Alexandre Pilati*
Ullysses completa 90 anos. E se nos atrevêssemos a enxergá-lo como revelação do capitalismo dentro de nós?
Nos meios literários, junho é tradicionalmente um mês dedicado a reflexões sobre o Ulysses, romance revolucionário de James Joyce (1842-1941). No dia 16 deste mês, comemora-se o Bloom’s Day, pois esta é a data em que se passa a ação do livro do autor irlandês. Em 2012, o “Dia de Bloom” é ainda mais especial, pois nos encontramos a noventa anos da publicação da obra. Além disso, o recente lançamento do filme Notícias da antiguidade ideológica
(Versátil Home Video, 2011), de Alexander Kluge provoca a reflexão
sobre a dinâmica de forças estéticas/filosóficas/históricas que envolvem
os nomes de Marx, Joyce, Kluge e Eisenstein.
Nestes 90 anos, o Ulysses
foi pródigo em espalhar mundo afora fascínio e polêmica. Como monumento
incontornável da moderna literatura ocidental, o romance do autor
irlandês não para de seduzir críticos, ao mesmo tempo que se conserva à
prova de qualquer leitura que seja capaz de aludir à totalidade de sua
eficácia estética. Como sempre ocorre em grandes obras, qualquer leitura
do textoparece
ser bem menor do que o próprio texto; mas isso, no seu caso específico,
adquire uma consistência ainda mais lancinante. Se já é um tormento
para os críticos do livro tentar acercá-lo e compreendê-lo, imaginemos o
tamanho da tarefa de inverter um pouco a ordem natural da coisas e usar
o Ulysses como método de compreensão de um construto crítico-teórico como O Capital, de Karl Marx (1818-1883).
O
primeiro a se propor esse desafio foi o cineasta russo Sergej
Eisenstein (1898-1948), que alimentou a ideia por fim malograda de
filmar OCapital a partir do método estético empregado por James Joyce em Ulysses. Joyce ansiava por conhecer Eisenstein, porque julgava que ele seria o único cineasta capaz de filmar o Ulysses. Por outro lado, o cineasta russo procurara Joyce porque julgava que O Capital poderia tornar-se filme estruturando-se de modo similar ao Ulysses, graças à concentração nos movimentos triviais de um homem comum em apenas um dia de sua vida.
No filme Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital
(Versátil, 2011), o escritor e cineasta alemão Alexander Kluge retoma o
projeto de Eisenstein de maneira a potencializar alguns elementos de
leitura do mundo contemporâneo bastante explorados tanto por Marx quanto
por Joyce e o cineasta russo. É precisamente a partir do projeto
não-realizado de Eisenstein, de filmar O Capital a partir do Ulysses,
que nascem as nove longas horas do filme de Kluge. O cineasta alemão
tem uma perspectiva interessante para a observação do pensamento de
Marx, que está apresentada logo no início do texto do encarte que
acompanha os DVDs:
“- O Sr. Considera Karl Marx um poeta?
- Um poeta talentoso.
- Ele se senta
na mais imponente biblioteca de Londres, faz excertos de historiografia e
compõe uma história em forma de poesia em torno desses núcleos de
fantasia?
- Assim surge o enfoque mais amplo de sua teoria.
- O sr. não estaria sendo injusto ao degradar esse materialista científico à condição de poeta?”
A
partir desse texto de Kluge, lançamos uma hipótese para a verificação
das forças interpretativas que se intercambiam em nosso quadrilátero de
pensadores/artistas: tendo em vista a proposta de Kluge, não apenas o Ulysses pode ser usado como mediação ficcional para ler O Capital, mas também O Capital pode ser a mediação teórica necessária para conectar as experiências formais de Joyce em Ulysses com
a totalidade histórica de onde emanam tanto formas literárias quanto
contradições objetivas formadoras da subjetividade sob a égide do
capitalismo. O ponto de apoio para essa análise é o movimento dialético
entre subjetividade e objetividade (afinal, não é esta a grande matéria
dos poetas?!), ou, como afirma Kluge no texto do encarte que acompanha o
conjunto de DVDs, a “longa marcha do mundo exterior para o interior do
homem”. Essa longa marcha estava entre as mais fundas aspirações de
Eisenstein na pesquisa que engendra o conjunto de técnicas que
caracterizava o seu método fílmico. Ademais, a dialética entre
objetividade/subjetividade pode ser rastreada em todos os volumes de O Capital –
de modo especial no primeiro, que trata mais especificamente da lógica
da mercadoria e do seu alcance na organização social (coletiva) e
psíquica (individual) do mundo capitalista. Mais que tudo isso, esta
dialética interno/externo é uma chave para a leitura e a compreensão do
imenso filme de Alexander Kluge, pois o cineasta alemão está claramente
atento a ela. Lembremos a famosa passagem do Ulysses em que se contrasta a história com um pesadelo: “A história – disse Stephen – é um pesadelo de que tento despertar.”i
História
e poesia irmanam-se dialeticamente pela sua consistência de pesadelo e
utopia. Dizendo mais: uma consistência de pesadelo que deriva
precisamente do fato se ser uma forma consciente da necessidade da
perspectiva da negatividade. Nesses termos, se a história (ou sua
metanarrativa) é um pesadelo, a poesia é um jeito peculiar de acordar
dele; por outro lado, a poesia também é um pesadelo, de que podemos
acordar pela história. Unidas dialeticamente, história e poesia, tecem
aos olhos do leitor atento um novo horizonte, ressignificando de uma vez
por todas a palavra utopia. Assim, não haverá utopia sem o consórcio da
poesia como interpretação do mundo e da história como narrativa de
autoconsciência do homem relativamente ao seu lugar na luta de classes.
Quando refletimos sobre esta relação história/poesia, estamos, nada mais
nada menos, que operando intelectualmente, como Kluge e Joyce e Marx e
Eisenstein entre o externo e o interno. Estamos nos acercando do
dinamismo do próprio mundo. Um dinamismo que para Eisenstein é a própria
força estruturante da forma dramática do filme.
Joyce
tem, como poucos em seu tempo, uma consciência catastrófica
relativamente ao avanço modernizador; algo que se exibe em seus textosii. Não são poucos os momentos em que o Ulysses nos
apresenta uma perspectiva duramente embebida em negatividade, ao
descrever os movimentos triviais do mundo, os quais sem esforço podemos
utilizar na composição de uma complexa mirada acerca da totalidade
capitalista.
Mas pode Joyce ser historiador no Ulysses assim como Marx foi poeta no Capital? Sob certa perspectiva, poderíamos afirmar que sim; e poderíamos afirmar mais: essa consistência de revelação da história no Ulysses
é um dos elementos-chave da sua atualidade. O que talvez tenha
contribuído para instigar Kluge à tarefa de reler os textos de Marx não
tanto com a intenção de “descrição da economia exterior e de suas
‘leis’, senão sobretudo o capitalismo dentro de nós.” Essas contradições podem nos dar um mapa para a inteligibilidade da crise do capitalismo no início do século XXI.
Vejamos, por exemplo, a partir de um excerto do Ulysses,
a problemática do entesouramento, que, conforme descrita por Marx, tem
impactos no mundo objetivo e na consciência do homem ocidental. O
entesouramento é um dos aspectos básicos, não é demais lembrar, para
compreendermos as razões do desencadeamento da crise financeira de 1929,
por exemplo; e para o clima de abalos e contradições da modernização a
que o Ulysses de alguma forma dá visibilidade.
No
capítulo “O catecismo”, vemos a agudização dessa reificação irrestrita
na descrição crua do que é a vida humana, perdida no fundo das gavetas.
Não são apenas as coisas recônditas; mas o que somos nós dentro das
gavetas. Vejamos o parágrafo por inteiro:
“O que continha a segunda gaveta?
Documentos: a
certidão de nascimento de Leopold Paula Bloom: uma apólice de seguro de
£500 na Sociedade de Seguros das Viúvas Escocesas em nome de Millicent
(Milly) Bloom, resgatável aos 25 anos de idade com uma apólice nominal
de £430, £462-10-0 e £500 aos 60 anos ou morte, 65 anos ou morte e
morte, respectivamente, ou com apólice nominal (à vista) de £299-10-0
junto com pagamento em dinheiro de £133-10-0, opcionalmente: uma
carteira bancária para o semestre terminaria em 31 de dezembro de 1903,
saldo em favor do correntista: £18-46-6 (dezoito libras, catorze xelins e
seis pence, esterlinos), bens líquidos: certificado de posse de £900,
títulos a 4% (autenticados) do governo canadense (livres de taxação):
extrato de ata do Comitê do Cemitérios (Glasnevin), referente a uma
sepultura adquirida: um recorte da imprensa local a propósito de uma
mudança de nome por processo cível.”iii
Atentemos neste trecho do Ulysses
para a forma como a linguagem se dobra à instrumentalização da lógica
do dinheiro para dar a ver precisamente as contradições de seu alcance
avassalador. Num parágrafo que principia falando de nascimento e termina
falando de morte, temos a hipoteca de toda uma existência à especulação
financeira. São títulos, bens, seguros, ações. Valores que tilintam,
ainda que sem a forma de ouro ou de moeda. Trata-se uma belíssima
metáfora do conceito marxista de entesouramento. “O que sou é o
dinheiro; a vida minha é meu acúmulo”: é o que parece nos dizer uma alma
fantasmagórica de dentro da gaveta.
Marx
dizia que o dinheiro deve, no capitalismo, possuir a consistência
elástica e fantasmagórica de uma matéria capaz de expandir-se e
contrair-se. Não nos esqueçamos de que a vida cabe numa gaveta e que
Marx diz assim em O Capital:
“Para reter o ouro como dinheiro e, portanto, como elemento de
entesouramento, é necessário impedi-lo de circular ou de dissolver-se
como meio de compra, em artigos de consumo. O entesourador sacrifica,
por isso, ao fetiche do ouro os seus prazeres da carne. Abraça com
seriedade o evangelho da abstenção.”iv
Para
sobreviver, o dinheiro no capitalismo depende de que o entesouramento
não seja excepcional, mas sim sistêmico, trivial. O homem comum cumpre o
entesouramento, no fundo da gaveta mais comum. A disposição reveladora
de Joyce está em desejar articular tudo isso aos movimentos orgânicos do
personagem, mostrando que o entesourar é tornar-se homem comum, homem
médio, pedestre. Um homem como Bloom é um entesourador comum: sem o
“defeito” excepcional da avareza, mas com a virtude trivial da
“precaução”. Trata-se de alguém que incorpora a mercadoria ao próprio
existir, com isso garantindo os fluxos de expansão e retração
necessários à manutenção da lógica do dinheiro no capitalismo. A força
da narrativa de Joyce está em revelar o dado sistêmico, global e total
do comum. Não é a excepcionalidade que revela a totalidade, mas a forma
despercebida e às vezes dispersa com que o cotidiano anuncia as forças
da dinâmica histórica global. O método – concentrar-se nas minúcias
aparentemente mais insignificantes – tornou possível um dos relatos da
vida cotidiana mais completos já apresentados por um romancista.
Lendo
Marx a partir da literatura, como fez Kluge (e como aqui ensaiamos)
colocamo-nos diante de algumas das mais instigantes formas de questionar
os mitos pós-modernos de que a história acabou e de que o único
horizonte possível é a não-superação (ou no máximo domesticação) do
capitalismo. A dinâmica de forças que está por trás do quadrilátero
Marx-Kluge-Joyce-Eisenstein inclui certamente a ideia de que as
contradições da práxis ainda podem ser captadas pela literatura, pela
crítica ou pelo cinema. Ativar essas contradições já uma boa
justificativa para a tarefa monumental de ler Ulysses através do Capital e de ler O Capital através do Ulysses.
Se essas contradições ainda podem ser ativadas, a história em seu
dinamismo peculiar permanece e nos persegue: como um pesadelo, ou como a
utopia.
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* Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. Autor, entre outros, de A nação drummondiana (7letras, 2009).
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