sexta-feira, 15 de junho de 2012

As artes do cérebro

Reuters / Reuters 
Kandel, Prêmio Nobel de Medicina em 2000: "Aproximar ciência e humanidades é o grande desafio para os próximos anos"
 
Eric Kandel tinha 9 anos quando deixou Viena, naquele momento assolada pela violência nazista. Sua família era proprietária de uma loja de brinquedos e fora vítima da Noite dos Cristais, em novembro de 1938. Nos Estados Unidos, o aluno exemplar se transformou em importante cientista, pioneiro na área de neurociências, ganhador do Prêmio Nobel de 2000 pelos estudos sobre o armazenamento da memória no cérebro. Em 2006, o professor da Columbia University publicou a autobiografia "In Search of Memory" (Em busca da memória), ganhadora do Prêmio Los Angeles Times Book.
Aos 82 anos, Kandel volta a surpreender ao lançar livro em que concilia a larga experiência de cientista do cérebro, o conhecimento da psicologia e a paixão pela arte. O título da obra é tão extenso quanto a abrangência a que se propõe: "The Age of Insight: the Quest to Understand the Unconscious in Art, Mind, and Brain, from Vienna 1900 to the Present" - em tradução literal: A era do insight: a busca da compreensão do inconsciente na arte, na mente e no cérebro a partir de Viena 1900 até o presente. Ricamente ilustrado com imagens de obras artísticas, em especial retratos, e desenhos do cérebro, o livro, que ganhará edição brasileira pela Companhia das Letras, tem mais de 600 páginas.
Na primeira parte, o autor explica o entrecruzamento das ideias do psicanalista Sigmund Freud, do escritor Arthur Schnitzler e dos artistas Gustav Klimt, Oskar Kokoschka e Egon Schiele para a compreensão do inconsciente, em especial o feminino. Na segunda, a atenção se volta para o espectador, concentra-se nos mecanismos biológicos da empatia e da criatividade que ajudam a definir percepções e reações do observador da arte. O autor mostra como o cérebro processa a imagem visual, de que maneira a biologia responde à beleza e à feiura, e mostra caminhos do cérebro para perceber faces, mãos e corpo, aproximando-se da neuroestética, a disciplina que busca entender as bases biológicas da percepção estética.

Nas explicações sobre o trabalho do cérebro, autor aproxima-se da neuroestética, que busca entender as bases biológicas da percepção estética

Muitos autores já se debruçaram sobre a Viena dos 1900, quando cientistas, artistas e intelectuais se encontravam em refinados salões e deliciosos cafés e discutiam sobre seus ofícios, produzindo revoluções em diferentes áreas, época que o escritor Hermann Broch veio a chamar de "alegre apocalipse". Nenhum com o olhar projetado por Kandel para a compreensão de como se dá em termos biológicos a resposta do observador da arte. Tendo lugar entre a ciência e a expressão poética, "The Age" é um convite para que o leitor se sente em um café ao estilo vienense? "Absolutamente, sim", responde um bem-humorado, gentil e, por vezes, irônico Kandel.
Veja a seguir, principais trechos da entrevista que ele concedeu ao Valor:

Valor: O senhor ganhou o Prêmio Nobel por seus estudos em neurociência relacionados à memória. Por que decidiu escrever "The Age of insight", livro mais próximo da neuroestética?
Eric Kandel: Simplesmente gosto dessa área. Penso nisso há 15, 20 anos. E uma vez dei uma palestra para os membros da Sociedade Europeia de Neurociência e a resposta foi tão entusiasmada que pensei que talvez devesse fazer um livro sobre isso. Quando terminei a minha autobiografia, em 2005, 2006, comecei a trabalhar seriamente sobre o tema nos fins de semana, férias e tempo livre. Porque eu acho que uma das oportunidades interessantes para as novas biologias da mente é fazer uma ponte entre a neurociência e outras áreas do conhecimento. No sentido que todo mundo na universidade - na área de negócios, na arte, na faculdade de direito - trabalha sobre a mente. Você e eu trabalhamos na mente humana. Então, aproximar ciência e humanidades é o grande desafio para os próximos anos. Eu queria dar um exemplo de como isso poderia ser feito. Então eu fiz o livro.

Valor: Assisti a uma entrevista sua à Globonews. Nela, o senhor apareceu com uma gravata-borboleta colorida, compartilhou risadas calorosas, cantou canções judaicas, mas foi severo quando falou sobre o envolvimento da Áustria no nazismo. O seu livro sobre Viena é também uma maneira de fazer as pazes com o passado?
 
A pintura "Judith", de Klimt: uma das preferidas do neurocientista
 
Kandel: Sim. É uma tentativa de conciliar. O livro tem dois significados psicológicos para mim, pelo menos. Um deles é uma reconciliação. E o outro é que Viena, entre 1938/1939, se tornou para mim uma experiência traumática, eu acho, apesar de não sentir. Sou uma pessoa feliz, tenho uma vida maravilhosa, mas, quando se trata de Viena, sofro de transtorno de estresse pós-traumático. Um caminho saudável de lidar com isso é tentar dominá-lo. E uma das maneiras de fazer isso foi analisando os aspectos positivos de Viena em 1900, uma forma de justificar a vida dos meus pais em Viena.

Valor:
Desde os anos 1970, estudos demonstram que, em Viena, no começo do século XX, artistas e intelectuais estavam envolvidos com questões teóricas e problemas artísticos que causaram forte impacto na história da consciência humana. Diante disso, quais são as principais contribuições de seu livro para a compreensão desse tempo?
Kandel: A Viena de 1900 produziu uma nova visão da mente humana. Antes disso, em geral, éramos influenciados pelo iluminismo, que pensava o humano como ser racional. É fato que o modernismo em geral, mas certamente o modernismo em Viena, enfatizou que essa é uma visão simplificada e irrealista. A mente humana é muito complicada e muito dela é irracional, muito dela é o inconsciente que é influenciado por impulsos eróticos e agressivos. Assim, Klimt, Kokoschka, Schiele, Freud e Schnitzler contribuíram para nos fazer compreender os diferentes aspectos do processo inconsciente humano. E eu aponto como cada um deles fez essa contribuição. Freud deu uma visão geral do processo mental inconsciente, mas ele entendeu muito pouco a sexualidade feminina. Klimt, Kokoschka e Schiele nos deram uma grande visão sobre a sexualidade feminina. Eles nos deram uma visão mais profunda e tridimensional do tema. Faço ainda uma análise adicional, mostrando que todos foram influenciados por Carl von Rokitansky, da Escola de Medicina de Viena. Assim, a influência da arte e da ciência, uma sobre a outra, é muito importante na Viena de 1900.

 "Freud deu uma visão geral do processo mental inconsciente, mas ele entendeu muito pouco a sexualidade feminina", afirma Kandel

Valor: Por que o senhor escolheu Klimt, Kokoschka e Schiele para os seus estudos?
Kandel: Porque eu procurei simplificar o trabalho. Eu sou um reducionista. Então eu reduzi a tarefa de duas maneiras: primeiro, foquei apenas nos retratos, porque a nossa compreensão biológica da representação da face é melhor do que qualquer outra coisa. E, dois, eu foquei em uma escola específica - Klimt, Kokoschka e Schiele -, porque eles formam um grupo coerente na pintura modernista. Eles são uma escola inteira, pois não há outros pintores significativos. E cada um deles influencia o outro.

Valor: O senhor destaca muito o papel do médico Rokitansky no livro. Por que ele é tão importante para a associação entre cultura e ciência?
Kandel: Ele desenvolveu a medicina clínica moderna. É quando você percebe que não pode simplesmente aceitar o que você vê. Você tem que ir além da superfície, fazer a autópsia, tem que ir fundo a fim de realmente compreender o que se passa em medicina. E ir mais fundo é o que Freud fez, o que Klimt, Kokoschka e Schiele fizeram. Essa metáfora influenciou fortemente Freud e Schnitzler. E influenciou também Klimt, pois ele aprendeu sobre as ideias de Rokitansky com Emil Zuckerkandl, que era associado de Rokitansky, ao frequentar o salão de Berta Zuckerkandl. Klimt se familiarizou com a biologia e incorporou ideias da biologia em sua pintura, influenciando os outros dois pintores.

Valor: Depois de todos os seus estudos sobre o cérebro, é a sua percepção atual da pintura de Klimt que fala de Judith e Holofernes ["Judith", 1901] diferente de sua percepção na primeira vez que a viu? Por quê?
Kandel: Bem, eu a entendo melhor. Que interessante, acabei de enviar a alguém uma carta sobre a pintura de Judith e Holofernes. Estive em uma palestra recentemente e falei para umas 700 pessoas que estavam na plateia. E, depois da palestra, alguém perguntou: "Se você pudesse escolher uma pintura de Klimt, Kokoschka e Schiele para ser sua, qual escolheria?" E eu disse que é impossível, é como pedir a vocês que escolham um de seus filhos. Você sabe, você gosta de diferentes aspectos de cada um e ama todos eles. Então, se você tivesse que escolher um, qual escolheria? E eu disse: "Oh, eu não posso fazer isso, eu não posso fazê-lo". E, então, finalmente, eu disse: "Bem, talvez eu escolhesse 'The Tempest', de Kokoschka, que está em Basileia" [1914, também titulada "A Noiva do Vento"]. Pensei um pouco mais e disse: "Não! Não!" Absolutamente, uma pintura que se destaca é a de Judith e Holofernes. Ela é tão fantástica porque fala da liberação sexual feminina de forma poderosa. Mostra não só a sexualidade liberada de uma mulher, mas os impulsos agressivos que a guiam. O erotismo e a agressividade, eles se confundem. Porque essa mulher foi salvar seu povo decapitando Holofernes e para ela esse foi um ato erótico. Ela ainda está no brilho de um orgasmo e está acariciando a cabeça, que você mal consegue ver no canto inferior direito da pintura. E ela está vestida de uma maneira bonita, que de forma alguma se parece com uma modesta viúva judia. É uma pintura fantástica.
AP / AP 
Obra de Egon Schiele: "Klimt, Kokoschka, Schiele, Freud e Schnitzler contribuíram 
para nos fazer compreender os diferentes aspectos do processo inconsciente humano",
 diz Kandel
 
Valor: 
A investigação científica tem mostrado que o cérebro conservou vias de reconhecimento de linhas, rostos e movimentos orgânicos. Além disso, as reações emocionais são respostas previsíveis de vias internas específicas ativadas por estímulos externos. Então, por que as pessoas reagem de forma diferente quando expostos a uma mesma obra de arte?
Kandel: É porque o cérebro é uma máquina criativa. E cada obra de arte tem certa dose de ambiguidade. Ambiguidade significa que você pode interpretá-la de diferentes maneiras. Você e eu, ao olharmos para a mesma pintura, vamos interpretá-la de maneira ligeiramente diferente. Nós temos experiências históricas diferentes, você teve uma vida diferente da minha. Então, quando olhamos para a mesma pintura, você escolhe seguir diferentes associações, diferentes ideias, diferentes origens históricas, o que a ajuda a apreciar o processo e desfrutar o trabalho de arte. Então, você responde diferentemente.

Valor: Com a neuroestética, não corremos o risco de perder o apelo poético da obra de arte com tantas explicações técnicas?
Kandel: Não, as explicações não se repelem, não se substituem. Quando olho a beleza de uma pintura, eu vejo a beleza. Mas, adicionalmente, tenho um pouco mais de conhecimento sobre por que respondo à beleza, quais os caminhos que levaram a isso. Mas minha resposta inicial é a beleza por si.

"A mente humana é complicada e muito dela é irracional, muito dela é o inconsciente que é influenciado por impulsos eróticos e agressivos"

Valor: No renascimento, Leonardo da Vinci criou o famoso aforismo que diz que "a pintura é uma coisa mental". Mais tarde, Marcel Duchamp foi um dos artistas que enfatizaram esse conceito. Depois de anos analisando o cérebro humano e recentemente estudando artistas como Klimt, Schiele e Kokoschka, o senhor pode dizer que o sentido de beleza está enraizado no cérebro?
Kandel: Tudo está enraizado no cérebro. Quando escuto você e vejo seus comentários inteligentes, isso está enraizado no seu cérebro e no meu cérebro.

Valor: Como o conhecimento sobre o cérebro nos ajuda a entender o processo criativo?
Kandel: Temos uma compreensão muito limitada do processo criativo. Temos que aprender muito sobre o assunto. O que sabemos é: número um, que o processo criativo normalmente vem até a gente em momento de relaxamento. Se você trabalha em um problema, se continua a trabalhar nele, muitas vezes, não tem progresso. Mas, se deixá-lo, sair para caminhar, ir a uma festa, beber uma taça de vinho, tomar um banho, dormir um pouco e despertar, a solução vem até a gente. Tome um banho, suba uma montanha. Nos momentos de relaxamento, enquanto se está trabalhando, "insights" ocorrem. Esse é o número um. O número dois é a velha ideia de que o lado esquerdo do cérebro está ligado à lógica e o lado direito à música, à brincadeira, à criatividade. As pessoas pensam que esse é um ponto de vista muito romântico. Acontece que, embora seja uma tremenda simplificação, há alguma obviedade nisso, pois o lado direito do cérebro é uma área que tende a ser mais recrutada durante os períodos de "insights" e criatividade.
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Reportagem por Por Graça Ramos | Para o Valor, de Brasília
Fonte: Valor Econômico on line, 15/06/2012

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