sexta-feira, 22 de junho de 2012

Por amor a Freud

 Michael Fassbender é Jung e Keira Knightley é Sabine Spielrein no filme "Um Método Perigoso": biografia conta a história de superação e realização dessa pioneira da psicanálise
  Giovanna Bartucci*
 
Se Copérnico demonstrou que a Terra não é o centro do universo e Darwin retirou o homem do centro da criação, Sigmund Freud (1856-1939) descentrou a razão ao revelar que o homem é regido por forças que escapam à sua consciência. A descoberta do inconsciente atestou que o homem não tem domínio absoluto de si mesmo.
Revolucionária, a psicanálise emerge em uma Viena "fin de siècle" na qual, à moral das aparências e promiscuidade social, se conjugam estimulantes movimentos nas artes, literatura e pensamento moderno. A obra do escritor Arthur Schnitzler (1862-1931) ou do pintor Egon Schiele (1890-1918) são exemplos de respostas à frustração de viver em uma sociedade em que a importância dada à dimensão exterior e superficial coíbe toda vida interior.
Reconhecidamente o autor cuja produção literária melhor revela o clima da Viena da "belle époque" - prenhe de artifícios e caminhos sinuosos, acrescidos do mais absoluto cuidado em ocultar as condições em que a vida real se desenvolve -, Schnitzler retratou sua decadência, atacando seus hábitos e hipocrisias moral e sexual. O jovem Schiele, por outro lado, preso por "imoralidade" e "sedução", pintou corpos despidos de quaisquer disfarces ou limites convencionais de decência. Ocultado sob um rígido código moral, tudo o que havia sido até então tabu - sexo, voyeurismo, masturbação - foi exposto à vista de todos. Ou seja, a arte era então usada para explicitar publicamente escolhas ideológicas e pessoais; para desvelar o não dito, tal como a psicanálise.
Não à toa, em seu primeiro artigo sobre o tema, "Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna" (1908), Freud sustentou a hipótese de que o principal fator etiológico na formação das neuroses seria um conflito entre sexualidade e cultura, designando uma função de proteção aos propósitos da cultura; a psicanálise tendo possibilidade de oferecer uma resposta resolutiva ao mal-estar na civilização.
É verdade, Freud cria a psicanálise nutrindo-se do seu contexto social e cultural, mas, fundamentalmente, da própria história. Ao dedicar-se à sua autoanálise e ao trabalho dos sonhos - o que culmina na publicação de "A Interpretação dos Sonhos" (1900) -, o professor põe em andamento um trabalho interior que termina por constituir a própria psicanálise.
O fato é que a originalidade de sua criação está depositada em sua capacidade de ouvir com atenção os homens e mulheres histéricos de seu tempo, gestar e criar, a partir dessa escuta, a sua "ciência do sonhos". Desse modo, com seu nascimento diretamente associado à ideia de que "o histérico sofre sobretudo de reminiscências" - ou seja, de que o neurótico sofre de representações inconscientes e/ou recalcadas -, a psicanálise pode ser compreendida como um método de investigação que consiste essencialmente na evidenciação do significado inconsciente das palavras, ações e produções imaginárias de um sujeito.

Livro de Hilda Doolittle, que também 
traz cartas de Freud, permite ao leitor conhecer a experiência de descoberta do inconsciente

Recém-lançados, os livros "Por Amor a Freud - Memórias de Minha Análise com Sigmund Freud", da poetisa americana Hilda Doolittle (trad.: Pedro Maia, Zahar, 296 págs., R$ 49,90), e "Sabina Spielrein - de Jung a Freud" (trad.: Daniel Martinenschen, Civilização Brasileira, 392 págs., R$ 54,90), de Sabine Richebächer, biografia da primeira mulher analista a ter um impacto teórico importante na psicanálise, retratam de forma vigorosa tanto processos investigativos quanto a experiência transferencial de uma e de outra em relação ao professor.
Com efeito, a figura do cientista materialista, frio e distante, tão frequentemente divulgada, não corresponde ao homem terno, capaz de um cuidado amoroso composto de respeito, interesse e atenção para com aqueles que o procuraram, seja para análise, seja para formação, nas primeiras décadas do século XX. A correspondência trocada com Hilda Doolittle (1886-1961), acrescida às narrativas de sua análise com Freud, que teve lugar de março a junho de 1933 e de fins de outubro a início de dezembro de 1934, são testemunhos disso.
Realmente, "Por Amor..." não representa um registro completo da prática clínica do Pai da Psicanálise; ao contrário, "Advento" foi redigido em forma de diário durante a primeira estada da poetisa em Viena, enquanto "Escrito na Parede" é a reconstrução dessa mesma narrativa, dez anos depois, tendo sido publicado em inglês, em 1956, com o título de "Tribute to Freud". No entanto, o livro permite ao leitor apreender um pouco da experiência de descoberta (e escrita) do inconsciente e do prazer daí advindo, como também da atmosfera, do movimento, do jogo livre e nada convencional de associações e lembranças que têm lugar em uma análise. Essencial, contudo, é a possibilidade de acompanhar um percurso de apropriação de uma experiência absolutamente singular que marcará o restante da vida de um sujeito.
Esse processo fica explícito na biografia da psicanalista russa Sabina Spielrein (1885-1942). Tendo sido internada em Zurique, em 1904, no hospital psiquiátrico Burghölzli, então sob direção de Eugen Bleuler (1857-1939), e permanecido sob os cuidados do psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) por nove meses - com quem também estabeleceu laços intensos de amizade, colaboração profissional e de intimidade -, a estada se torna um ponto de inflexão na vida da jovem de 19 anos. Sob a proteção de Bleuler e seus médicos, Sabina consegue se libertar de exigências familiares e superar seus medos de forma a realizar seu sonho de infância: tornar-se médica.
Vivendo uma vida dividida entre tradição e modernidade, em uma época marcada por grandes transformações econômicas e sociais, Sabina tem um papel pioneiro na tematização dos componentes destrutivos da alma - o que ela chamará de "impulso destrutivo" ou "pulsão de morte" -, assim como também antecipa considerações que a psicanalista britânica de origem austríaca Melanie Klein (1882-1960) iria tematizar somente em 1936. A mais jovem da primeira geração de mulheres psicanalistas a publicar, seus escritos - disfarçadamente autobiográficos - revelam a função transformadora que a psicanálise veio a exercer em sua vida. Primeira paciente psiquiátrica hospitalizada a passar da enfermaria para a sala de aula, por meio de seu tratamento terapêutico, para afinal vir a clinicar, o fato é que a jornada psicanalítica vivida por Sabina Spielrein, tal como um testamento, se constituiu no mais lúcido testemunho de que, afinal, não basta desejar para ser - é necessário tornar-se.
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* Giovanna Bartucci é psicanalista, autora de "Fragilidade Absoluta - Ensaios Sobre Psicanálise e Contemporaneidade" (Planeta), entre outros livros
Fonte; Valor Econômico on line, 22/06/2012

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