quinta-feira, 14 de junho de 2012

Economia Verde: sim e não


 Leonardo Boff*
A grande proposta que, seguramente, sairá da Rio+20 no nível oficial da Encontro dos representantes dos povos é a economia verde. A intenção é promissora:”economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza”. Analisando o texto oficial, calcado sobre um documento do PNUMA Iniciativa de Economia Verde, se percebe que não difere nas metas e nos processos do clássico desenvolvimento sustentável. No fundo, se trata da mesma coisa. O documento da ONU evita o desenvolvimento sustentável como tema central pois tem a consciência da banalização e do desgaste desta expresão. Como denunciava recentemente Gorbachov: ele se revelou insustentável, “engendra crises, injustiça social e o perigo de catástrofe ambiental”(O Globo, 09/06/2012). A expressão mais adequada e menos ambígua seria uma economia  de baixo carbono.
Já fizemos críticas desta versão da economia, o caráter ideológico do mesmo  capitalismo que já conhecemos, agora com a máscara de verde. Mas já que se impôs a expressão economia verde vamos tentar desentranhar o que de positivo possa existir nele. Como qualquer outra realidade, também o gênio do capitalismo sempre criativo em suas adaptações, pode conter algum elemento aproveitável.
Partimos de um pressuposto teórico que convem revelar:  o teorema de Gödel, segundo o qual, por toda parte reina sempre a incompletude. Nada é rotundamente perfeito. Luz e sombras acolitam as práticas humanas. Mesmo os propósitos mais puros encerram imperfeições e os mais problemáticos, dimensões  aceitáveis. Nunca podemos praticar um mal absoluto como também realizar um bem absoluto. Vivemos numa ambiguidade originária. Ela não é um defeito mas uma marca da condição humana e da própria estrutura do universo, feita de caos e cosmos e de ordens e desordens sempre coexistindo simultaneamente.
Tentemos aplicar esse entendimento à ecologia verde e ver o que nela é resgatável e o que não é. Ela pode significar várias coisas.
Em primeiro lugar, pode se propor a recuperação das áreas verdes, desmatadas ou resultantes da degradação e da erosão dos solos e manter em pé  florestas ainda existentes. É um propósito positivo e deve ser realizado com urgência. São as manchas verdes que garantem a água para o sistema da vida e que sequestram o dióxido de carbono, diminuindo o aquecimento global. A economia verde neste sentido é desejável.
Em segundo lugar pode sinalizar a valorização econômica das assim chamadas externalidades como água, solos, ar, nutrientes, paisagens, vale dizer, dimensões da natureza (verde) etc. Estes elementos não entravam na avaliação de preço dos produtos. Eram simplesmente bens gratuitos oferecidos pela natureza que cada um podia se apropiar. Hoje, entretanto, com a escassez de bens e serviços, especialmente, de água, nutrientes, fibras e outros começam a ganhar valor. Este deve entrar na composição do preço do produto. Não se trata ainda de mercantilizar tais bens e serviços mas de inclui-los como parte importante do produto. O mesmo vale para os resíduos produzidos que acabam poluindo águas, envenenando os solos e contaminando o ar. Os custos de sua transformação ou eliminação devem outrossim entrar nos custos finais dos produtos.
Assim, por exemplo, para cada quilo de carne bovina precisam-se de 15.500 litros de água, para um hamburguer de carne, 2.400 litros, para um par de sapatos 8.000 litros e até para uma pequena xícara de café, 140 litros de água. O capital natural usado deve ser incluido no capital humano e na economia de mercado.
Há cálculos macro-econômicos que calcularam o valor dos serviços prestados à humanidade pelo conjunto dos eco-sistemas que formam o capital natural. Utilizo um dado de 1977, já antigo, mas que serve  como referência válida, embora hoje as cifras sejam muito mais altas. Os cálculos foram realizados por um grupo de ecologistas e de economistas sensíveis às questões ambientais. Estimaram que naquele então eram 33 trilhões dólares/ano o valor da contribuição do capital natural para a vida da humanidade. Isso representava quase duas vezes o produto mundial bruto que era em 1977 da ordem de 18 trilhões de dólares. Em outras palavras: se a humanidade quisesse substituir o capital natural por recursos artificiais, precisaria acrescentar ao PIB mundial 33 trilhões de dólares, sem dizer que esta substituição seria praticamente impossível. Pela economia verde se pretende tomar em consideração  o valor estimativo do capital natural, já que está em alto grau de degradação e de crescente escassez.
Nesse sentido a economia verde possui uma validade aceitável.
Em terceiro lugar, economia verde, na compreensão do PNUMA que a formulou, deve “produzir uma melhoria do bem estar do ser humano, a equidade social, ao mesmo tempo que  reduz significamente os riscos ambientais e a escassez ecológica”. Tal propósito implica um outro modo de produção que respeita o mais possível o alcance e os limites de um determinado bioma (caatinga, cerrado, amazônico, pampa e outros) e avalia que tipo de intervenção pode ser feita sem estressá-lo a ponto de não poder se refazer. Demos alguns exemplos. Trata-se de buscar energias alternativas às fósseis, altamente poluentes, energias que se baseiam nos bens e serviços da natureza que menos poluem como a energia  hidrelétrica, a eólica, a  solar  a das marés, a da geotérmica e a de base orgânica. Sabemos que nunca haverá energia totalmente pura. Mas seu impacto negativo sobre a biosfera pode ser grandemente diminuido.
A água doce será um dos bens mais escassos da natureza. Construir prédios que captam água da chuva para múltiplos usos pode aliviar a falta da gota d’água. Obrigar que todas as construções novas montem captadores de energia solar. Reusar e reciclar tudo que seja possível. Como contrapartida aos subsídios concedidos pelo governo, obrigar as montadoras a construir carros que economizem mais energia e diminuam a poluição. Subsídios e empréstimos às empresas devem ser condicionados à observância de itens ambientais ou ao resgate de regiões degradadas. Obrigar os supermercados a não utilizar sacolas de plástico na embalagem dos produtos e encaminhar para reciclagem garrafas plásticas. Ou fábricas de produtos eletrônicos devem assumir a reciclagem de aparelhos usados. Diminuir o mais possível o uso de pesticidas na agroindústria e favorecer a agroecologia e a economia solidária, até diminuindo a carga de impostos na venda de seus produtos. E assim poderíamos multiplicar indefinidamente os exemplos.
A pressuposição é que este tipo de economia verde represente uma transição para uma verdadeira sustentabilidade econômica até hoje ainda não alcançada.
Cabe, entretanto, observar, que o aquecimento global incontido, a entrada de milhões e milhões de novos consumidores, especialmente da China e da India e também do Brasil irão onerar mais ainda o capital natural já em descenso. Crescerão enormemente as emisões de gases de efeito estufa. Por ano cada pessoa emite quatro toneladas de dióxido de carbono e a totalidade da humanidade cerca de trinta bilhões de toneladas, nos informa J. Sachs da Universidade de Columbia dos USA. Como a Terra digerirá esta carga venenosa? Os desastres naturais mostram a incapacidade de manter seu equilíbrio. I. Ramonet no Le Monde Diplomatique (13/05/2012) afirma que em 2010, 90% dos desastres naturais resultaram do aquecimento global. Causaram a morte de 300.000 pessoas e uma prejuízo econômico de cem bilhões de Euros.
Esse tipo de  economia verde é aceitável na medida em que for mais a fundo em sua formulação para, então, apresentar um outro paradigma de relação para com a Terra, onde não a economia, mas a sustentabilidade geral do planeta, do sistema-vida, da Humanidade e de nossa civilização devem ganhar centralidade. Em razão deste propósito há que organizar a base material econômica em sinergia com as possibilidades da Terra. Cumpre que nós nos sentamos parte dela e comissionados a cuidá-la para que nos passa dar tudo o que precisamos para viver junto com a comunidade de vida.
Em quarto lugar, a economia verde pode representar uma vontade altamente perversa da voracidade humana, especialmente, das grandes corporações, de fazer negócios com o que há de mais sagrado na natureza que são os bens comuns da Terra e da Humanidade cuja propriedade deve ser coletiva. Entre eles se contam em  primeiríssimo lugar, a água, os aquíferos, os rios e os oceanos, a atmosfera, as sementes, os solos, as terras comunais, os parques naturais, as paisagens, as linguas, a ciência, a informação genética, os meios de comunicação, a internet, a saúde e a educação entre outros.  Como estão intimamente ligados à vida não podem ser transformados em mercadoria e entrar no circuito de compra e venda. A vida é sagrada e intocável.
Pôr preço aos bens e serviços  que a natureza nos dá gratuitamente, privatizá-los com a intenção de lucro é a suprema insensatez de uma sociedade de mercado. Ela já havia operado a perversidade de passar de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado. Nem tudo pode ser objeto da ganância humana privatista e acumuladora a serviço dos interesses de poucos à custa do sofrimento da maioria. A vida, por ser sagrada, reagirá, possivelmente nos colocando um obstáculo que poderá liquidar grande parte da própria humanidade. Esse tipo de economia verde é inaceitável.
Por fim não podemos deixar que as coisas corram de tal forma que o caminho ao abismo seja irreversível. Então nem teremos filhos e netos para chorar o nosso trágico destino. Porque eles também não existirão mais.
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*Leonardo Boff é autor de Proteger a Terra e cuidar da vida: como evitar o fim do mundo, Record 2010.
Fonte:  http://leonardoboff.wordpress.com/2012/06/13/economia-verde-sim-e-nao/
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