quinta-feira, 14 de junho de 2012

Deus também canta rap

Depois de um extenuante dia de trabalho, Rosa Parks, uma costureira, sentou-se no banco de um autocarro com dores nos ombros, costas e pescoço. Era o 1 de Dezembro de 1955. Tinha tudo para ser um dia normal, mas Rosa Parks ousou recusar a cedência do seu lugar a um homem branco, que viajava de pé, e que, segundo a lei da segregação, tinha direito àquele lugar. A “primeira-dama dos direitos civis”, como lhe chamou o Congresso dos USA, foi presa e condenada por desobediência.

                    Rosa Parks after Montgomery Bus Boycott 1956

É também por esta altura – meados dos anos 70 – que encontramos um novo flash digno de registo. O então prefeito de New York decidiu proceder a uma reestruturação urbana e muitas pessoas de cor, afro-americanas, porto-riquenhas e judias não tiveram outra solução senão irem para Brooklyn, Queens ou para o sul de Bronx. Este “êxodo” criou uma situação explosiva e, acompanhado de uma recessão económica, promoveu o desalento e violência em muitos jovens. Até que, em 1977, deu-se um blackout na cidade de New York. Toda a cidade ficou literalmente em suspenso e fora de controlo. Aqueles que até este momento se sentiam oprimidos, viram aqui uma oportunidade para se afirmarem. Não bastava a música, a arte ou a moda. Era necessária a força e a afirmação de uma identidade. É neste contexto que nasce a cultura hip-hop.

FENÓMENO E MENSAGEM DO HIP-HOP
O hip-hop pode ser considerado um fenómeno, no sentido mais amplo do termo. Espelha a necessidade de emancipação, de reler criticamente a história e é o resultado de uma multiculturalidade artística. Foi nos bairros de Bronx, Queens, etc., que nasceram os actuais pilares do hip-hop, como uma forma de “cultura de rua”: DJing (música), breakdance (dança), rap (poesia. RAP é o acrónimo de Rhythm and poetry – ritmo e poesia) e graffiti (pintura).
O rap é tido por muitos como a nova música de intervenção social. Diz o rapper Valete: “[o rap] é a poesia moderna, adaptada às grandes metrópoles, aos subúrbios, e a estas doenças urbano-depressivas”. É uma catarse, em jeito de poesia moderna, para denunciar injustiças sociais destinadas a permanecer na escuridão. A este respeito, Boss AC afirma que “de certa forma Hip Hop é estar na política / Não aceitar tudo calado, é desenvolver consciência crítica” (Hip Hop (Sou eu e és tu)).


DEUS TAMBÉM CANTA RAP
Cantar o que nos atinge, e despertar consciências para um mundo diferente, liga-se necessariamente à questão do mal. Porquê o desgoverno, o falhanço… porquê esta precipitação em julgar os outros? “Não olhes só p’ros outros, olha para ti também / e só aí é que vais ver de onde o mal vem” (Sam The Kid, Que mal tem – sobre (tudo)).

A pergunta de Job
Esta preocupação não está muito longe da eterna pergunta de Job: porquê o mal? É precisamente aqui que entra Deus. “Há perguntas que têm que ser feitas”, dizia Boss AC. Como é possível a existência de um Deus quando o mundo parece dominado pelo mal? Semelhante observação fazia David Hume no século XVIII, recordando o enigma de Epicuro: “Deus quer evitar o mal, mas não consegue? Então é impotente. Consegue mas não quer? Então é mau. Consegue e quer? Então por que existe o mal?”.
Vários rappers percorreram a mesma estrada, trazendo Deus para o mundo do rap. Gostaria, todavia, de destacar dois. Tupac Shakur e Boss AC.
 
Quando 2Pac esteve na prisão, escreveu “Deus, ajuda-me, porque estou a passar fome, não consigo encontrar trabalho”; “pergunto-me se Deus se preocupa / por nós, pretos, a receber subsídios” (2Pac, My block) ou “apenas Deus pode salvar-nos” (2Pac, Hell 4 Hustler). Dizia ainda na música Blasphemy: “Mamã diz-me que estou errado, é Deus apenas um polícia / à espera para me espancar se eu não explodir?” (2Pac, Blasphemy). Deus é muitas vezes associado a uma figura de autoridade a ser temida. Contudo, Tupac deseja um Deus diferente, alguém que esteja do lado das pessoas e não simplesmente uma figura autoritária que julga as pessoas. Depois de tudo isto, 2Pac insere na música a oração do Pai-Nosso, sem qualquer tipo de blasfémia. Estas formas de espiritualidade e de expressão religiosa são funcionais à compreensão da lógica do mundo. Pode ser uma espiritualidade fragmentada, até mesmo inconsciente, mas não permanece no silêncio. É esta, por exemplo, a opinião do rapper Sekou.
Boss AC coloca-se na esteira de 2Pac. Na excelente música “Que Deus?”, o rapper constroi um longo questionário. Porquê a guerra? Porquê a maldade? Porquê a tristeza? E porque é que Tu não te mostras? “Dizem que estás em todo o lado mas não sei se já te vi, / Vejo tanta dor no mundo pergunto-me se existes” (Boss AC, Que Deus?). Comentando esta música, o próprio autor disse que estas perguntas são universais. “Mais do que a pôr em causa a existência do Divino, quis sim, pôr em causa as acções do Homem, que muitas vezes, por motivos duvidosos, se escondem atrás da religião para fazer o mal”. Contudo, para Boss AC é claro que “há algo acima de todos e de tudo, algo que nos escapa”.

A construção de um mundo melhor
As letras não se fazem somente de crítica social. Boss AC é um dos artistas que tem apontado alguns valores para a construção de um mundo melhor. É a parte construtiva do discurso. Uma das músicas de referência é “Bem vindos os que vêm em paz” e talvez seja aquela com maior ressonância bíblica.
 
Podemos ler no texto:
“Bem-vindos os que vêm Paz (a minha casa é tua)”. Indo à Sagrada Escritura, lemos: “Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa!’ E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz (Lc 10, 5-6)”.
“Não me julgues com os olhos, julga-me com o coração”, diz Boss AC. Mas também diz a Bíblia “Não julgueis pelas aparências; julgai com um juízo recto” (Jo 7, 24 ou Mt 7, 1-3).
Por fim, o rapper afirma “Respeito o meu próximo para que ele me respeite a mim”. Já de si, a palavra “próximo” é reconhecidamente bíblica, mas ela tem ainda um valor acrescido: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12, 31). É o amor ou respeito gratuito, sem esperar nada em troca.
Existem muitas outras músicas e artistas que falam explicitamente, ou não, de Deus. Quando se reflecte sobre as questões universais – como dizia Boss AC – é muito difícil não falar de Deus. Normalmente é a pergunta de Job que mais sobressai, mas isso só significa que o destino do Homem, em algum momento, cruza-se com aquele que nos faz “pensar na origem de tudo e em como será o fim” (Boss AC).
Deus também canta rap. Ele sente o ritmo e a poesia de quem procura aquilo que é genuinamente humano.
Veja o vídeo:  http://youtu.be/VSTGhKsvqkE
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* Padre. O segundo de três irmãos. Desde há um ano voei da “Roma portuguesa” para a Cidade Eterna. Estudo Teologia Pastoral. Corro, leio, escrevo... e rezo.
Fonte:  http://www.patiodosgentios.com/reflexao-teologica/deus-tambem-canta-rap/

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