Carlos Guilherme Mota*
Arquivo AE
Maluf, então prefeito, vistoria obras na Av. Dr. Arnaldo, em 1969
Oposição de Erundina à aproximação Lula-Maluf reforça tese de que neste país o ‘novo’ nunca foi novo
Mal começado, o século 21 trouxe uma surpresa histórica: Lula se
aliou a Maluf. O arco se fecha, e queima-se um bom candidato à condução
da megacidade de São Paulo, capital financeira e cultural do País. Era
só o que faltava para a caracterização completa dessa "república de
coalizões" estapafúrdias, com seu futuro redesenhado nessa semana a
partir da maior metrópole do País. Hoje, que significa mesmo ser
republicano?
Encerra-se um ciclo histórico, deixando para trás as esperanças de
efetiva e sólida renovação político-social por conta do líder operário
que nos anos 1970 pusera paletó e gravata para encontrar-se, a pedido,
com o chanceler alemão Helmut Schmidt no hotel Hilton, centro de São
Paulo, e explicar-lhe a nova era e o novo sindicalismo, o que impactou o
sistema civil-militar de então. O mesmo bravo líder que enfrentou a
ditadura a partir da "república do ABC"; o paciencioso torneiro que
disputou – até ganhar! – eleições presidenciais contra forças de
herdeiros da ditadura, da mídia e do capital financeiro e, vencedor,
encarnou a vanguarda das lutas sociais na América Latina; esse líder não
conseguiu fugir ao modelo autocrático-burguês. Pena.
Qual a lógica da política na terra bandeirante? Será possível
fazer-se uma análise crítica das forças políticas que comandam a cidade
desde, digamos, os tempos da ditadura e dos prefeitos biônicos até hoje?
De que maneira os grupos econômico-financeiros, empreiteiras e
respectivas forças políticas se revezaram na briga pelo poder? E o que
tudo isso tem a ver com o modelo caótico de cidade que temos hoje? Não
parece haver dúvidas sobre a importância da disputa municipal deste ano
nas futuras eleições presidencial e estadual, sobretudo quando se
recorda que o PT, como o antigo PTB e o atual PDT, sempre tiveram
dificuldades eleitorais neste Estado e nesta anticidade. Desafio para
todos, inclusive para a presidente Dilma, que vai melhorando em sua
caminhada, sobretudo quando guarda alguma distância dessa sombra que não
quer calar.
A galeria dos ex-prefeitos paulistanos ostenta de tudo, em termos
humanos e de interesses do capital. Nossa urbe, marcada pela preocupação
com o bem comum (o "ben comun", como se lê nas Atas da Câmara já no
século 16) e os interesses da coletividade, teve fortes lideranças,
desde o Morgado de Mateus (1765–1775) até o verdadeiro estadista que foi
Prestes Maia, já no século 20, estudado pelos eruditos Benedicto Lima
de Toledo e Candido Malta Campos, este em sua obra fundamental Rumos da
Cidade. Ao revisitarmos a galeria dos ex-prefeitos, sem preocupação de
arrolamento, nota-se que alguns são destacáveis (Faria Lima, Olavo
Setúbal, Mário Covas, Luiza Erundina, Marta Suplicy, José Serra), outros
"esquecíveis" (Jânio Quadros, Adhemar de Barros, Celso Pitta, Paulo
Maluf). Mas convidemos o (e)leitor a avaliar o que cada um/uma
representou ou ainda representa.
Na atualidade política, dizem os incautos ou muito espertos que
direita e esquerda são definições que já não têm sentido. Carentes de
leitura de livros, revistas e do mundo contemporâneo, lhes bastaria
constatar as diferenças na França entre os projetos de um François
Hollande e uma Marine Le Pen, ou no Brasil, entre os de Covas e Pitta,
ou entre os de Maluf e (digamos) Lula.
O problema é que, de tempos em tempos, a capital paulista gera
quasímodos políticos como Paulo Salim Maluf, um dos pilares da ditadura
de 1964. O ex-governador, ex-candidato à Presidência da República e
ex-prefeito de São Paulo (as ossadas de Perus não permitem esquecê-lo),
nessa aproximação com o ex-presidente Lula com vistas à eleição
municipal para escolha do novo prefeito da maior cidade da América
Latina, obriga o cidadão minimamente ético e atento à História e a nossa
vida política e social a se perguntar se não estamos vivendo mais uma
ficção de mau gosto. Nesta agora cidade-pânico, penso no cidadão ativo
que se recusa a ser alvo daquela frase ácida de Raymundo Faoro, quando
dizia que "o Brasil é um país de otários", uma sentença dura do
girondino radical, mas que se atualiza cada manhã ao tomarmos
conhecimento do noticiário nacional, ou tentarmos entrar em um metrô
(digamos, a Linha Vermelha, de Itaquera à Barra Funda), ou simplesmente
atravessar a rua na faixa de pedestres. O problema é que o girondino
gaúcho não logrou ensinar a radicalidade responsável ao seu amigo
pernambucano, que deveria ser adotada como estratégia e referência em
face dos "donos do poder". Ou seja, do patronato político brasileiro,
incluídos os últimos lamentáveis ministros das Cidades, no ministério
hoje nas mãos do PP de Maluf. Pobres cidades brasileiras…
Neste país de amnésicos, vale recordar o velho Marx, pois do PT, um
partido de esquerda, poderíamos esperar tudo, menos a aliança
Lula-Maluf. Marx dizia que, ao longo da história há fenômenos que podem
se repetir: na primeira vez, ocorrem como tragédia; na segunda, como
farsa. Historicamente, na prática, Paulo Maluf contradiz Marx, pois a
primeira vez que ocupou posto público foi farsa, a segunda também, a
terceira idem, e assim sucessivamente, até essa semana de sucesso… Mas
Marx nunca foi bem lido por eles, ou talvez nem sequer lido, e muito
menos pensado, sobretudo em suas páginas incômodas sobre os lumpesinatos
– de onde provêm a massa dos eleitores de Maluf – que, despidos de
ideologia ou filosofia, topam qualquer parada e constituem um freio para
o avanço da História.
Como explicar o que aconteceu essa semana em São Paulo, senão pela
confluência, para fins eleiçoeiros, de duas lideranças populistas para
puxar as massas de seus respectivos eleitores? De uma parte, as gentes
de Maluf, liderança que mobiliza moradores da periferia – muito menos do
que se imagina, talvez Marta mobilizasse mais –, mas também segmentos
da pequena burguesia, o curral decrescente e disperso de desavisados,
"despossuídos" e politicamente deseducados. E, de outra parte, os
eleitores de Lula e do PT, que, apesar das crescentes defecções, compõem
o contingente daqueles que creem que seu carismático líder,
historicamente importante, ainda representaria a possibilidade de
superação, via reforma, do capitalismo selvagem e da redenção dos
trabalhadores. Ou seja, da fração da classe operária que subiu ao
paraíso, como espera subir a fração mais abaixo, que aguarda sua vez (e a
inadimplência) na antessala das agências de automóveis.
Enfim, uma obra de antiarte política, o encontro Maluf-Lula, que nem a
burguesia mais esclarecida e empenhada poderia imaginar, muito menos
arquitetar um símile competidor em suas hostes. O resultado,
convenhamos, é a massificação bruta de nosso capitalismo periférico, em
que tudo vale nada. E que acelera o processo de deseducação cívica e
política dos jovens, o desencanto dos maduros e a descrença dos
democratas nos valores do socialismo reformista. Nesse processo,
desceram pelo ralo o contrato social, as lutas de classes ("apagadas"
justamente no período dos governos Lula), da cidadania pura e dura, das
visões progressistas de mundo e de política. Enfim, dos valores
humanistas. Recorde-se que Chico de Oliveira, um dos ex-fundadores do
PT, já concluíra em 2006 que "o papel transformador do PT se esgotou"
(Folha de S. Paulo, 24-7-2006, p. A-12). Naquele mesmo ano, o
conservador liberal Claudio Lembo sentenciava: "Lula não tem tendência a
ditador. É um operário do chão de fábrica. Conhece a vida de verdade. É
um pequeno burguês, apenas isso" (Folha de S. Paulo, 31-12-2006). Após o
levante do PCC em 15 de maio daquele ano, em que a sociedade civil
paulistana se acoelhou, a "paz" voltava a reinar na capital do capital
no Brasil…
A recusa da ex-prefeita Luiza Erundina em participar dessa
aproximação com Maluf vem reforçar a tese de que, neste país velho e
periférico, o "novo" não é novo, e nunca foi. Rapidamente, o
supostamente novo ficou velho, correndo de costas em direção ao passado,
como se vê na foto histórica, com o candidato Fernando Haddad sem graça
entre dois Poderosos Chefões, foto antes inimaginável. A combativa
ex-prefeita Erundina, com sua recusa em participar do jogo, demonstra
que o pragmatismo rasteiro não pode passar por cima de valores éticos,
na política como na vida. Convidado em seguida para o posto, Pedro
Dallari optou por trilhar o mesmo caminho da ex-prefeita.
O fato é que a socialista paraibano-paulistana criou um forte lema
para a nova sociedade civil brasileira: "Não aceito". E pôs em alerta
seu próprio partido, que vem crescendo e conquistando papel importante
no cenário nacional. Que ele só terá a ganhar com tal recusa, o tempo
dirá. As lideranças burguesas nacionais e as dos trabalhadores,
sobretudo aquelas pessoas cidadãs preocupadas com o ethos, a
transparência e o mores positivo em política e na formação de um Brasil
democrático, republicano e moderno, têm agora uma possibilidade de
interlocução com gente de respeito. Quanto ao PT, terá que rever o lugar
da ex-prefeita Marta Suplicy no quadro local e nacional; e o PSB de
Eduardo Campos, de reavaliar o valor da ex-prefeita Luiza Erundina. Do
mesmo modo, os outros partidos, sobretudo o PMDB, que não podem
continuar a ter esse papel de vala comum dos descorados camaleões.
Na metrópole paulistana, testemunha-se nos dias atuais o fim da
História. Mais precisamente, de uma certa e bela História, que alimentou
as expectativas e siderou corações e mentes (lembram-se dessa
expressão?) de três ou quatro gerações. Não se trata, está claro, do fim
da História de Francis Fukuyama, ideólogo de sucesso e
garoto-propaganda de um capitalismo predatório "avançado" e
desistoricizante. Ou seja, daquela forma de organização econômico-social
que só poderia dar no que deu, mas que gerou a reação social e
político-ideológica positiva que resultou na eleição de Barack Obama –
uma liderança bem formada política, cultural e ideologicamente. No
Brasil, o momento é de desilusão das gerações, mas como a História
continua, há que se buscar sinais de novos tempos, de uma nova era.
Como analisar tantas expectativas hoje frustradas? Neste país de
tradição colonial, talvez a ascensão de Lula e o crescimento do lulismo
possam ser entendidos por conta do velho gosto aristocrático pelo
popular, cultivado até por frações da alta burguesia e de classes médias
ascendentes, um "apreço" genérico por operários, sobretudo se
qualificados e bem pagos. Operários que não tivessem seus macacões sujos
de graxa, que fossem conversáveis (e conversíveis) como Lech Walesa, o
polonês do Solidariedade. Tal "apreço’ lembra os abraços que o grande
abolicionista e aristocrático Joaquim Nabuco dava nos militantes negros,
eventualmente convidados a subir em seu palanque, mantendo, porém,
ligeira distância.
"Tudo que é sólido se desmancha no ar", sabemos hoje. E os carismas e
populismos, como o de Jânio Quadros, também se desfizeram com o tempo,
por inconsistência. Hoje, ouvem-se os aplausos de plateias que,
deseducadas e mal formadas, eventualmente também são atraídas pela
musicalidade da "canção nova" e pela singeleza ideológico-teológica de
padres-cantores e pregadores espertos. Amanhã, quem sabe isso mude.
Nesta terra de carismas fáceis e "miséria farta" (como diria Anísio
Teixeira), em que a modernidade vem sendo adiada com método,
"conciliação" e rigor, talvez estejam sendo geradas, em algum canto,
novas visões de mundo, lideranças e mensagens menos simplistas e
grosseiras sobre o que vem a ser política, sociedade, cultura. Pois a
História continua…
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* Carlos Guilherme Santos Serôa da Mota é um historiador brasileiro. Escritor.
Fonte: Estadão on line, acesso 30/06/2012
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