ENTREVISTA CAETANO W. GALINDO
Um tradutor que cita o diretor Quentin Tarantino para explicar por
que escolheu grafar Ulysses com “y” (“quando lhe perguntaram o sentido
da estranha ortografia de Inglorious Basterds: (ele disse) ‘tem coisas
que é melhor deixar para o leitor tentar resolver’...”) e a banda
conceitual americana Velvet Underground para justificar por que um livro
tão pouco lido entrou para o cânone ocidental (“quando eles estavam
tocando em Nova York, pouca gente viu, mas quem viu montou uma banda”)
marca uma diferença geracional profunda em relação aos tradutores que o
antecederam na monumental tarefa de traduzir o clássico de Joyce para o
leitor brasileiro – o filólogo Antônio Houaiss (1915 – 1999), que nasceu
antes de o livro ser escrito, e a filósofa e professora emérita da UFRJ
Bernardina da Silveira Pinheiro (1922), que nasceu no ano em que o
romance foi publicado.
Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná há 15 anos e tradutor de mais de 20 títulos além de Ulysses, Caetano Galindo, 38 anos (10 deles dedicados à tradução de Ulysses que acaba de chegar às livrarias), espera contribuir para desmitificar um dos romances mais influentes (e menos lidos) do século 20 com uma tradução que o professor define como “ecumênica”, respeitando a multiplicidade de estilos e o vigor da prosa joyceana.
Neste 16 de junho, data em que o mundo inteiro celebra o Bloomsday – dia em que se passa a ação de Ulysses – e no ano em que são lembrados os 90 anos da publicação do livro, Galindo manda um recado aos leitores que nunca tiveram coragem de enfrentar aquele que é considerado o maior romance já escrito: “Você pode se beneficiar das notas, mas em geral as notas vão te ajudar para uma segunda ou terceira leitura. A melhor coisa que você pode fazer é encarar o bicho”.
Cultura – Como começou a sua relação com Ulysses?
Caetano Galindo – Eu comecei a tentar ler faz uns 15 anos e logo percebi que era um livro que ia dar muito trabalho para o tipo de leitor que eu sou, um leitor muito distraído. Eu já era formado em Letras e percebi que se quisesse entender aquele livro ia precisar fazer um projeto mais sério de análise. Aí decidi que iria traduzir. Na verdade, nunca tive nenhuma formação legítima de tradutor ou de inglês. Eu aprendi inglês meio na marra. Como tive que desistir de um projeto de doutorado que eu estava encaminhando, decidi que ia fazer outro projeto de doutorado completamente diferente: traduzir e analisar a prosa de Ulysses. Foi a partir desse momento, em 2001, com o trabalho começando em 2002, que comecei o processo de tradução.
Cultura – E sobre o que foi a sua tese de doutorado?
Galindo – A tese tinha a tradução integral como um anexo. O corpo da tese era uma análise dos mecanismos de citação de discursos, ou seja, como Joyce reproduzia falas e usava vozes de narradores diferentes. A tradução foi, para mim, parte do processo. Eu precisei traduzir para entender esses mecanismos. Naquele momento, eu apresentava uma primeira versão da tradução, que era bastante diferente da de hoje.
Cultura – E como foi sua preparação para a tradução?
Galindo – Como a tradução foi feita ao mesmo tempo que o projeto de doutorado, li tudo que eu podia ler sobre Ulysses e sobre Joyce. Li o que me interessava da correspondência e também fui a Dublin fazer a peregrinação pelos locais históricos. Depois de defendida a tese, acabei dando disciplinas ininterruptamente sobre Ulysses, sobre Finnegans Wake, sobre Joyce.
Cultura – E como os estudantes de Letras de hoje encaram a leitura de Ulysses?
Galindo – Existe um grupo de professores, nos últimos 10 ou 15 anos, na Universidade do Paraná, que têm um interesse grande por esse livro. E é divertido ver que a existência de três pessoas pensando sobre um livro dá origem, às vezes, a um grupo de 30 alunos interessados. Temos hoje vários alunos lendo Ulysses, escrevendo sobre Ulysses, as disciplinas nunca têm falta de público. É divertido criar um público, e isso tem acontecido na universidade.
Cultura – E existe um fetiche com o livro, por ele ser considerado muito difícil?
Galindo – Absolutamente. Inclusive isso às vezes é deletério para a própria fortuna crítica do livro, porque as pessoas acreditam no mito, compram o mito...
Cultura – E qual é o mito?
Galindo – O mito seria de que o livro é perfeito, inatingível, intocável, dificílimo. E isso acaba pondo medo nas pessoas, porque com a devoção vem junto o medo. Acaba que o livro é muito menos lido do que poderia e deveria ser se fosse “vendido”, por assim dizer, como a grande obra romanesca – e portanto popular – que ele é. O romance é uma forma popular. E o grande romance do século 20 tinha que ser uma obra popular também. É óbvio que não é fácil, é óbvio que não é direto, nem simples e singelo, mas não tem nada de intocável ou de torre de marfim. Ele é muito... pé no chão.
Cultura – Todos falam sobre o desafio que é traduzir Ulysses. Gostaria que você falasse um pouco dos dois lados: das grandes dificuldades e dos grandes momentos de satisfação desse trabalho.
Galindo – Apesar de as pessoas sempre pensarem em coisas pontuais, o maior desafio eu acho que acaba sendo não trair a multiplicidade do livro. É um livro que tem muitos registros de línguas diferentes, que oscila entre o formal e o informal, o arcaico e o moderno, a gíria e a linguagem solene, que cita todo tipo de literatura, que imita e parodia todo tipo de literatura, todo tipo de canção popular, de mito de tudo que é origem. Então, em grande medida, o maior desafio para um tradutor de Ulysses é manter essa multiplicidade. Ou seja, manter o livro colorido, manter o livro fiel a esse objetivo original dele. E não traduzir achatando o livro, deixando-o cinza e desinteressante. Por mais que você tenha uma prosa linda quando traduz, você não pode pôr uma prosa linda, você tem que ter umas 30 para que o livro funcione.
E sobre o prazer... Antes de estudar Letras, eu era músico. E quando você é músico e pega uma partitura e toca, você tem todo o prazer de sentir aquela peça ser tua sem ter tido que criar aquela peça, mas ela só existe por causa de você, quando você toca. O tradutor é exatamente a mesma coisa. O livro original existe e é inacessível para o leitor que não conhece determinada língua, mas a partir do momento em que eu pego e “executo” (em duplo sentido) aquele livro, ele passa a ser possível para o leitor, e do meu ponto de vista, estou fazendo ele existir. Eu estou tocando aquele livro. É um imenso prazer. Escrever aquilo é divertidíssimo. Havia momentos de euforia (risos). É muito divertido você sentir que está fazendo aquilo, que você está escrevendo aquilo, sem ter que ter o gênio do Joyce. Ele já teve, então eu só preciso reproduzir.
Cultura – Quando Ulysses começa a ser um clássico incontornável da literatura?
Galindo – A edição da Penguin, de 1969, tem um grande peso nisso. Antes, Ulysses era basicamente um livro pouco lido, pouco visto, porque era proibido na maioria dos países, por ser considerado indecente, e portanto não tinha uma grande fortuna crítica. Era um livro que tinha muita influência entre os escritores, entre os crítcos, mas entre o público em geral a influência era quase nula. A partir dos anos 1960, ocorre essa virada crítica e editorial, e não é à toa que é nessa época que surge o primeiro filme sobre o livro (Ulysses, de Joseph Strick, 1967). Há quem já tenha ligado isso ao surgimento da contracultura, à ideia de valorização desse lado sujo e inclusive indecente do Ulysses. É a partir daí que o livro ganha uma popularidade maior. Se é que a gente pode falar em popularidade de um livro que até hoje é muito pouco lido.
Cultura – Como se explica que um livro tão complexo tenha se tornado tão canônico na literatura ocidental?
Galindo – Sabe aquela história que costuma se dizer do Velvet Underground? Que quando eles estavam tocando em Nova York pouquíssima gente viu a banda tocar, mas todo mundo que viu montou uma banda? O Ulysses é mais ou menos isso. Pouca gente leu, mas quase todo mundo que leu teve um papel no mundo literário no lugar em que estava. É um livro que teve uma influência muito grande nas pessoas certas, que depois fizeram a literatura que veio, a crítica literária que veio. Então, ele acaba ganhando essa aura de livro fundamental.
Cultura – Noventa anos depois de sua publicação, como você acha que o tempo afetou Ulysses?
Galindo – O livro envelheceu na medida em que todo artefato envelhece culturalmente. Certas referências hoje são muito difíceis de entender, certos fatos ligados ao contexto da época ficaram um pouco mais distantes, mas esteticamente e tecnicamente ele não envelheceu um dia. Eu ouvi isso já de escritores e de romancistas brasileiros novos e mais velhos: o livro parece que foi escrito ontem. Em termos técnicos, não fica devendo nada para nenhum bom romance de hoje e inclusive ele parece mais fresco do que boa parte dos bons romances de hoje.
Cultura – Como você definiria o projeto de Joyce com Ulysses? Por que a mistura de estilos e a linguagem complexa?
Galindo – Joyce não disse isso com todas as letras, mas tenho para mim muito bem resolvido que o projeto dele era escrever o maior de todos os romances. E escrever o maior romance de todos envolvia (e isso é muito difícil) entender muito bem o que é que faz o romance ser como é. E nisso ele tinha razão: a mistura de discursos, de estilos e de vozes é o que faz o romance ser um romance. Então o que Joyce fez, basicamente, na minha opinião, foi pegar tudo que faz um romance ser bom e elevar à enésima potência. O Ulysses é um livro extremamente abundante em tudo. Tem muitos personagens, muitas histórias, muitos interesses e muitos registros, muitos tons emocionais diferentes. É um livro em que James Joyce basicamente quis enfiar tudo que podia enfiar de mérito romanesco. Acho que o projeto dele era extremamente pretensioso.
Cultura – Que personagem do livro é o seu favorito?
Galindo – Todo mundo escolhe o mesmo, Leopold Bloom. Quando perguntaram para Harold Bloom, o crítico, qual era o maior personagem da literatura pós-Shakespeare, ele disse que poderia haver várias respostas, mas por um critério de completude, Leopold Bloom tem que ganhar. Porque ele é o que a gente conhece melhor, ele é o mais abrangentemente exposto, o mais minuciosamente analisado, o mais simpático, o mais divertido e o mais parecido com a gente. Seja quem você for, ele é mais parecido com você. Bloom não é um herói, não é um Deus, não é um político poderoso. Ele é um sujeito qualquer, numa cidade qualquer, em um dia qualquer. E exatamente por isso ele consegue tocar um cordinha interessante em todo mundo.
Cultura – Se você fosse usar uma palavra para definir a sua tradução do Ulysses qual seria?
Galindo – Ecumenismo. A ideia é essa, fazer um texto ecumênico que fosse aberto e tolerante a todo tipo de experiência.
Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná há 15 anos e tradutor de mais de 20 títulos além de Ulysses, Caetano Galindo, 38 anos (10 deles dedicados à tradução de Ulysses que acaba de chegar às livrarias), espera contribuir para desmitificar um dos romances mais influentes (e menos lidos) do século 20 com uma tradução que o professor define como “ecumênica”, respeitando a multiplicidade de estilos e o vigor da prosa joyceana.
Neste 16 de junho, data em que o mundo inteiro celebra o Bloomsday – dia em que se passa a ação de Ulysses – e no ano em que são lembrados os 90 anos da publicação do livro, Galindo manda um recado aos leitores que nunca tiveram coragem de enfrentar aquele que é considerado o maior romance já escrito: “Você pode se beneficiar das notas, mas em geral as notas vão te ajudar para uma segunda ou terceira leitura. A melhor coisa que você pode fazer é encarar o bicho”.
Cultura – Como começou a sua relação com Ulysses?
Caetano Galindo – Eu comecei a tentar ler faz uns 15 anos e logo percebi que era um livro que ia dar muito trabalho para o tipo de leitor que eu sou, um leitor muito distraído. Eu já era formado em Letras e percebi que se quisesse entender aquele livro ia precisar fazer um projeto mais sério de análise. Aí decidi que iria traduzir. Na verdade, nunca tive nenhuma formação legítima de tradutor ou de inglês. Eu aprendi inglês meio na marra. Como tive que desistir de um projeto de doutorado que eu estava encaminhando, decidi que ia fazer outro projeto de doutorado completamente diferente: traduzir e analisar a prosa de Ulysses. Foi a partir desse momento, em 2001, com o trabalho começando em 2002, que comecei o processo de tradução.
Cultura – E sobre o que foi a sua tese de doutorado?
Galindo – A tese tinha a tradução integral como um anexo. O corpo da tese era uma análise dos mecanismos de citação de discursos, ou seja, como Joyce reproduzia falas e usava vozes de narradores diferentes. A tradução foi, para mim, parte do processo. Eu precisei traduzir para entender esses mecanismos. Naquele momento, eu apresentava uma primeira versão da tradução, que era bastante diferente da de hoje.
Cultura – E como foi sua preparação para a tradução?
Galindo – Como a tradução foi feita ao mesmo tempo que o projeto de doutorado, li tudo que eu podia ler sobre Ulysses e sobre Joyce. Li o que me interessava da correspondência e também fui a Dublin fazer a peregrinação pelos locais históricos. Depois de defendida a tese, acabei dando disciplinas ininterruptamente sobre Ulysses, sobre Finnegans Wake, sobre Joyce.
Cultura – E como os estudantes de Letras de hoje encaram a leitura de Ulysses?
Galindo – Existe um grupo de professores, nos últimos 10 ou 15 anos, na Universidade do Paraná, que têm um interesse grande por esse livro. E é divertido ver que a existência de três pessoas pensando sobre um livro dá origem, às vezes, a um grupo de 30 alunos interessados. Temos hoje vários alunos lendo Ulysses, escrevendo sobre Ulysses, as disciplinas nunca têm falta de público. É divertido criar um público, e isso tem acontecido na universidade.
Cultura – E existe um fetiche com o livro, por ele ser considerado muito difícil?
Galindo – Absolutamente. Inclusive isso às vezes é deletério para a própria fortuna crítica do livro, porque as pessoas acreditam no mito, compram o mito...
Cultura – E qual é o mito?
Galindo – O mito seria de que o livro é perfeito, inatingível, intocável, dificílimo. E isso acaba pondo medo nas pessoas, porque com a devoção vem junto o medo. Acaba que o livro é muito menos lido do que poderia e deveria ser se fosse “vendido”, por assim dizer, como a grande obra romanesca – e portanto popular – que ele é. O romance é uma forma popular. E o grande romance do século 20 tinha que ser uma obra popular também. É óbvio que não é fácil, é óbvio que não é direto, nem simples e singelo, mas não tem nada de intocável ou de torre de marfim. Ele é muito... pé no chão.
Cultura – Todos falam sobre o desafio que é traduzir Ulysses. Gostaria que você falasse um pouco dos dois lados: das grandes dificuldades e dos grandes momentos de satisfação desse trabalho.
Galindo – Apesar de as pessoas sempre pensarem em coisas pontuais, o maior desafio eu acho que acaba sendo não trair a multiplicidade do livro. É um livro que tem muitos registros de línguas diferentes, que oscila entre o formal e o informal, o arcaico e o moderno, a gíria e a linguagem solene, que cita todo tipo de literatura, que imita e parodia todo tipo de literatura, todo tipo de canção popular, de mito de tudo que é origem. Então, em grande medida, o maior desafio para um tradutor de Ulysses é manter essa multiplicidade. Ou seja, manter o livro colorido, manter o livro fiel a esse objetivo original dele. E não traduzir achatando o livro, deixando-o cinza e desinteressante. Por mais que você tenha uma prosa linda quando traduz, você não pode pôr uma prosa linda, você tem que ter umas 30 para que o livro funcione.
E sobre o prazer... Antes de estudar Letras, eu era músico. E quando você é músico e pega uma partitura e toca, você tem todo o prazer de sentir aquela peça ser tua sem ter tido que criar aquela peça, mas ela só existe por causa de você, quando você toca. O tradutor é exatamente a mesma coisa. O livro original existe e é inacessível para o leitor que não conhece determinada língua, mas a partir do momento em que eu pego e “executo” (em duplo sentido) aquele livro, ele passa a ser possível para o leitor, e do meu ponto de vista, estou fazendo ele existir. Eu estou tocando aquele livro. É um imenso prazer. Escrever aquilo é divertidíssimo. Havia momentos de euforia (risos). É muito divertido você sentir que está fazendo aquilo, que você está escrevendo aquilo, sem ter que ter o gênio do Joyce. Ele já teve, então eu só preciso reproduzir.
Cultura – Quando Ulysses começa a ser um clássico incontornável da literatura?
Galindo – A edição da Penguin, de 1969, tem um grande peso nisso. Antes, Ulysses era basicamente um livro pouco lido, pouco visto, porque era proibido na maioria dos países, por ser considerado indecente, e portanto não tinha uma grande fortuna crítica. Era um livro que tinha muita influência entre os escritores, entre os crítcos, mas entre o público em geral a influência era quase nula. A partir dos anos 1960, ocorre essa virada crítica e editorial, e não é à toa que é nessa época que surge o primeiro filme sobre o livro (Ulysses, de Joseph Strick, 1967). Há quem já tenha ligado isso ao surgimento da contracultura, à ideia de valorização desse lado sujo e inclusive indecente do Ulysses. É a partir daí que o livro ganha uma popularidade maior. Se é que a gente pode falar em popularidade de um livro que até hoje é muito pouco lido.
Cultura – Como se explica que um livro tão complexo tenha se tornado tão canônico na literatura ocidental?
Galindo – Sabe aquela história que costuma se dizer do Velvet Underground? Que quando eles estavam tocando em Nova York pouquíssima gente viu a banda tocar, mas todo mundo que viu montou uma banda? O Ulysses é mais ou menos isso. Pouca gente leu, mas quase todo mundo que leu teve um papel no mundo literário no lugar em que estava. É um livro que teve uma influência muito grande nas pessoas certas, que depois fizeram a literatura que veio, a crítica literária que veio. Então, ele acaba ganhando essa aura de livro fundamental.
Cultura – Noventa anos depois de sua publicação, como você acha que o tempo afetou Ulysses?
Galindo – O livro envelheceu na medida em que todo artefato envelhece culturalmente. Certas referências hoje são muito difíceis de entender, certos fatos ligados ao contexto da época ficaram um pouco mais distantes, mas esteticamente e tecnicamente ele não envelheceu um dia. Eu ouvi isso já de escritores e de romancistas brasileiros novos e mais velhos: o livro parece que foi escrito ontem. Em termos técnicos, não fica devendo nada para nenhum bom romance de hoje e inclusive ele parece mais fresco do que boa parte dos bons romances de hoje.
Cultura – Como você definiria o projeto de Joyce com Ulysses? Por que a mistura de estilos e a linguagem complexa?
Galindo – Joyce não disse isso com todas as letras, mas tenho para mim muito bem resolvido que o projeto dele era escrever o maior de todos os romances. E escrever o maior romance de todos envolvia (e isso é muito difícil) entender muito bem o que é que faz o romance ser como é. E nisso ele tinha razão: a mistura de discursos, de estilos e de vozes é o que faz o romance ser um romance. Então o que Joyce fez, basicamente, na minha opinião, foi pegar tudo que faz um romance ser bom e elevar à enésima potência. O Ulysses é um livro extremamente abundante em tudo. Tem muitos personagens, muitas histórias, muitos interesses e muitos registros, muitos tons emocionais diferentes. É um livro em que James Joyce basicamente quis enfiar tudo que podia enfiar de mérito romanesco. Acho que o projeto dele era extremamente pretensioso.
Cultura – Que personagem do livro é o seu favorito?
Galindo – Todo mundo escolhe o mesmo, Leopold Bloom. Quando perguntaram para Harold Bloom, o crítico, qual era o maior personagem da literatura pós-Shakespeare, ele disse que poderia haver várias respostas, mas por um critério de completude, Leopold Bloom tem que ganhar. Porque ele é o que a gente conhece melhor, ele é o mais abrangentemente exposto, o mais minuciosamente analisado, o mais simpático, o mais divertido e o mais parecido com a gente. Seja quem você for, ele é mais parecido com você. Bloom não é um herói, não é um Deus, não é um político poderoso. Ele é um sujeito qualquer, numa cidade qualquer, em um dia qualquer. E exatamente por isso ele consegue tocar um cordinha interessante em todo mundo.
Cultura – Se você fosse usar uma palavra para definir a sua tradução do Ulysses qual seria?
Galindo – Ecumenismo. A ideia é essa, fazer um texto ecumênico que fosse aberto e tolerante a todo tipo de experiência.
Trecho
Pedimos
ao tradutor Caetano Galindo que escolhesse um trecho do seu Ulysses que
servisse de chamariz para futuros leitores do clássico de James Joyce.
Ele escolheu o início da segunda parte do livro, quando o personagem
Leonard Bloom aparece pela primeira vez, preparando o café da manhã para
a mulher e brincando com a sua gatinha: começa a odisseia do homem
comum.
“Mastigava destemperadamente, o senhor Bloom, as vísceras de aves e quadrúpedes. Gostava de sopa grossa de miúdos, moelas acastanhadas, um coraçãozinho recheado assado, fatias de fígado fritas com farinha de rosca, ovas de bacalhoa fritas. Acima de tudo gostava de rins de carneiro grelhados que lhe davam ao paladar um fino laivo de tênue perfume de urina.
Tinha rins na cabeça enquanto se movia delicadamente pela cozinha, ajustando as coisas do café da manhã dela na bandeja calombuda. Gélidos ar e luz estavam pela cozinha mas lá fora doce dia de verão por toda parte. Dava-lhe uma fominha.
As brasas vermelhavam.
Outra fatia de pão com manteiga: três, quatro: certo.
Ela não gostava do prato cheio. Certo. Voltou-se da bandeja, ergueu a chaleira da boca e pousou-a de lado no fogo. Lá ficou, fosca e atarracada, de bico embeiçado. Xícara de chá logologo. Bom. Boca seca. A gata andava rígida em torno de uma perna da mesa com o rabo para cima.
– Mqnhao!
– Ah, olha só você aí, o senhor Bloom disse, voltando-se do fogo.
A gata miou em resposta e espreitou de novo rígida à roda de uma perna da mesa, miando. Bem como ela espreita por cima da minha escrivaninha. Prr. Coce a minha cabeça. Prr.
O senhor Bloom observava curioso, carinhoso, a maleável forma preta. Limpo de se ver: o brilho da pelagem luzidia, o tufo branco embaixo do rabo, os olhos verdes lampejantes. Ele se curvou até ela, de mãos nos joelhos.
– Leite pra gatinha, ele disse.
– Mrqnhao! a gata gritou.
Dizem que eles são estúpidos. Eles entendem o que a gente diz melhor do que a gente entende eles. Ela entende tudo que quer. Vingativa também. Fico imaginando como é que ela me vê. Alto que nem uma torre? Não, ela consegue me pular.”
“Mastigava destemperadamente, o senhor Bloom, as vísceras de aves e quadrúpedes. Gostava de sopa grossa de miúdos, moelas acastanhadas, um coraçãozinho recheado assado, fatias de fígado fritas com farinha de rosca, ovas de bacalhoa fritas. Acima de tudo gostava de rins de carneiro grelhados que lhe davam ao paladar um fino laivo de tênue perfume de urina.
Tinha rins na cabeça enquanto se movia delicadamente pela cozinha, ajustando as coisas do café da manhã dela na bandeja calombuda. Gélidos ar e luz estavam pela cozinha mas lá fora doce dia de verão por toda parte. Dava-lhe uma fominha.
As brasas vermelhavam.
Outra fatia de pão com manteiga: três, quatro: certo.
Ela não gostava do prato cheio. Certo. Voltou-se da bandeja, ergueu a chaleira da boca e pousou-a de lado no fogo. Lá ficou, fosca e atarracada, de bico embeiçado. Xícara de chá logologo. Bom. Boca seca. A gata andava rígida em torno de uma perna da mesa com o rabo para cima.
– Mqnhao!
– Ah, olha só você aí, o senhor Bloom disse, voltando-se do fogo.
A gata miou em resposta e espreitou de novo rígida à roda de uma perna da mesa, miando. Bem como ela espreita por cima da minha escrivaninha. Prr. Coce a minha cabeça. Prr.
O senhor Bloom observava curioso, carinhoso, a maleável forma preta. Limpo de se ver: o brilho da pelagem luzidia, o tufo branco embaixo do rabo, os olhos verdes lampejantes. Ele se curvou até ela, de mãos nos joelhos.
– Leite pra gatinha, ele disse.
– Mrqnhao! a gata gritou.
Dizem que eles são estúpidos. Eles entendem o que a gente diz melhor do que a gente entende eles. Ela entende tudo que quer. Vingativa também. Fico imaginando como é que ela me vê. Alto que nem uma torre? Não, ela consegue me pular.”
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REPORTAGEM POR CLÁUDIA LAITANO
claudia.laitano@zerohora.com.br
REPORTAGEM POR CLÁUDIA LAITANO
claudia.laitano@zerohora.com.br
FONTE: ZH on line, 16/06/2012
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