sexta-feira, 15 de junho de 2012

Cavalier e as lições dos bravos

Amir Labaki*

Divulgação / Divulgação 
Alain Cavalier: objetivo foi o de registrar "um ato de coragem muito visual"
 
"Les Braves" (Os Bravos), uma trilogia de documentários curtos do cineasta francês Alain Cavalier, está sendo exibido no corrente Festival de Documentários de Sheffield, na Inglaterra, e acaba de sair em DVD na França ("Documentaires sur Grand Écran", € 22). O lançamento acompanhou no mês passado a mostra organizada pela Cinemateca Francesa em homenagem aos 80 anos de Cavalier, celebrado há quatro anos por uma retrospectiva no É Tudo Verdade.
Até mais do que o inclassificável "Pater", seu ensaio sobre a política profissional lançado em competição no festival de Cannes do ano passado, o tríptico de retratos breves é a principal obra de Cavalier depois da mostra brasileira. Ainda sem lançamento previsto por aqui, "Les Braves" é a um só tempo um libelo contra a injustiça e um triunfo de seu método minimalista.
Tudo se resume a três depoimentos para a pequena câmera digital de Cavalier, captados apenas por ele e exibidos sem nenhuma edição. Os personagens são apresentados apenas por seus nomes completos - Raymond Lévy, Michel Alliot e Jean Widhoff -, sem nenhum detalhamento biográfico ou legendas de apoio.
Girando independentemente cada um em torno de meia hora, um pouco mais no primeiro, um pouco menos no último, acompanham-se três narrativas autobiográficas sobre episódios essenciais de formação. Em cada caso, explica Cavalier num pequeno filme feito para extra do DVD, o objetivo era registrar "um ato de coragem muito visual" - e "assim guardar os traços da honra".
A bravura frisada no título geral se revela nas memórias de gestos de coragem individual diante da desumanidade. Nos casos de Lévy e Alliot, recuperam-se histórias de fugas de trens de prisioneiros dos nazistas em 1944, durante o confronto final pela liberação da França ocupada por Hitler em 1940. Widhoff, por seu turno, recorda sua rebelião como jovem militar diante da tortura a militantes pela independência na guerra da Argélia (1954-1962).
Raymond Lévy conta-nos sobre os quase dois meses durante os quais viajou num vagão fechado de um trem de carga, ao lado de 70 prisioneiros políticos, incluindo seu irmão, pelo norte da França. As mortes se acumulavam durante a viagem sem destino certo, marcada por fome e sede, muito calor e nenhuma higiene, ataques de avião e execuções pelos nazistas.
Modestamente, Lévy relativiza a dimensão de sua saga diante de episódios maiores, como o desembarque das tropas aliadas na Normandia. Para ele, sua "pequena história" merece ser lembrada pelo caráter de "reconforto moral" de episódios pontuais, como a reposição algo milagrosa pela Cruz Vermelha, quando ainda estava no trem, de seus óculos quebrados e pela ação solidária, a custo de sangue, que lhe possibilitou a escapada pelo piso do vagão em movimento.
Michel Alliot distingue sua narrativa pelos detalhes de sua juventude como membro da Resistência francesa no sul do país. Ele destaca as duas leituras correntes de sua fuga com quatro colegas pela janela de um trem em movimento. Para aqueles que não participaram de escapadas como a sua, trata-se de "um instante" de ousadia e liberação pessoal. Para os que, como ele, se evadiram "é um momento simbólico de um percurso de vida".
Preso desde 1943 aos 19 anos, Alliot quase perde o fôlego ao relembrar as torturas a que foi submetido pelos soldados nazistas e explica como se prometera, finda a guerra, pesquisar pessoalmente se a crueldade era um traço comum aos alemães.
São outros os tempos e outra a guerra vivida por Jean Widhoff. Baseado como militar na fronteira entre Argélia e Marrocos por dois anos no auge do conflito franco-argelino do fim dos anos 1950, narra como foi despertado certa noite por gritos. Ao constatar que um oficial superior francês torturava um prisioneiro argelino, buscou sua arma e o fez parar. "Estava pronto a perder minha liberdade", afirma Widhoff, que acabou poupado de um julgamento por um tribunal de guerra. "Não se tem o direito de massacrar as pessoas."
"Les Braves" remete diretamente a três documentários extraídos desde 1999 por Claude Lanzmann das costelas de seu monumental "Shoah" (1985): "Un Vivant Qui Passe" (Uma vida que passa, 1999), "Sobibór, 14 octobre 1943, 16 heures" (Sobibor, 14 outubro 1943, 16 horas, de 2001) e "Le Rapport Karski" (2009, todos comercialmente inéditos no Brasil). Em sua recusa à montagem, Cavalier radicaliza a ascese cinematográfica de Lanzmann frente a vítimas e testemunhas do Holocausto.
Um rosto, uma voz e uma memória bastam para fundar um filme essencial e gerar imenso cinema. Para além da lição de vida, o próprio documentário teria muito a extrair de obras como "Les Braves", em nossos tempos de multiplicação de produções, inflação de orçamentos, mas raríssima expansão de sentidos.
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* Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.
E-mail - labaki@etudoverdade.com.br
Site do festival: www.etudoverdade.com.br
Fonte:  http://www.valor.com.br/cultura/2715380/cavalier-e-licoes-dos-bravos

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