Vencedora do Prêmio Nobel de Literatura fala sobre a experiência dos pais na II Guerra, tema de seu recente “Tudo o que Tenho Levo Comigo"
O pastoreio de vacas era uma das tarefas das quais Herta Müller, na infância numa pequena aldeia de língua alemã na Romênia, nos limites da Transilvânia, estava incumbida. Nas pastagens, com pouco para fazer, ela se divertia dando nomes e atribuindo personalidades às flores que colhia e às nuvens no céu, imaginando um futuro como costureira, profissão de sua tia, ou como cabeleireira.
E quanto a ter uma carreira como escritora, ainda mais a de uma ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura? Ela não teria como imaginar uma coisa dessas, vivendo, como vivia, em isolamento linguístico e sob vigilância, como parte de uma suspeita minoria alemã sob a monótona ditadura comunista que veio a ser governada pelo megalomaníaco Nicolae Ceausescu.
Mas, no fim, essa foi justamente a atmosfera claustrofóbica que forneceu material para romances como O Compromisso e A Terra de Ameixas Verdes. Quando ganhou o Nobel, em 2009, o júri exaltou Herta como uma escritora “que, com a concentração da poesia e a franqueza da prosa, retrata a paisagem dos despossuídos”.
– Eu nunca quis ser escritora – disse Herta, em uma entrevista concedida em Nova York, em maio, quando participou do festival literário PEN Vozes do Mundo. – Não tínhamos livros em casa.
Quando adolescente, porém, ela foi mandada para Timisoara, a cidade mais próxima, para cursar o Ensino Médio.
– Tudo o que eu lia ficava sob a minha pele. Eu praticamente devorava a literatura, que se tornou um caminho para a descoberta. E foi assim que ela permaneceu em mim. Sempre quis saber como se deve viver. Escrevo para dar testemunho da vida – afirmou, a respeito daquela época.
A exposição a essas novas ideias fez com que Herta se tornasse uma não conformista e, finalmente, uma dissidente, demitida do emprego por se recusar a cooperar com o Estado. Ela começou a escrever quando era universitária e publicou, junto a um grupo de amigos, um trabalho literário não autorizado e declarações em favor da liberdade de expressão.
Valentina Glajar, uma estudiosa romena que leciona na Universidade Estadual do Texas, foi tradutora de Viajando sobre uma Perna, um dos primeiros livros de Herta. Ela também analisou parte do dossiê secreto da polícia sobre Herta, que deixou de ser confidencial após o colapso do comunismo, em 1989, dois anos após a escritora migrar para a Alemanha Ocidental e dar início ao desconfortável processo de tentar encontrar seu lugar na nova configuração. Glajar se assustou com o que viu.
– O que mais me impressionou foi como ela expressou artisticamente, em seus escritos, muitos dos fatos arquivados no dossiê – conta Glajar. – Muito do que está neles é verdade. E, como todo mundo, fiquei surpresa pela forma como muitas das pessoas que a cercavam deram informações sobre ela: os vizinhos, o diretor de um teatro de Timisoara, o professor de uma das escolas onde ela deu aulas para o jardim de infância, que era alguém que ela considerava um amigo.
Herta, intensa e etérea, lançou há pouco um novo romance em língua inglesa. The Hunger Angel, que no Brasil saiu ainda no ano passado, pela Companhia das Letras, como Tudo o que Tenho Levo Comigo, marca um distanciamento de sua obra pregressa. Embora seja semelhante no tema, o livro transcende a experiência de Herta e foca no trauma sofrido pela geração de seus pais: a deportação de milhares de romenos de etnia alemã, estabelecidos há muito na região onde viviam, para campos de trabalhos forçados na União Soviética, ao final da II Guerra Mundial.
Esse episódio sempre pairou sobre a família de Herta quando ela era criança, contou a escritora, que nasceu em 1953. Quando sua mãe, que passara cinco anos no Gulag, “penteava o meu cabelo, contava-me como sua cabeça havia sido raspada, e sem me dizer que havia aprendido isso no campo, mostrou-me como descascar uma batata de modo que a casca ficasse fina, e não houvesse desperdício”.
Além disso, há a questão desse “nome horroroso, Herta”, acrescenta ela, falando em alemão com a ajuda de um intérprete.
– Me chamo Herta porque uma das amigas de minha mãe no campo se chamava Herta, e ela morreu. Minha mãe havia prometido que, se tivesse uma filha, ela teria o nome dessa amiga. Eu soube disso não pela minha mãe, mas pela minha avó, quando eu ainda era muito pequena. Não sabia o que era um campo naquela época, mas estava rodeada de coisas que tinham a ver com o campo.
As dimensões morais da situação ficaram ainda mais complicadas com o serviço do pai de Herta na SS nazista.
– Meu pai estava do lado dos assassinos e minha mãe teve que pagar por isso – diz. – O fato de que eu estava do lado dos assassinos, e de que todos ainda estavam cantando essas canções nazistas na aldeia, foi um dilema muito grande para mim. Isso realmente me deixou arrasada.
Tudo o que Tenho Levo Comigo começou como uma colaboração com Oskar Pastior, um poeta romeno de ascendência alemã que migrou para o Ocidente em 1968. Ele levou Herta para ver o campo onde passou quatro anos quando jovem, e quando morreu de ataque cardíaco, em 2006, ela decidiu continuar o romance por conta própria, em parte como homenagem a ele. Em 2010, depois do livro ser publicado em alemão (Atemschaukel, ou “Ritmo Respiratório”, em tradução literal), Herta soube que Pastior tinha sido informante da Securitate, a polícia secreta romena. Só quatro de seus relatos haviam sido encontrados, contou ela, e eles pareciam ter sido escritos em um estilo opaco, pro forma, com propósito informativo. Ela, porém, ficou abalada e triste com a confirmação na vida real das traições e maquinações retratadas por ela nos romances:
– Ele e eu nos tornamos muito próximos, e eu não podia imaginar que ele tivesse realmente trabalhado dessa forma.
Mas, depois de refletir, ela decidiu que precisava levar em conta determinadas circunstâncias atenuantes:
– Na década de 1950, quem se recusasse pegaria 20 anos. Imagine quem saía dos campos, então. Com certeza não ia querer voltar para a cadeia por mais 20 anos. Aquilo era uma chantagem absurda. Se eu soubesse disso antes de ele morrer, provavelmente teria me afastado dele e abandonado esse projeto. Mas quão terrível teria sido, para além de tudo que ele passou, se eu também tivesse feito isso?
Como os contos de Herta são extremamente arrebatadores, muitas vezes de forma aterrorizante, kafkiana, é fácil não prestar atenção na qualidade de sua prosa. Mas a romancista Claire Messud, que se lembra do desafio de ter tido que traduzir uma passagem de Herta enquanto estudava alemão, observa a sua “capacidade transformadora de escolher histórias e torná-las algo maior que elas mesmas”.
A bibliografia de Herta “parece compor movimentos de uma sinfonia, até esse novo livro”, acrescenta Messud. Ela foi moderadora de um painel com Herta durante o festival PEN.
– Mas a escrita dela é muito intensa e concreta, como se a vontade que ela tem de viver estivesse presente na sua prosa – diz Messud. – Não é possível descrever seus livros como alegres, mas eles não deixam de ser exuberantes, pois estão cheios de vida, uma vida que vem do uso da linguagem e da observação dos detalhes.
Herta, porém, tem relação peculiar com a língua alemã e a Alemanha. Mesmo após ter vivido no país por 25 anos, ela continua a ser, de certa forma, uma estranha, em parte por causa do sotaque – “Falo uma espécie de língua de Habsburgo”, diz – e pontos de vista, mas também por causa de seu estilo incomum e vocabulário, cheio de palavras-valise inventadas.
– Ela às vezes escreve sobre coisas para as quais não existem palavras – diz Philip Boehm, seu principal tradutor para o inglês. – Tem uma maneira curiosa de nomear o mundo, e boa parte de sua prosa é construída por colisões entre palavras e frases que podem parecer, de certo modo, não se encaixar. Mas é como acontece com certas substâncias químicas ou estruturas moleculares que se ligam de diferentes formas, e quando o vínculo se dissolve, grande quantidade de energia é liberada.
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LARRY ROHTER | The New York Times
Fonte: ZH on line, 23/06/2012
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