É antes de tudo um filme de apartamento (Fonte: Reprodução/Divulgação)
As paixões e a sordidez humana
Transpor para o cinema uma peça de teatro é o novo desafio de
Polanski, que produz de forma incessante mesmo convivendo com a velhice e
os problemas com a justiça dos EUA. Ele se juntou à francesa Yasmina
Reza para adaptar o roteiro de Carnage a partir da peça da autora. É
antes de tudo um filme de apartamento, evocando uma certa claustrofobia
que lembra o clássico de Hitchcock, Festim Diabólico.
Mais do que isso, lembra também a trilogia do apartamento, do próprio
Polanski, dos filmes Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosimary e O Inquilino.
Só que agora, ao invés de se concentrar no desenvolvimento de um clima
de suspense e terror psicológico, a trama busca desvendar um pouco da
natureza humana, se é que ela realmente existe.
Na primeira cena do filme vemos uma turma de garotos em um parque de
Nova York. O plano geral do parque, com os meninos ao longe, revela uma
briga, onde um dos garotos pega um galho de árvore e acerta a cabeça do
outro. Esta é a ação catalisadora da trama: a seguir, já no apartamento
dos pais do menino agredido, vemos um outro casal, os pais do agressor.
Eles tentam contemporizar e resolver a questão da forma mais polida
possível — o que não acontece.
Muito pelo contrário, a situação vai evoluindo no sentido de uma
conflito cada vez mais violento, onde as pessoas vão revelando suas
fraquezas e paixões, em uma dinâmica de poder que vai se alterando aos
poucos. Não é somente um casal que detesta o outro, apesar de se
conhecerem há tão pouco tempo, mas eles também se odeiam entre si. A
cada momento as relações de poder vão mudando: alguém fica na berlinda e
é atacado pelos outros, ou ataca; homem e mulher de casais diferentes
podem se unir contra alguém, e assim por diante.
Essa situação que reúne um advogado das indústrias farmacêuticas, uma
corretora de investimentos, o dono de uma loja de material de
construção, e uma escritora especialista em África, lembra aqueles
enigmas que põe em um abrigo, após algum cataclisma apocalíptico, as
últimas pessoas que restaram na Terra. Para sobreviver, elas precisam
sacrificar alguém. Lembra também o capítulo XIII do Leviatã, de Thomas
Hobbes, publicado em 1651, em meio às guerras religiosas na Europa. Ele
descreve o que Hobbes chama de Estado de Natureza:
Torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um
poder comum capaz de mantê-los a todos em respeito, eles se encontram
naquela condição a que se chama guerra. Uma guerra que é de todos os
homens contra todos os homens. (…) Tudo aquilo, portanto, que é válido
para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem,
também é válido para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra
segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e
sua própria invenção. Em tal situação não há lugar para a indústria e
todas as demais atividades produtivas do homem, pois seu fruto é
incerto. Não há sociedade. E o que é pior do que tudo, há um constante
temor e perigo de morte violenta. A vida do homem é solitária, pobre,
sórdida, embrutecida e curta. Da guerra de todos contra todos também
isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções do bem e do
mal, de justiça e injustiça, não podem ter lugar aí.
Esta visão de uma condição primitiva da humanidade, sem lei, onde as
paixões sem limites instauram um clima de terror, amparado por uma
natureza humana sórdida, teve ao longo do tempo diversas versões. Ela se
encontra alicerçada pelo senso comum, em vários discursos literários e
cinematográficos. Alimentou também uma série de teorias sociais, que
possuem muita força nos dias de hoje.
Por detrás do verniz da civilização e da educação, existe uma
natureza bárbara: é isso que nos revela o filme de Polanski e a peça de
Yasmina Reza, especialista em tramar conflitos através de uma estética
naturalista. Quando o advogado revela que acredita somente no Deus da
Carnificina, aquele que permite que os homens se dilacerem entre si, ele
revela a natureza da trama. A estória coloca a escritora, preocupada
com os povos oprimidos na África, como uma idealista fora de moda. Hoje
em dia, agir pelo bem comum e se preocupar com os outros é cafona.
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Fonte: http://opiniaoenoticia.com.br/opiniao/o-deus-da-carnificina-de-roman-polanski/15/06/2012
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