"Lá na frente, os agentes da religião não passam de agentes
econômicos, e as igrejas, de empresas. São, agora, também políticos,
uma vez que tudo isso acarreta uma crescente necessidade, por parte das
igrejas competitivas, de se fazerem representar no Parlamento, às
vezes com partido próprio, de onde podem defender seus interesses com a
segurança jurídica e econômica costurada na lei, que ajudam a criar ou
a rejeitar", escreve Antônio Flávio Pierucci, em texto inédito, cedido pelo sociólogo Reginaldo Prandi, coautor, com Pierucci, em livros e projetos de pesquisa e publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 17-06-2012.
Eis o artigo.
Morto de infarto no dia 8 de junho, aos 67, Flávio Pierucci registra a dinâmica mercadológica da concorrência entre igrejas no Brasil e
convoca os sociólogos a fazer uma crítica da cultura e da economia
capitalista para entender o fim do monopólio católico no país e as
disputas de evangélicos por participação no mercado.
O sociólogo da religião não pode continuar pensando que se pode fazer
sociologia propriamente dita sem a crítica da "cultura capitalista",
que passa pela crítica da economia capitalista.
Quando uma igreja visa à maximização dos lucros e ensina seus quadros
a fazerem o mesmo por ela e também para si mesmos, e exorta os
conversos e seguidores a fazerem o mesmo, é sinal de que a lógica da
esfera econômica colonizou a lógica da esfera religiosa.
Com isso, a religião enfraquece sua principal conquista alcançada com
a modernidade, que foi a autonomização das esferas da cultura, como
ensinou Max Weber [1881-1961]. Volta atrás na história.
Muitos sociólogos de hoje veem acertadamente a religião como mercado -
mercado de bens de salvação -, mas já é mais que isso: há outras metas a
alcançar, inclusive as de conteúdo material. No mundo ocidental
contemporâneo, isto é, na sociedade secularizada, há grande competição
entre diferentes religiões, e o crescimento de umas e outras depende do
declínio de pelo menos alguma outra, em número de seguidores, num jogo
de soma zero, evidentemente.
DESREGULAÇÃO
A dinamização recente da concorrência entre os diferentes produtores e
vendedores religiosos -diferentes religiões, igrejas e outros grupos de
culto institucionalizados- pode ser entendida como consequência
histórica e em linha direta da desregulação republicana da esfera
religiosa. Sobretudo na América Latina, tal processo significa a perda pelo catolicismo de sua reserva de mercado. Acabou-se o monopólio católico.
Com a possibilidade assim aberta de ativação acrescida de seus
agentes num mercado religioso desmonopolizado, foram sendo alcançados
pouco a pouco níveis mais exigentes de pluralismo religioso, de
demarcação mais nítida da diferença religiosa e, por que não, de
conflitividade multidirecional, por conta dos níveis mais altos de
envolvimento reflexivo dos próprios agentes religiosos com a ideia mesma
de competição religiosa legítima, "natural".
Segue-se a crescente dinamização racionalizada da oferta dos bens de
salvação que os profissionais da religião criam ou, cada vez mais,
copiam uns dos outros, cuja distribuição reciclada administram sempre de
olho na resposta dos muitos adversários.
Cresce mais quem faz melhores ofertas; criar novas necessidades
religiosas é imperativo, regra do mercado. Nesse "métier", vale apontar
desde já, têm se esmerado os pentecostais e neopentecostais,
mas não só. A febre é altamente contagiosa. É toda uma positividade de
imagem proativa que termina por granjear mais prestígio e legitimidade
social para as religiões ou religiosidades que melhor souberem vender
seu peixe.
E, já que liberdade religiosa hoje em dia se pratica em chave de
livre-concorrência, todos os profissionais religiosos responsáveis por
esse burburinho são os primeiros a dizerem-se interessados (interessados
por enquanto, é só o que por enquanto faz sentido) em mais e mais
liberdade de crença, culto, expressão, propaganda e marketing. Assim
como em mais isenção (quando não evasão) fiscal, "que ninguém é de
ferro!".
Lá na frente, os agentes da religião não passam de agentes
econômicos, e as igrejas, de empresas. São, agora, também políticos, uma
vez que tudo isso acarreta uma crescente necessidade, por parte das
igrejas competitivas, de se fazerem representar no Parlamento, às vezes
com partido próprio, de onde podem defender seus interesses com a
segurança jurídica e econômica costurada na lei, que ajudam a criar ou a
rejeitar.
Como resultado da desregulação, o que se tem é essa abundância de
profissionais religiosos, que vemos, em inaudito ativismo, a suprir o
mercado de novidades religiosas, serviços espirituais, bens simbólicos e
os mais variados artigos de consumo, gerando, em decorrência, teores
mais altos de participação religiosa na população, que produzem um
aquecimento de todo um campo religioso, que se estrutura em moldes
análogos aos de um mercado concorrencial.
Resulta que esses empreendedores religiosos aparecem -assim eles se
apresentam na vida cotidiana- como se mergulhados até o pescoço numa
inadiável disputa por recursos e oportunidades, por mais eficácia e
sucesso na atração de novos consumidores e na fidelização dos já
atraídos. Precisam, pois, de mais fundos econômicos, mais dinheiro e
mais lucro para investir no negócio da religião.
SOCIOLOGIA
Do lado dos sociólogos, para falar agora das coisas do sagrado, é
necessário passar pela economia da coisa, mergulhada com certeza na
cultura capitalista de uma sociedade irremediavelmente secularizada.
Uma sociedade que não precisa mais de Deus para se legitimar, se
manter coesa, se governar e dar sentido à vida social, mas que, no
âmbito dos indivíduos, consome e paga bem pelos serviços prestados em
nome dele.
De modo tão descarado que o princípio de fidelidade dos homens, isto
é, dos fiéis para com Deus, que sustentou a civilização judaico-cristã, e
também a islâmica, desde as origens, agora tem sua direção invertida
por essa nova cristandade que proclama que Deus é fiel, o fiel é Deus.
Investimento seguro, vale dizer.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/510567-o-fiel-e-deus
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