Marcelo Coelho*
Cachorros com preferências menos eruditas podem encontrar programação cultural dentro de casa
Já existem bolos de aniversário para cachorros, assim como sorvetes e
chocolates, sem contar com psicólogos e spas para os que abusaram das
guloseimas.
Mesmo quem acha normal esse tipo de coisa deve ter se espantado com a
notícia que saiu na "Ilustríssima" deste domingo. Uma das maiores
exposições de arte contemporânea do mundo, a Documenta de Kassel,
organiza agora visitas guiadas para cães.
Conduzidos por veterinários, os cães são levados para "farejar objetos
das instalações que encontram no parque Karlsaue", conta a jornalista
Silvia Bittencourt.
Cachorros com preferências menos eruditas podem encontrar programação
cultural dentro de casa mesmo. Surgiu, nos Estados Unidos, um canal a
cabo especializado em distrair a população canina.
A DogTV funciona 24 horas por dia, e suas atrações se dividem em três
tipos. Há cenas para estimular o cão, para adormecê-lo, e para
acostumá-lo ao convívio social.
Procurei pela coisa no YouTube, e coloquei a tela do computador na
frente do meu cachorrinho. Ele não reagiu a nada. Talvez prefira a
Documenta de Kassel. Em todo caso, os criadores desse canal certamente
precisam aperfeiçoar a programação. Talvez, pagando uma taxa extra,
sejam fornecidos óculos 3D, sem contar com uma necessária máquina de
reprodução de odores.
Sem isso, tudo indica que ver um cachorro adormecendo ou correndo atrás
de uma bola não é suficiente para induzir o animal doméstico a um
comportamento parecido.
A psicologia por trás da criação desse canal, segundo reportagem na
revista "Época" desta semana, está no fato de que muitos cachorros se
sentem abandonados dentro de casa, enquanto seus donos saem para
trabalhar. Como resultado, latem, urinam e destroem objetos, como forma
de protesto; ou apenas para chamar a atenção dos humanos demasiado
relapsos.
Mesmo que o canal não funcione, é certo que o humano se sentirá menos
relapso pagando uma mensalidade para o canal. Reproduz-se,
evidentemente, o fenômeno clássico da "babá eletrônica", que distrai as
crianças enquanto os pais têm mais o que fazer. Sem disposição para ter
filhos, o jovem adulto sai de casa para morar sozinho. Sente necessidade
de alguma coisa, que seria difícil definir: Companhia? Afeto?
Responsabilidades?
Melhor, quem sabe, chamar isso de "vida". Vida animal, vida selvagem,
vida infantil -qualquer vida que, sendo outra, é ainda parte de nós
mesmos, e não inteiramente igual a nós. Imediatamente -cachorro ou
criança-, as encrencas começam. E o esforço do dono da casa será,
sempre, o de "humanizar" aquele novo tipo de ser. Com crianças, isso dá
muito trabalho, mas tende a dar mais certo.
Com os cachorros, vejo que não é só consumismo o motivo de tantas
atenções e produtos à disposição. Trata-se de uma forma especial de
nostalgia, uma herança a mais do velho pensamento de Rousseau.
A natureza, quase inteiramente domesticada pela cultura industrial,
pareceu nos últimos séculos nos encarar com aquele jeito de cachorrinho
abandonado na rua. Torna-se objeto de ternura, magnificada pela
distância.
De resto, por falar em seres abandonados na rua, foi provavelmente o
mesmo romantismo que levou o curador de outra exposição de arte, a
Bienal de Berlim, a chamar pichadores brasileiros para mostrarem o seu
trabalho numa igreja de 1830.
Eles "demarcaram o seu território", emporcalhando não só o patrimônio
histórico da cidade, mas o próprio curador. Pelo menos assim a
iniciativa ganhou sentido. Foram convidados porque eram
"transgressores", e não se corromperam com o convite. Transgrediram.
Já o cachorro de apartamento, tendo uma vocação obediente e
domesticável, é a natureza ao alcance da mão. Mais do que uma cena
campestre, corresponde ao nosso olhar; comunica-se conosco, mas sua
linguagem não tem palavras.
Queremos que se humanize, assim como o apaixonado por jardinagem refaz a desordem vegetal em canteiros bem comportados.
Somos entretanto incapazes de levar com sucesso o plano de humanização.
Isso não seria desejável, aliás. Imagine-se conviver com um cachorro
falante à mesa do jantar. Basta que conviva conosco à frente da
televisão. Logo brigaremos pelo controle remoto. Não importa. É possível
que os canais para humanos, psicologicamente testados para distrair,
socializar e acalmar a nossa espécie, não sejam tão diferentes assim.
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* Colunista da Folha
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