Aos 82 anos, Kandel volta a surpreender ao lançar livro em que concilia a larga experiência de cientista do cérebro, o conhecimento da psicologia e a paixão pela arte. O título da obra é tão extenso quanto a abrangência a que se propõe: "The Age of Insight: the Quest to Understand the Unconscious in Art, Mind, and Brain, from Vienna 1900 to the Present" - em tradução literal: A era do insight: a busca da compreensão do inconsciente na arte, na mente e no cérebro a partir de Viena 1900 até o presente. Ricamente ilustrado com imagens de obras artísticas, em especial retratos, e desenhos do cérebro, o livro, que ganhará edição brasileira pela Companhia das Letras, tem mais de 600 páginas.
Na primeira parte, o autor explica o entrecruzamento das ideias do psicanalista Sigmund Freud, do escritor Arthur Schnitzler e dos artistas Gustav Klimt, Oskar Kokoschka e Egon Schiele para a compreensão do inconsciente, em especial o feminino. Na segunda, a atenção se volta para o espectador, concentra-se nos mecanismos biológicos da empatia e da criatividade que ajudam a definir percepções e reações do observador da arte. O autor mostra como o cérebro processa a imagem visual, de que maneira a biologia responde à beleza e à feiura, e mostra caminhos do cérebro para perceber faces, mãos e corpo, aproximando-se da neuroestética, a disciplina que busca entender as bases biológicas da percepção estética.
Nas explicações sobre o trabalho do cérebro,
autor aproxima-se da neuroestética, que busca entender as bases
biológicas da percepção estética
Muitos autores já se debruçaram sobre a Viena dos 1900, quando cientistas, artistas e intelectuais se encontravam em refinados salões e deliciosos cafés e discutiam sobre seus ofícios, produzindo revoluções em diferentes áreas, época que o escritor Hermann Broch veio a chamar de "alegre apocalipse". Nenhum com o olhar projetado por Kandel para a compreensão de como se dá em termos biológicos a resposta do observador da arte. Tendo lugar entre a ciência e a expressão poética, "The Age" é um convite para que o leitor se sente em um café ao estilo vienense? "Absolutamente, sim", responde um bem-humorado, gentil e, por vezes, irônico Kandel.
Veja a seguir, principais trechos da entrevista que ele concedeu ao Valor:
Valor: O senhor ganhou o Prêmio Nobel por seus estudos em neurociência relacionados à memória. Por que decidiu escrever "The Age of insight", livro mais próximo da neuroestética?
Eric Kandel: Simplesmente gosto dessa área. Penso nisso há 15, 20 anos. E uma vez dei uma palestra para os membros da Sociedade Europeia de Neurociência e a resposta foi tão entusiasmada que pensei que talvez devesse fazer um livro sobre isso. Quando terminei a minha autobiografia, em 2005, 2006, comecei a trabalhar seriamente sobre o tema nos fins de semana, férias e tempo livre. Porque eu acho que uma das oportunidades interessantes para as novas biologias da mente é fazer uma ponte entre a neurociência e outras áreas do conhecimento. No sentido que todo mundo na universidade - na área de negócios, na arte, na faculdade de direito - trabalha sobre a mente. Você e eu trabalhamos na mente humana. Então, aproximar ciência e humanidades é o grande desafio para os próximos anos. Eu queria dar um exemplo de como isso poderia ser feito. Então eu fiz o livro.
Valor: Assisti a uma entrevista sua à Globonews. Nela, o senhor apareceu com uma gravata-borboleta colorida, compartilhou risadas calorosas, cantou canções judaicas, mas foi severo quando falou sobre o envolvimento da Áustria no nazismo. O seu livro sobre Viena é também uma maneira de fazer as pazes com o passado?
Valor:
Desde os anos 1970, estudos demonstram que, em Viena, no começo do século XX, artistas e intelectuais estavam envolvidos com questões teóricas e problemas artísticos que causaram forte impacto na história da consciência humana. Diante disso, quais são as principais contribuições de seu livro para a compreensão desse tempo?
Kandel: A Viena de 1900 produziu uma nova visão da mente humana. Antes disso, em geral, éramos influenciados pelo iluminismo, que pensava o humano como ser racional. É fato que o modernismo em geral, mas certamente o modernismo em Viena, enfatizou que essa é uma visão simplificada e irrealista. A mente humana é muito complicada e muito dela é irracional, muito dela é o inconsciente que é influenciado por impulsos eróticos e agressivos. Assim, Klimt, Kokoschka, Schiele, Freud e Schnitzler contribuíram para nos fazer compreender os diferentes aspectos do processo inconsciente humano. E eu aponto como cada um deles fez essa contribuição. Freud deu uma visão geral do processo mental inconsciente, mas ele entendeu muito pouco a sexualidade feminina. Klimt, Kokoschka e Schiele nos deram uma grande visão sobre a sexualidade feminina. Eles nos deram uma visão mais profunda e tridimensional do tema. Faço ainda uma análise adicional, mostrando que todos foram influenciados por Carl von Rokitansky, da Escola de Medicina de Viena. Assim, a influência da arte e da ciência, uma sobre a outra, é muito importante na Viena de 1900.
"Freud deu uma visão geral do processo mental
inconsciente, mas ele entendeu muito pouco a sexualidade feminina",
afirma Kandel
Valor: Por que o senhor escolheu Klimt, Kokoschka e Schiele para os seus estudos?
Kandel: Porque eu procurei simplificar o trabalho. Eu sou um reducionista. Então eu reduzi a tarefa de duas maneiras: primeiro, foquei apenas nos retratos, porque a nossa compreensão biológica da representação da face é melhor do que qualquer outra coisa. E, dois, eu foquei em uma escola específica - Klimt, Kokoschka e Schiele -, porque eles formam um grupo coerente na pintura modernista. Eles são uma escola inteira, pois não há outros pintores significativos. E cada um deles influencia o outro.
Valor: O senhor destaca muito o papel do médico Rokitansky no livro. Por que ele é tão importante para a associação entre cultura e ciência?
Kandel: Ele desenvolveu a medicina clínica moderna. É quando você percebe que não pode simplesmente aceitar o que você vê. Você tem que ir além da superfície, fazer a autópsia, tem que ir fundo a fim de realmente compreender o que se passa em medicina. E ir mais fundo é o que Freud fez, o que Klimt, Kokoschka e Schiele fizeram. Essa metáfora influenciou fortemente Freud e Schnitzler. E influenciou também Klimt, pois ele aprendeu sobre as ideias de Rokitansky com Emil Zuckerkandl, que era associado de Rokitansky, ao frequentar o salão de Berta Zuckerkandl. Klimt se familiarizou com a biologia e incorporou ideias da biologia em sua pintura, influenciando os outros dois pintores.
Valor: Depois de todos os seus estudos sobre o cérebro, é a sua percepção atual da pintura de Klimt que fala de Judith e Holofernes ["Judith", 1901] diferente de sua percepção na primeira vez que a viu? Por quê?
Kandel: Bem, eu a entendo melhor. Que interessante, acabei de enviar a alguém uma carta sobre a pintura de Judith e Holofernes. Estive em uma palestra recentemente e falei para umas 700 pessoas que estavam na plateia. E, depois da palestra, alguém perguntou: "Se você pudesse escolher uma pintura de Klimt, Kokoschka e Schiele para ser sua, qual escolheria?" E eu disse que é impossível, é como pedir a vocês que escolham um de seus filhos. Você sabe, você gosta de diferentes aspectos de cada um e ama todos eles. Então, se você tivesse que escolher um, qual escolheria? E eu disse: "Oh, eu não posso fazer isso, eu não posso fazê-lo". E, então, finalmente, eu disse: "Bem, talvez eu escolhesse 'The Tempest', de Kokoschka, que está em Basileia" [1914, também titulada "A Noiva do Vento"]. Pensei um pouco mais e disse: "Não! Não!" Absolutamente, uma pintura que se destaca é a de Judith e Holofernes. Ela é tão fantástica porque fala da liberação sexual feminina de forma poderosa. Mostra não só a sexualidade liberada de uma mulher, mas os impulsos agressivos que a guiam. O erotismo e a agressividade, eles se confundem. Porque essa mulher foi salvar seu povo decapitando Holofernes e para ela esse foi um ato erótico. Ela ainda está no brilho de um orgasmo e está acariciando a cabeça, que você mal consegue ver no canto inferior direito da pintura. E ela está vestida de uma maneira bonita, que de forma alguma se parece com uma modesta viúva judia. É uma pintura fantástica.
Kandel: É porque o cérebro é uma máquina criativa. E cada obra de arte tem certa dose de ambiguidade. Ambiguidade significa que você pode interpretá-la de diferentes maneiras. Você e eu, ao olharmos para a mesma pintura, vamos interpretá-la de maneira ligeiramente diferente. Nós temos experiências históricas diferentes, você teve uma vida diferente da minha. Então, quando olhamos para a mesma pintura, você escolhe seguir diferentes associações, diferentes ideias, diferentes origens históricas, o que a ajuda a apreciar o processo e desfrutar o trabalho de arte. Então, você responde diferentemente.
Valor: Com a neuroestética, não corremos o risco de perder o apelo poético da obra de arte com tantas explicações técnicas?
Kandel: Não, as explicações não se repelem, não se substituem. Quando olho a beleza de uma pintura, eu vejo a beleza. Mas, adicionalmente, tenho um pouco mais de conhecimento sobre por que respondo à beleza, quais os caminhos que levaram a isso. Mas minha resposta inicial é a beleza por si.
"A mente humana é complicada e muito dela é
irracional, muito dela é o inconsciente que é influenciado por impulsos
eróticos e agressivos"
Valor: No renascimento, Leonardo da Vinci criou o famoso aforismo que diz que "a pintura é uma coisa mental". Mais tarde, Marcel Duchamp foi um dos artistas que enfatizaram esse conceito. Depois de anos analisando o cérebro humano e recentemente estudando artistas como Klimt, Schiele e Kokoschka, o senhor pode dizer que o sentido de beleza está enraizado no cérebro?
Kandel: Tudo está enraizado no cérebro. Quando escuto você e vejo seus comentários inteligentes, isso está enraizado no seu cérebro e no meu cérebro.
Valor: Como o conhecimento sobre o cérebro nos ajuda a entender o processo criativo?
Kandel: Temos uma compreensão muito limitada do processo criativo. Temos que aprender muito sobre o assunto. O que sabemos é: número um, que o processo criativo normalmente vem até a gente em momento de relaxamento. Se você trabalha em um problema, se continua a trabalhar nele, muitas vezes, não tem progresso. Mas, se deixá-lo, sair para caminhar, ir a uma festa, beber uma taça de vinho, tomar um banho, dormir um pouco e despertar, a solução vem até a gente. Tome um banho, suba uma montanha. Nos momentos de relaxamento, enquanto se está trabalhando, "insights" ocorrem. Esse é o número um. O número dois é a velha ideia de que o lado esquerdo do cérebro está ligado à lógica e o lado direito à música, à brincadeira, à criatividade. As pessoas pensam que esse é um ponto de vista muito romântico. Acontece que, embora seja uma tremenda simplificação, há alguma obviedade nisso, pois o lado direito do cérebro é uma área que tende a ser mais recrutada durante os períodos de "insights" e criatividade.
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