Mino Carta*
É do conhecimento até do mundo mineral que a crise mundial é o efeito
anunciado de uma nova religião de origem anglo-americana fiel do deus
mercado, chamada neoliberalismo, responsável pelo surgimento de uma
oligarquia financeira internacional à qual se sujeitam os governos
nacionais. Epicentro do sismo Wall Street, com a inegável participação
de outras praças satelitares. Mesmo assim, Obama, imperturbável enquanto
o resto dos crentes ainda não abjurou, diz que culpada é a Grécia.
Excluída a possibilidade de que o presidente dos Estados Unidos se
refira à inestimável contribuição da antiga Hélade à cultura do mundo,
permito-me imaginar Obama dedicado à prática do pôquer. Tão logo lhe
seja possível, deveria rumar para Monte Carlo, que de longe prefiro a
Las Vegas, de sorte a explorar convenientemente seu talento, tão bem
representado por suas faces pétreas. Cito Obama como a enésima prova de
que o vale-tudo político não é exclusivo do Brasil.
Diante de uma declaração que esticaria o nariz de
Pinóquio até o horizonte, prefiro a última fala de Paulo Maluf: “Perto
do PT, hoje eu sou comunista”. Bem mais esperto, ou menos ingênuo, que o
presidente americano. A respeito da surtida malufista, leiam Mauricio
Dias em sua Rosa dos Ventos. Muitos petistas, aliás, para justificar o
acordo Lula-Maluf a favor da candidatura de Fernando Haddad à prefeitura
de São Paulo, apressaram-se a lembrar que Fernando Henrique Cardoso já
fez algo similar. Não menos que José Serra contra Marta Suplicy. Ora,
ora, não seria lógico que os petistas pretendessem diferenciar-se dos
tucanos?
Recordo tempos de patrulhamento feroz organizado pelo PT na oposição,
ao defender uma pureza que faltava a todos os demais. A questão
discutida na semana passada refere-se ao ritual encenado para
sacramentar o entendimento. Assim como faz parte do jogo da política
nacional a presença do PP de Maluf na base de sustentação do governo
Dilma, o apoio a Haddad cabe na norma, por mais indigesta que pareça. A
chamada realpolitik admite concessões, resta ver quais são seus limites.
É da norma, digamos, que os governos chamados a combater a crise
tomem medidas que antes de mais nada aproveitam à oligarquia financeira?
Até o momento, tudo que se fez não passou disso, e no caso a norma
prejudica o mundo. Estamos à espera dos resultados da cúpula da União
Europeia, onde se desenha o confronto entre Angela Merkel e François
Hollande na esperança da mediação de Mario Monti, singular figura a
representar com insólita dignidade uma Itália à deriva, até ontem
entregue ao vale-tudo comandado por Berlusconi.
A resistência do euro e o abrandamento sensível de uma política toda
voltada para a austeridade teriam efeitos benéficos globais. Contra o
vale-tudo dominado pela prepotência e pela hipocrisia. O mesmo vale-tudo
que no Paraguai pretende apresentar um golpe de Estado como ato
legítimo absolutamente constitucional. Aos meus desolados botões
pergunto: qual é a norma? Leio as reações da mídia nativa e lá vou com
outra pergunta: e qual é, especificamente, a norma do jornalismo pátrio?
Se a norma é a do vale-tudo sem limites, então, meu caro, sossegue seu
coração, respondem os botões, entre a melancolia e a irritação.
Derrubar um presidente constitucionalmente eleito em nome da
Constituição é o que é, e fica dentro da norma de uma América Latina que
permanece bananeira. Quanto aos editoriais dos nossos jornalões, vivem
uma norma duradoura há um lustro. Quem estiver em idade adequada e
conservar a boa memória, haverá de pensar ter voltado atrás no tempo 48
anos exatos ao tropeçar nas análises da mídia nativa sobre a situação
paraguaia. Esforço brutal fiz eu, depois de enfrentar alguns destes
textos, para ter certeza de que a data não era um dia de março de 1964.
Pois é, pasmem os homens de boa vontade, mas por aqui, pelas redações, a
norma ainda é aquela. E só Deus sabe, como diria Armando Falcão, amigão
e partícipe da tigrada, aonde seriam capazes de chegar.
De muitos pontos de vista continuamos ancorados no
passado. Refiro-me, por exemplo, à chamada, absurda lei da anistia. Um
torturador emérito como o coronel Brilhante Ustra tem de ser processado
no Cível para ser levado a ressarcir a família do jornalista Luiz
Eduardo Merlino, torturado e assassinado nas masmorras da ditadura.
Lembrei-me de um episódio marcante que remonta a 1977, em plena
ditadura, quando os advogados Marco Antonio Barbosa e Samuel McDowell
com rara coragem e competência processaram o próprio Estado ditatorial e
conseguiram para a família o ressarcimento pela morte de Vlado Herzog
em ação cível. Lei imposta pela ditadura não tem valor algum se vigora a
democracia, mas ainda há quem discuta se a paradoxal lei da anistia
permite demandas no Cível. Pois esta dita lei teria de ser letra morta,
mesmo que tenha havido quem a aceitou naqueles tempos em nome de um
justificável vale tudo. Ou a democracia, no caso, foi aposentada?
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* Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Jornalista.
Fonte: Editorial: http://www.cartacapital.com.br/politica/o-vale-tudo-e-mundial/29/06/2012
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