Amir Labaki*
É impossível ler "Paris - A Festa Continuou" (Companhia das Letras,
446 págs., R$ 54), a admirável reportagem em livro de Alan Riding sobre a
vida cultural na França durante a ocupação nazista entre 1940 e 1944,
sem se lembrar do documentário clássico de Marcel Ophüls "A Tristeza e a
Piedade" (1969, lançado em DVD pela Videofilmes). Foi Ophüls, antes
mesmo do historiador americano Robert O. Paxton ("Vichy France - Old
Guard and New Order, 1940-1944", Knopf, 1972), que desbravou a picada
elegantemente aprofundada agora pelo ex-correspondente do "The New York
Times" no Brasil e na França.
Em pouco mais de quatro horas e meia, "A Tristeza e a Piedade" pôs
como nenhuma obra fizera antes o dedo na principal ferida francesa do
século XX. Concentrando-se num estudo de caso, o da cidade industrial de
Clermont-Ferrand, no centro da França, Ophüls liquida o mito heroico da
inquebrantável e pervasiva resistência civil francesa à ocupação pelas
tropas de Hitler.
O livro de Riding fecha o foco sobre a cena cultural francesa nos
quatro anos do regime colaboracionista de Vichy, liderado pelo marechal
Philippe Pétain (1856-1951), herói da Primeira Guerra. Durante grande
parte desse período, o país foi administrativa e militarmente cindido ao
meio, entre a zona ocupada pelos alemães ao Norte e a zona não ocupada
ao Centro-Sul. Paris, claro, ficou na primeira área. Clermont-Ferrand,
vizinha a Vichy, na segunda.
Um departamento que passou à história como Propaganda Staffell cuidou
do controle da produção cultural de toda a França. Foi dividida em seis
seções: imprensa, rádio, cinema, cultura (artes plásticas e
espetáculos), literatura e propaganda ativa. O objetivo central era
banir qualquer manifestação crítica à ocupação, aos alemães e a Vichy,
divulgar as mensagens totalitárias e antissemitas do novo regime e
estimular atividades culturais leves e descompromissadas.
Os teatros foram logo reabertos com ênfase em musicais e textos
clássicos, alcançando lotações constantes. O cinema foi retomado, tendo à
frente os estúdios Continental, controlados pelos alemães e tendo como
testa de ferro o produtor André Greven. Exposições e editoras também
voltaram a funcionar. Tudo devidamente expurgado de qualquer
participação de judeus.
O exílio foi o que restou para centenas de artistas, como o ator e
diretor teatral Louis Jouvet, o líder surrealista André Breton e
cineastas como René Clair, Jean Renoir e Max Ophüls (pai de Marcel). A
maioria que não pôde partir ou decidiu ficar se dividia entre os que
acreditavam na nova França de Pétain ("Terra, Família, Pátria"), os
simpatizantes de Hitler, os neutros e os resistentes que seguiam a
liderança, de Londres, do general De Gaulle.
Alain Riding é especialmente brilhante no exame de casos específicos,
como o do escritor Robert Brasillach, autor de uma pioneira história de
cinema e germanófilo declarado, e o do filósofo Jean-Paul Sartre, que
teria inflado posteriormente uma participação na Resistência muito maior
do que a real. Dois casos célebres teriam merecido maior atenção: o da
figurinista Coco Chanel e o da atriz Arletty ("O Boulevard do Crime",
1945), ambas tornadas símbolo da chamada "colaboração horizontal" pelos
envolvimentos amorosos com oficiais alemães durante a ocupação.
Entre os inúmeros pontos em comum entre "Paris - A Festa Continuou" e
"A Tristeza e a Piedade" destaca-se a participação do ator e cantor
Maurice Chevalier (1888-1972). Ophüls elegeu suas canções popularíssimas
como trilha essencial de seu filme. Mais que isso: inclui na segunda
parte do documentário um generoso trecho da mensagem filmada
protagonizada por Chevalier logo após a derrota alemã, no qual desmente
veementemente a versão de que teria se confraternizado com as tropas
nazistas.
Como conta Riding, Chevalier permaneceu freneticamente ativo durante a
ocupação, em peças e shows que regularmente apresentavam na plateia
tropas alemãs, como muitos, entre os quais Edith Piaf, Charles Trenet e
Tino Rossi.
Acusado como colaboracionista pela emissora resistente Rádio Londres,
Chevalier "passou os meses finais da ocupação escondido tanto da
Resistência quanto da Gestapo", escreve Riding. Preso por poucos dias
com a liberação da França em meados de 1944, foi perdoado graças à
intervenção do poeta comunista Louis Aragon, "comprometendo-se em troca a
cantar em diversos espetáculos comunistas para a arrecadação de
fundos".
É no filme de Ophüls que encontramos a imagem que melhor resume o
livro de Riding: sentando num escritório, num inglês de forte sotaque,
eis Maurice Chevalier suplicando compreensão. Seu sorriso amarelo diz
tudo.
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* Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.
E-mail - labaki@etudoverdade.com.br
Site do festival: www.etudoverdade.com.br
Fonte: Valor Econômico on line, 29/06/2012
Leia mais em:
http://www.valor.com.br/cultura/2732600/o-sorriso-amarelo-de-chevalier#ixzz1z9ZkZ7X8
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