Fernando Reinach*
Muita coisa melhorou na vida do Homo sapiens nos últimos
20 mil anos, mas uma piorou: a quantidade de cáries. É o que concluiu
um grupo de dentistas, antropólogos e arqueólogos.
Saber se diabete ou hipertensão eram frequentes na Idade da Pedra
Lascada é praticamente impossível. Esqueletos, ruínas e artefatos são
tudo de que dispomos para entender como era a vida de nossos ancestrais.
Algumas vezes encontramos ossos quebrados e marcas de pancadas nos
crânios, o que permite avaliar o nível de violência ou os acidentes do
no dia a dia. Mas talvez nunca venhamos a saber a incidência de doenças
metabólicas ou a prevalência da obesidade.
Mas, se essa ignorância incomoda os médicos, os dentistas têm mais
sorte. A quantidade de fósseis de crânios humanos é enorme. Muitos se
dedicam a verificar o estado dos dentes de nossos antepassados,
correlacionando seus achados com a época em que viveram, seus hábitos
alimentares e a idade de cada um.
Nossos parentes distantes, os macacos, dificilmente apresentam cáries
durante a maior parte de sua vida. Elas e outras doenças dentárias só
aparecem no final da vida e são sinal de envelhecimento.
O que sabemos dos dentes de nossos ancestrais mais antigos vem do
exame de crânios de humanos que viveram antes do desenvolvimento da
agricultura. Examinando mais de mil crânios dessa época, foi constatada
pelo menos uma cárie em só 2% dos indivíduos. Eram coletores e
caçadores, comiam raízes, frutos, sementes duras e um pouco de carne.
O estado dental começou a piorar há 13 mil anos, no Neolítico, quando
surgiu a agricultura. Nessa amostra de crânios, 9% deles possuíam uma
cárie. Nessa época o consumo de grãos moídos, ricos em carboidratos,
começou a fazer parte da dieta humana. Muito depois, tanto no Egito (há
3,3 mil anos) quanto nos crânios de aborígenes australianos (há uns 70
anos), a quantidade de cáries era próxima a 2%, mas esses povos não
haviam adotado completamente a dieta rica em grãos típica das
civilizações que adotaram a agricultura.
Açúcar. Nas populações europeias, há até 4 mil anos,
a quantidade de crânios com cáries era de 10%. Há cerca de 2,3 mil
anos, Alexandre, o Grande, trouxe o açúcar à Grécia. A quantidade de
cáries aumentou lá, em Roma e depois em toda a Europa durante a Idade
Média. O mesmo ocorreu na Inglaterra, quando, após a conquista das
Índias, os navios trouxeram grandes quantidades de açúcar. O imposto
sobre o açúcar foi reduzido em 1874 e o consumo explodiu. A partir desse
momento, mais de 90% dos crânios ingleses possuem múltiplas cáries em
quase todos os dentes.
Nessa época a alta incidência de problemas dentários fez com que as
pessoas passassem a limpar os dentes: surgiram escovas, pastas,
dentistas. Essa nova tecnologia estancou a incidência de cáries, que
estabilizou em nível alto (50% a 90% das pessoas com cáries) na a Europa
até meados do século 20. Em 1970, foi introduzido o flúor na água, o
que melhorou um pouco a situação. Agora, no início do século 21, pela
primeira vez a incidência está aumentando novamente.
A introdução de carboidratos purificados (amido) e solúveis (açúcar)
em nossa dieta é provavelmente o grande culpado pelas cáries. Esse
estudo é um bom exemplo de como a evolução tecnológica da humanidade é
muito mais rápida que a biológica.
Nossa espécie viveu por milhões de anos comendo raízes, frutas, grãos
e carne. Sobreviveram os indivíduos com dentes que resistiam nesse
ambiente, mesmo sem higiene bucal. Mas o homem descobriu a agricultura
e, com ela, carboidratos fáceis e baratos. E começou a consumi-los,
apesar de seus dentes não estarem adaptados. Os dentes passaram a
apodrecer rapidamente, o que deveria ter pressionado a população a comer
menos destes alimentos. Mas novas tecnologias, como a escova e a
dentadura, livraram-nos da pressão seletiva, a força maior da evolução.
A lição é simples: qual a melhor dieta para o ser humano? Aquela para
a qual fomos selecionados durante milhões de anos, a dos que viveram
antes da descoberta da agricultura.
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* BIÓLOGO
MAIS INFORMAÇÕES: AN EVOLUTIONARY THEORY OF DENTISTRY. SCIENCE, VOL. 336, PÁG. 973, 2012
Fonte: Estadão on line, 28/06/2012
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