura e meio ambiente se
dobram e redobram entre si, uma essência natural do homem, uma essência
humana da natureza. A natureza funciona como processo de produção,
enquanto a humanidade é soprada de todas as formas, figuras e máscaras
do universo. Um pan-desejo essencialmente revolucionário, só por querer
como, com efeito, ele quer: infinitamente.
Mas sucede também o desejo por fascismo. Isto é real. As pessoas não
foram enganadas para apoiar ditaduras. Elas quiseram. E muitas pessoas
efetivamente desejaram e desejam a mão que bate, explora, que faz sofrer
o outro. O problema é menos de falsa consciência do que explicar porque
a servidão voluntária pode acontecer. Portanto, não é questão de
denunciar ideologias, mas compreender a materialidade do funcionamento
do próprio desejo. Como podemos realmente desejar aquilo que nos reduz a
potência de agir e existir? A pergunta de Deleuze-Guattari não é
simplesmente por que, em face do intolerável, algumas pessoas se
revoltam? Mas, por que não se revoltam todas o tempo todo? Eis um
materialismo à altura de Marx. Embora o desejo seja infinito movimento e
não tenha finalidade intrínseca, existem maneiras de recalcá-lo.
Bloquear a sua potência revolucionária, usá-lo para oprimir e submeter.
Toda uma maquinaria histórico-política, com suas forças de reprodução e
repressão sociais, para esclerosar os fluxos produtivos, fazê-los voltar
contra si mesmos, como na vontade de poder, do dinheiro, de ser amado,
em toda essa abjeção de servo. No fascismo, apaixonamo-nos não só pelo
poder, mas pelo poder em nosso eu-querido, nossa vaidade de pertencer
àlguma raça de senhores.
Nesse sentido, Deleuze-Guattari se propõe a realizar uma crítica da
economia política do desejo. Para isso, como o melhor Marx, o Marx dos Grundrisse,
eles desbravam a formação do capitalismo. Três máquinas sociais,
apropriadoras das forças desejantes, são descritas no capítulo 3. A
máquina primitiva dos selvagens, a máquina despótica dos bárbaros e a
máquina capitalista dos civilizados. A tarefa consiste em compreender
como, na materialidade, operam essas maquinarias. Por meio de qual
regime de funcionamento o desejo acaba sendo conduzido à servidão
voluntária, como são organizados o social e o desejo? Com
fôlego de maratonista, o capítulo aborda como o capitalismo — esse
Inominável — pôde ter ocorrido, a partir das formas pré-capitalistas, na
contingência dos encontros e acasos que nos levaram até ele. Mas também
almeja encontrar, dentro e contra a máquina capitalista, as faíscas no vento, as faíscas que anseiam pelo barril de pólvora.
Segundo o Anti-Édipo, onde está a alteridade radical ao capitalismo?
Pode-se tomar a (enorme) liberdade de trocar a
palavra”‘esquizofrenia”, presente desde o subtítulo, por “comunismo”.
Também com Marx, o comunismo de Deleuze-Guattari, isto é, a
esquizofrenia como libertação absoluta do desejo, aparece quando o
capitalismo não consegue mais impor e interiorizar os limites com que
governa. A esquizofrenia é o limite derradeiro, o bólide com velocidade
de escape da órbita do capital. Os fluxos esquizos a todo momento se
modificam em intensidade, contornam os limites, se redefinem e se
recriam, processo que os autores chamam de
“desterritorialização-reterritorialização”. A esquizofrenia é o modo de
funcionamento do nômade. Em vez de uma deriva perpétua, o nômade migra
de acampamento em acampamento, sempre mais ali, onde o poder ainda não
está à espreita, onde ele não pode ser totalmente explorado e
classificado. E não há no nômade nenhum Holandês Voador, a vagar pelos
mares até o fim dos tempos. O comunista precisa da terra e do sentido da
terra. A desterritorialização sem reterritorialização acaba produzindo o
esquizofrênico hospitalizado, uma produção do capitalismo que impede a
materialidade do comunismo.
Como Marx, Deleuze e Guattari apontam no capitalismo uma contradição
fundamental. Por um lado, o capital precisa fomentar a produção
desejante, necessita do trabalho vivo, da produtividade geral do mundo,
para continuar canalizando riqueza. Afinal, sem vampirizar a potência
das pessoas, o capital — trabalho morto que é — resta improdutivo. Por
outro lado, o capital não pode perder o controle das potências que
explora, as mesmas que precisou fortalecer em primeiro lugar. É preciso
governar o que se quer ingovernável, o desejo que quer sempre mais. É
preciso inscrever os agentes de produção e as forças produtivas na
maquinaria do capital, que então se atribui o mérito pela (limitada)
produção de riqueza. Daí que a classe capitalista não pode deixar de
impor limites, estabelecer medidas e métricas, regular os fluxos
selvagens, conter o dilúvio de quereres. Esses limites podem ser tanto
da ordem externa (a polícia, as leis, a propriedade, a burocracia),
quanto interna (as identidades, a culpa, a interiorização da dívida). E
não se acredite o capitalismo vá sucumbir às próprias contradições, como
se houvesse um fim da história. Isso seria hegelianismo de esquerda.
Nunca ninguém morreu de contradição. Pelo contrário, a máquina
capitalista aprendeu a perseverar na crise, mediante um estado-crise que
habitualmente se alimenta das contradições que provoca, das angústias e
medos que suscita, das fomes e desastres que deixa acontecer.
No Anti-Édipo, não existe nenhuma proposta de contenção da
produção, da circulação, do consumo. É o inverso: não há consumo
suficiente! O mal do capitalismo não está em produzir demais, mas na antiprodução que
dissemina. O capital é quem forja a escassez e a divisão do trabalho. O
modo capitalista frustra o compartilhamento generalizado de tudo,
negando a superabundância. O momento revolucionário está em extrapolar
as contenções, em elevar a potência de existir até o ponto em que ela
não possa mais ser axiomatizada e expropriada. Não se trata de sair do
mercado mundial, de aspirar a um “fora” utópico da ordem capitalista,
mas acelerar o processo. O capitalismo se conserva graças a uma
infernal econometria de dívidas e cobranças, em que todos devemos mais
do que podemos pagar. Ele pode ser tornado sempre mais insustentável.
Esse comunismo desarranjado vive quando se desmontam os axiomas do
mercado e do estado, do indivíduo e do coletivo, — tudo isso que
recalca, confina, acumula, reproduz. O comunismo vive quando se rompe o
que permite medir as coisas e as pessoas por seus valores, sob o
critério da equivalência geral, quantificante e abstrata. Quando a
máquina não suporta mais. Como um aneurisma, um mau funcionamento
localizado, um excesso de todo inesperado, capaz de sobrecarregar o
complexo sistema de fluxos e extração de fluxos e vazar o sangue dos
poros. A revolução acontece quando os diques se rompem. Só o desejo,
pensado e agido, pode orientar-nos nesse dilúvio.
De fato, é um livro marxista, militante e revolucionário.
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Fonte: http://ponto.outraspalavras.net/2012/06/21/anti-edipo/
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