João Paulo Costa
Antecâmara
«O rosto é belo quando reflete a presença de um
pensamento, ao passo que o momento do riso é um momento em que se não
pensa. Mas será verdade? No instante em que surpreende o cómico, o homem
não ri: o riso vem imediatamente a seguir, como uma reação física,
como uma convulsão da qual todo o pensamento está ausente. O riso é uma
convulsão do rosto e na convulsão o homem não se domina, sendo ele
próprio dominado por qualquer coisa que não é nem a vontade nem a
razão» (M. Kundera, A Imortalidade).
Pode a literatura ajudar-nos a descobrir o mistério que envolve a vida? Pode o romance reler a realidade plasmando-a? O livro A Imortalidade do
escritor checo Milan Kundera é uma narrativa da imortalidade risível.
Um gesto belo eterniza a presença humana. Um bom livro é sempre uma
recriação, construção ficcional, a partir do real, que dá a
possibilidade ao leitor de se expropriar de si mesmo apropriando-se do sentido Outro das coisas. Não está tudo na letra! Se o romance abre
portas para uma nova leitura do espaço e do tempo onde nos
construímos, então aí torna-se colóquio vivo e tempo do espírito. M.
Proust escreve que «a leitura desperta-nos para a vida pessoal do espírito», e por isso, «na
medida em que ela é a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo
de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, o seu
papel na nossa vida é salutar» (Sobre a leitura).
Amor, morte e futuro são os transcendentais presentes
na estrutura de cada ser humano que o escritor checo reflete a partir
do desejo de imortalidade. A ideia de imortalidade kunderiana é uma
presença que se constrói mediante a afetação interpessoal
(física-sentimental-cognitiva). Há um desejo de imortalizar o passado no
presente e este no futuro. Esta ideia aparece exemplarmente no gesto
corporal (um sorriso) de uma mulher que deseja eternizar a sua
juventude e a sua beleza fixando-se num jovem rapaz, como se naquele
ato cumprisse toda a sua adolescência. A «sedução de um gesto
afogado não-sedução do corpo. Mas a mulher, embora devesse saber que
deixara de ser bela, esquecera-o nesse instante». O gesto surge
como um signo não-verbal, que não envelhece, mas eterniza porque é
belo. Aqui se projeta o presente para um passado que já fora futuro. A
visão linear do tempo, um fim, nem sempre nos deixa ver que o futuro se
faz presente!
O «gesto do desejo de imortalidade conhece apenas
dois pontos de referência: o eu, aqui, e o horizonte, ao longe: e
apenas duas noções: o absoluto que é o eu e o absoluto do mundo».
Este desejo de imortalidade, presente nos gestos e comportamentos, de
permanecer na memória coletiva do mundo, condiciona as formas de estar e
ser na vida com os outros. «As pessoas não só já não tentam parecer
bonitas quando estão com outras pessoas, como não tentam sequer evitar
parecer feias!». A ânsia de se fazer notar (opiniões vãs) e o uso
do ruído (necessidade de chamar atenção e de não ser esquecido)
conjugam-se nefastamente.
Há nesta visão uma crítica ao paradoxo da sociedade da
comunicação que vive da aparente defesa da liberdade de expressão
quando no real se reduz à opinião. À ideia de imortalidade está
associada a falta de privacidade com que as figuras públicas se deparam.
«Lembro-me de que na minha infância, quando se queria fotografar
alguém, se tinha sempre que pedir licença… e depois, um dia, ninguém
mais pediu licença». Socorre-se de exemplos recriados e
reconstruídos que são episódios reais ou inventados das suas vidas. Esta
falta de privacidade é provocada pela avidez do homem comum em querer
sugar a vida privada das celebridades, como forma própria de elas
mesmas se imortalizarem, mesmo sob o risco de diluírem a identidade
própria. «A preocupação com a própria imagem, é essa a imaturidade
incorrigível do homem. É tão difícil ficarmos indiferentes à nossa
imagem! É uma indiferença que ultrapassa as forças humanas. O homem só a
conquista depois da morte».
---------------------
João Paulo Costa
Imagens: Auguste Rodin
© SNPC | 19.06.12
Imagens: Auguste Rodin
© SNPC | 19.06.12
Fonte: http://www.snpcultura.org/a_imortalidade_risivel_1.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário